A Casa de Nero


Quando também Belerofonte foi odiado por todos os deuses, vagueou, só, pela planície de Aleia, devorando seu próprio coração e evitando as veredas humanas.
  Homero. Ilíada, Canto VI, vv. 200-3.

Em certos momentos, considerava o mal como um simples meio de poder realizar a sua concepção do belo.
Oscar Wilde. O Retrato de Dorian Gray.

CARTA I
Primavera Alta

Caro amigo sempre ao meu lado no sustento de anseios e espanto de temores, quando sob o disfarce de uma porta fechada dávamos livre expressão aos demônios de nossa luxúria, grande parceiro, salve Petrônio. Escrevo-te com o vulto de nossa conversa ainda vivo sobre mim, na noite em que o leite da lua imbuía tons proféticos à tua boca belicosa. Quanto tempo desde então. Ao menos recordas? Não importa, teu refino na fala sempre assombrou-me desta forma, velado sob o juízo dos outros — incluso o teu. Permita-me então retribuir nestas palavras forjadas apenas para ti. E que elas conservem o fio sincero ao vazar-te as entranhas.  
    Da sacada de meu quarto alongo os olhos sobre o dorso do império. Ao zênite, o sol de cobre apaga as sombras. Vejo a plebe trançada nas rugas metálicas do ar. Nas ruas áugures e sibilas cospem apocalipses à dois dupôndios, corsários vestem veludo em sua pompa admirável, cambistas induzem más apostas a turistas ávidos por deitar as rendas em peixes monstruosos e teatros navais, magistrados golpeiam à ponta da vareta as costas de alunos jocosos mais encantados pelos mamilos de gladiadores, apotecários galegos dizem curar a gota ou a inveja na revoluta de seus incensos, pastores deitam no lombo de cabras blocos de granito para imensas construções, bêbados riem-se sob uma máscara de saliva qual película repulsiva de sua miséria, escreventes analfabetos rabiscam o papel sob os balbucios de supostos exilados, cantores de goelas flamejantes e boca em bico melodiam vitórias impossíveis de povos inventados, o poeta senta-se no lancil sem saber o que dizer pois já o disse em mil e um poemas que nem à ele comovem, e nas ondas frisadas do porto mares de lamentável gentalha vêm à cidade em golfadas. No Fórum sob o bafo de bom vinho senadores martelam as têmporas alheias com palavras aladas visando justo ocultar o sentido da frase, farrapos de filosofias inválidas, rebuscado teatro do homem público. Em medidas estéreis nada alteram senão a largura de seus domínios. Quanto aos patrícios, entrevejo-os nos triclínios. Os mesmos convivas nas mesas baixas pesadas de maçãs com pimenta e ovos com mel, peixes, porcos, caracóis, polvos, ostras e vôngoles, vomitando-se uma vez mais nas urnas de metal e sob o tinir dos copos golfando os mesmos brindes a jovens demagogos cujos anseios não excedem à largura das moedas. Depois em devidos disfarces irão às margens do Tibre onde na ponte Milvius, mãe de todos os gozos, as meretrizes os banharão no curso impecável de seus prodígios. Amanhã correrão as ruas com um tropel de escravos ao encalço para lançar moedas nos colos de mendigos, seu metal reluzindo abundante sob o sol crescendo os olhos de toda a gente.
    Ai, Cidade Eterna. Eis a tua glória. Seus consensos arbitrários, dogmas ilusórios, ocorrências previsíveis. Sob o toldo deste insistente circo estendi as veredas de minha vida, não nego, e entre farsantes e filósofos extraí largos rompantes de alegria. Mas já não me apetece. O tempo desfez o relevo dos gestos humanos. Arenosos, lixam a textura de meu desejo. Nada a vida negou-me. Temo ter visto demais. Salvo raros encantos a vida tornou-se, toda ela, vasto tédio. Lacei o real e fácil demais ele rendeu-se às minhas rédeas. Sou ente grande em mundo pequeno, as bordas do horizonte constrangem meus cotovelos, sua insossa dinâmica sufoca-me. Seu curto repertório é o que ainda não cessa em me espantar. Mesmo o prazer da bebida e das orgias que tu tantas vezes idealizou agora parece escapar-me. Não leve à mal. Deliciei-me em ver bêbados sufocando sob o imenso volume das pétalas de rosa que fizeste cair em cascatas, da abertura zenital, na ocasião de meu aniversário. No entanto há um momento em que as novas festas tornam-se simulacros das anteriores e todas as suas volúpias perdem o sabor. Tudo me é familiar, perdeu-se o terror do estranho. Nada pesa. Nem mais a pele palpita, que dirá meu íntimo.
    Portanto me excluo da esfera dos homens para lançar-me à outro tipo de aventura. Talvez pergunte-se, Petrônio, o que faz o infame Nero após abdicar das delícias terrenas. Como prospera no encanto de sua intimidade? Para responder-te peço. Não suponha. E acompanha a minha prosa. Ao déspota convém o conduzir dos estímulos.

Há tempos guardo-me entre paredes. Nos cômodos de minha casa dourada suspendo o mundo e caio em mim. Aqui ainda há espaço. Cultivo o eco de um silêncio não ao todo distante do sagrado, nesta solenidade colhida nos vincos do exílio, onde na demora do ócio desfruto meus bocejos e desvendo todas as notas de meu hálito. Varo as noites de vela em riste alumiando os cantos de meus áureos salões. Contemplo as muitas coisas que coletei do mundo, as escassas lascas de encanto que à força extraí de sua carne para adornar a minha morada. É estranho. A falta de estímulos intensos afina os sentidos às mais gentis carícias. Corro os dedos sobre o bordado de uma túnica sidônica e seu fio de prata ressoa nas fibras de meu espírito. O delicado corta-me fundo demais. Tão débeis são as coisas em minhas mãos. E sob tal atrocidade consegui-las. A beleza, ardilosa, esplêndida meretriz, promete-nos a graça e desperta-nos cobiça. Quem vê o brilho da vela reluzir na orla de meu vaso fenício não supõe os litros de sangue que derramei para testemunhar este tímido espetáculo.
    Pois das vias à beleza é a violência a mais poética. Sabes do meu fraco pelo teatro. Foi no palco da guerra onde encontrei arte das mais raras. Ali excita-se o tecido inerte e rompe as linfas estagnadas de nosso convívio numa comunhão humana secreta demais para ser exposta. Fui mãe, irmão e amante de todos que matei, pois no mais grave instante de suas vidas era eu quem estava lá, seu bafo em minha face, meus dedos trançando-lhes a cintura, o suor de pernas cruzadas. Se no furor de suas últimas raspas vitais primeiro corriam as toscas lembranças de uma vida banal, logo impunha-se uma experiência de magnitude antes inconcebível, quando desvelam-se os primeiros vislumbres do além e sua vastidão ainda é demasiado para o que de carnal subsiste no moribundo. Esta transição encantava-me. Neste tênue espanto eu buscava algo apenas ali revelado. Com a paciência pedregosa de um Deus eu notava-o no câmbio tonal de suas íris quando rompia-se o fio da vida, no ganho de peso dos seus corpos caindo em meus braços, no afrouxar de suas artérias. O fio do bronze foi senão o meu pincel. E com ele retratei não a beleza clássica de finas carícias, das flores e rumores que afagam-nos o espírito mas outra sorte de beleza que excede o nosso saber, cintilante sob a bruma de nossa ignorância. Nela revelam-se as esferas mais altas da vida e sua magnitude antes assusta para depois libertar-nos do espesso pó.
    E após tudo isto lá estava eu, transcendido, impecável na via Ápia de volta à Roma, os braços fartos de espólios, suas jóias e tapetes, mobílias e estátuas, mecanismos e utensílios, sua flora e sua fauna, os leitos de seus pais e os templos de seus deuses. Toda uma miríade de coisas eleitas por mim para adornarem os eternos salões de minha áurea morada. E como agora sou eu o dono dos objetos onde em suspiros expressaram a sua arte, suponho ser o senhor de suas almas. Sobre pedestais cultivo zeloso a galeria de sua memória. E sob a minha tutela hão de operar milagres a ti, Petrônio, ainda ocultos.
    Meu passado ergue a cabeça para contemplar-me. Nas lembranças despertas pelos objetos muitas vezes resgato êxtases enterrados fundo em meu íntimo, embaçados no pó do que já foi e não é mais. Como o elmo de concha extraído da gorda cabeça de Gael Piscenius, tirano da cidade submersa de Kêr-Is, cuja arquitetura toda ela de arcos e torres foi construída nos corais erguidos como dedos de centopéia até o fim da vista sobre um oceano de algas cintilantes. Ou na sala vazia onde guardo os espólios de um povo pilhado duas vezes. Havíamos flagelado a sua pólis e anos depois vimos os remanescentes numa planície ao leste esquivando-se de arestas invisíveis e encostados em paredes inexistentes, negociando bens imaginados e tocando instrumentos intangíveis. Toda a sua vida dava-se na ausência, bando de loucos. Quando interroguei-os atônitos apontavam à sua cidade, onde eu via senão uma planície de calcário e ramos secos. Mediante o sopro do vento demonstrei-os a inexistência de sua arquitetura e, contrariados, atiraram-me pedras abstratas que removiam do chão à grande custo. Matei a todos e de troça pilhei a cidade uma segunda vez, minhas carruagens rangendo sob o peso vazio de seus escombros. E no entanto depois notei um arranhão em minha têmpora. Ou num papiro em branco onde recordo os desatentos sábios da capital de Nullas, império de cegos cuja escrita era o próprio tear das finas fibras que compõe o papel num idioma agora morto onde manifestavam todo um mundo suspeito às singularidades, onde tudo transborda entre si pois em nada há limites, sendo a vida amálgama de fluxos e correntes. Lê-se não da esquerda à direita mas com ambas as mãos em simultâneo e desordem, pois onde carece o contorno não há nem fim nem começo, disse-me um dos sábios que poupei e acolhi para manter os pergaminhos. Toda a cidade um único bloco titânico de basalto esculpido em corredores, suas superfícies rugosas revolvendo-se sobre si e repletas de um idioma lido nas pontas dos dedos. Seus escombros encontram-se, creio, em algum de meus cômodos.
     Há mais. O dedo indicador de Midas suspenso num arame de ouro onde mais de uma vez instiguei-me ao toque, tapetes persas com jardins de pavões cujo arranjo de penas ensina a inverter as marés dos rios Tigres e Eufrates, a tábua de esmeralda em seu brilho infinito que faz crer, como dizem, ser lasca do coração do planeta onde o engenho humano ousou marcar seu alfabeto, tecidos de seda tão fina que dizem costurada com fios de ar, a icônica escada de Ulbátar sem um degrau igual ao outro e cujo cume ninguém jamais alcançou, a pele do tigre que tanto vesti para morder a genitália dos cortesãos e cujas listras guardam o padrão de crescimento dos vegetais, um espelho perfeito que não distorce o mundo, cântaros com pó vermelho onde inspiram os etíopes para falar a língua do chacal, árvores comedoras de pássaros que ao invés de folhas crescem plumagens coloridas, um broche de pedra dos povos nômades das estepes que desconhecem os cereais e as cidades e que ilustra a revoluta caçada ao javali sagrado, cálices feitos das unhas de um Grifo onde brilha a bebida envenenada, uma das flechas que Hércules ungiu na saliva da Hydra, o cérebro pulsante e derrotado de Vercingetórix numa cúpula de cristal fosco, as primeiras velas de cânhamo costuradas pelos povos do Levante, a prole híbrida das éguas do rei Mahrajan com os cavalos do mar que visitam-nas sob a lua cheia nas finas areias da praia onde Simbad naufragou, uma das penas do cisne que estuprou Leda, os jardins suspensos da Babilônia em sua relva gorda e doces frutos e entre eles um boi faminto que dizem ser o grande Nabucodonosor II, um Súcubo sequestrado ao profanar uma jovem sonâmbula, os papiros ladeados em fio de cobre do Margites de Homero, da Comédia de Aristóteles e dos poemas de Safo, um estranho arame com duas lentes que acentuam a visão dos velhos, uma árvore nascida das cinzas de incontáveis druidas e removida à imenso custo das ruínas de um tempo circular na Bretanha, um canário azul em gaiola de prata cujo canto é alerta de um primogênito incorrendo em incesto, a argila úmida da Mesopotâmia que deu forma aos primeiros deuses e construiu os impérios macios onde o homem ajoelha sem pesar, o manto de açafrão da eterna aurora, os herdeiros das guerras Púnicas encenando a mítica batalha mas substituindo o brônzeo aço por penas de avestruz, falos milenares de pedra e fezes de camelo encontrados nas dunas da Etiópia, flautas de ossos onde nossos antepassados sopraram a sua solidão e escavadas no fundo de cavernas onde erram leões de longos dentes e ursos pelados, a fonte de águas termais cintilantes com a luz vermelha do oricalco por Netuno ofertada ao povo de Atenas e de súbito renegada em prol da gentil oliveira criada por Minerva dando-lhe a custódia da cidade, a Arca da Aliança com seus anjos andróginos já destituída das tábuas de pedra com os dez mandamentos mas ainda farta em relíquias como a mitra de Moisés cujos confusos ornatos dizem guardar os delírios do cristo na cruz e a ponta da lança que perfurou as suas costelas, os longos capacetes em granito da raça Annunaki que ressoam quando Saturno atinge o cume celeste, a máscara de um risonho fauno esculpida por um tal M. Buonarroti, uma fonte suspensa sobre quatro leões de ouro rosa, a imensa tíbia de um ciclope onde talhou-se a história da fuga de Ulisses e cujo tutano alimentou por gerações o povo da Sicilia, escombros da Torre de Babel e os tijolos de Tróia por Eneias carregados nas costas e de cujo pó serviu-se para viver mais de duzentos anos, um coro de castratos cantando a nota Fá sempre que o terceiro raio de sol alinha-se a uma medalha no centro do piso, o crânio enorme como um domo do titã Cronos onde Júpiter masturbava-se melancólico e a pele escrotal de Urano ampla como um balão, uma grande esfera diamantina em cujo interior palpita um coração de anatomia à mim desconhecida, um estojo onde se contém todas as coisas do cosmos, cítaras de cordas feitas com as tripas de centauros, um menir fálico que goteja quando os deuses descem à terra libidinosos, um cacho de uvas que nunca acaba, instrumentos musicais fabricados em obsidiana que de todas as gemas exógenas da antiga Anatólia é a mais rara, cascos de tartarugas gigantes onde Alexandre deitava seus amantes, a sela onde Fílis montou Aristóteles e também as embocaduras em cera de abelha, única exigência do filósofo, o chifre do unicórnio que Ctesias viu nos bosques da Pérsia e cujas lascas curam a lepra, um suporte para incenso feito da traquéia de um Fauno e usada pelo grande Xerxes para conversar com a vasta cadeia de sua genealogia, cavalos que à imenso custo meus filósofos ensinaram a rir, um cubo mágico com imagens coloridas em sucessão onde estranhas pessoas conduzem carruagens de metal desprovidas de cavalos, a lira de límpido som e armação de prata que Aquiles arrebatou da cidade de Éecion, a saliva tóxica da rã dourada usada pelo povo odinênido para induzir nos jovens a experiência de quase morte preparando-os assim à vida, brinquedos de corda feitos por Dédalus para os filhos de Minos que há mil anos não cessam de mover-se e também a fantasia de Pasífae, beatos do deserto vivendo todos em perfeita sincronia gestual para explorar os limites do indivíduo e punindo qualquer desalinho com a perda de um membro, diminuindo assim toda a gama de ações coletiva, os vasos mágicos criados pelo povo Yamaduq para transportar a água de seu lago sagrado à outro sítio de sol mais ameno, um meteoro em cujas rugas corre uma substância sebosa reativa apenas ao fogo e à certos tons de roxo, um leque de ossos de lebre cujo sopro cura o oblívio, estes e tantos outros, são tantos os que já não recordo.
    Não foi a delicada mística dos colecionadores nem o êxtase do domínio as guias de minhas escolhas. Tampouco desejo passar os dias entrevendo nostálgico os tempos idos contidos no verso de certos objetos. Em minha morada tenciono antes corrigir os erros do mundo. Pois se o real esconde em seus lapsos todas as suas delícias e dotes abrindo assim espaço ao comum e inócuo, se os seus eventos são mero rearranjo apático de detalhes recriando novas cenas em essência similares às antigas, se a aurora de novos dias carrega este bolor estagnado do tempo passado onde tudo é tedioso pois repetitivo, tautológicas invenções revirando-se no balbucio dos deuses, se a memória do que foi cisma em macular o frescor do amanhã, se no pulso de tudo corre a promessa dos mesmos colapsos, se nos sorrisos dos jovens já se entrevê os vermes úmidos do solo, então é meu dever confrontar a miséria do acaso, seus vícios e falta de imaginação, arrancando das fendas do mundo todas as lascas dispersas do belo, recolhendo-as sob o peso da distância e o convívio com o oblívio e o desdém, eu, absoluto, que à tudo vi e à tudo toquei, que visitou todas as paisagens e todos os povos e comparou os seus deuses e doutrinas, e abdicou de suas fraquezas e alimentou as suas virtudes, eu, que poli os seus desvios e alisei as suas arestas, cuidadoso a coletar o que de melhor tinham a oferecer. Em meu palácio, neste estranho teatro de artefatos, manifesto sinergia capaz de ascender-nos à última das doutrinas, rearranjando os pólos de um planeta sufocado pelo ranço do banal. Aqui costuro constelação de novos sentidos e desafio os desígnios da criação, sua mecânica e lógica, métodos e critérios. Sou eu o fiel da balança e a pedra angular de um novo amanhã, eu a sua rija lapela. Sem mim desmanchará em folhas soltas, em revoadas de discursos salmodiando o brilho perdido. De costas ao mundo, busco rescrevê-lo. Em meu colo hei de compor uma história que os artifícios do devir foram incapazes de manifestar. Do despotismo do acaso escolhi libertar-me.

CARTA II
Outono Precoce

A casa, Petrônio, assombra-me. Há tempos desconheço seus caminhos e em distantes salas encontro-me sem lembrar como lá cheguei. Os quartos encurtam, as paredes comprimem, o que antes era amplo salão agora não passa de corredor estreito resvalando as orelhas, antes espaços ovais cujo arco fugia à vista são agora claustros onde nada cabe salvo o sufoco. As superfícies têm a ânsia de engolir-me e vibram o ar nesta torpe magnética. E também o que antes era tímida dispensa abriu-se em salão em cuja amplitude há golfadas de vento e pisos que afastam paredes.
    Escapa-me o acervo. Sinto-o líquido entre dedos quando no auge da noite estou em salas vazias antes entulhadas de coisas, nada vendo salvo os odiosos grotescos por Flâmulo desenhados nas paredes. E câmaras da mais resoluta escassez estão agora entulhadas de coisas, mobílias aglomeradas sobre si em caótica topografia, em montes vencendo as alturas. Por toda a parte as pontas de suas arestas como os ramos agudos em bosque de espinhos e eu, todo cetim, rasgando meu espírito numa pletora de assombros e estranhos sentimentos.
    Como o vago langor quando fui incapaz de extrair sons de minhas liras de alabastro, suas cordas ressoavam tão doce mas agora só ofertam-me silêncio, feito linhas de pedra ou a boca fechada dos fantasmas. O miasma da melancolia que tragou-me quando buscava meu trono nas dobras de um plissado etíope, certo de que ali havia guardado os dias passados de um tempo mais claro. As torpes gotas de suor crescendo em minha face quando, na ânsia de secá-las, fui incapaz de levantar um lenço de mão em seda egípcia, tamanho o seu peso. O calmo terror colhido no brocado carmesim de um xale persa, os gemidos ancestrais de suas fibras gelando-me os dedos sob o amplo domo de meu salão invernal. O rígido espanto quando, dormindo num tapete babilônico, senti a vertigem das alturas celestes onde nuvens chuvosas escorriam o meu juízo para banhar os néscios e tolos do mundo que entre árvores entoam as melodias de um verão infinito. O delírio lancinante ao sopesar instrumentos cirúrgicos sumérios e perguntar-me se serviriam na extração de pesadelos, chegando mesmo a riscar múltiplas vezes a minha têmpora. O pânico obsceno, invencível, por ver ao meu redor no reflexo do espelho de bronze uma miríade de vultos, seus olhos luzindo metálicos e suas línguas em estalos na boca.
    Sob o véu de minha loucura dialoguei com uma cômoda marroquina e ouvi sussurros nas fendas de painéis cretenses, amei a sétima pétala de um lírio cristalino e abdiquei da leitura pois temi a letra U. Nos veios do pilar em ardósia vi o relato de minha morte, nos poros de um copo em rocha vulcânica todas as minhas vidas passadas, no verniz de um banco pelasgo as coisas que jamais serão, nas fendas de um tabuleiro a vertigem das falésias, num brinco de carmesim a pélvis de Britânico e no punhal prata de uma bengala a glauca garganta de minha mãe. Sob o peso de meu toque o mármore das estátuas cede macio como carne humana, ao redor de meu pescoço queima o ouro de um colar e firmes em meu punho relógios solares abdicam de suas sombras. As gavetas engolem-me os braços e os armários querem trancar-me, candelabros lambem meus cabelos e anéis estrangulam meus dedos. Coroas de imperadores derrotados me apertam o crânio e sandálias turcas levam-me a lugares por mim indesejados.
    Nas tranças intérminas de uma pulseira nórdica conduzi o meu olhar, percorrendo as caudas dos monstros e as lanças curvas dos homens ali entalhados na prata ao redor da pulseira e de volta ao início, ao redor e de volta, ao redor e de volta, e pousei-a no piso e com a face colada nas placas de mármore gatinhava ao redor, os olhos fixos na progressão dos ornatos e de volta, ao redor e de volta arranhando a têmpora no rejunte e então levantei-me, a vista cravada enquanto caminhei e corri ao redor, o suor alojado nas rugas da face depois descendo o liso do corpo ao redor e de volta, ao redor e de volta e segurei-a de novo, seu metal quente na palma aberta e girava o pulso incontáveis vezes sob a única e masoquista convicção de ali na extensão circular encontrar mais uma vez o mesmo início, num galope onde sentia o sublime hálito do eterno pois nas mãos continha todo o horizonte anelado que enlaça o mundo, inalcançável mas tão próximo, remoto ao lado, como se devido apenas à grossura da epiderme ele estacionasse para sempre na distância, como também tudo o que jaz sob a pele, dentro de mim, meu espírito fugitivo nas terras últimas às bordas do oblívio banhando-se naquelas águas insossas primeiro em respingos depois em mergulhos e eu via-o ali, ao seu redor eu girava e queria impedi-lo pois não pretendo esquecer, não quero enfim acessar o meu cerne e encontrar ali nada além de um vazio glacial onde antes havia um fogo primevo que perdeu-se na correnteza do tempo, e seguia eu girando ao redor e de volta, ao redor e de volta, ao redor e de volta sem conseguir acercar-me e pois o que julgava ser espiral talvez fosse apenas círculo. Tudo isto eu vivia quando a pulseira caiu de meus dedos e no baque do piso espalhou em finos anéis a minha sanidade, como linhas dilatadas sobre água.
    Preso na macabra sinergia de minhas posses, incapaz de domá-las, meu ânimo entorpece e critério embaralha. Nesta trama de segredos e clausuras sou, sob a cúpula de meu próprio lar, absoluto desamparo. Ao meu redor tudo rodopia, esquivando-se de mim. E já não reconheço mesmo o pouco que vejo. Onde estou? Que faço entre tantas coisas em ganas de destruir-me? Nelas sinto a corrente do ódio sugando-me a alma, as línguas crípticas de minhas coisas me arrepiando os capilares. Refém de minha morada, sob luz trêmula espanto-me com tudo o que antes escolhi no adorno dos áureos salões. Pois meu acervo tornou-se grande demais. Teria eu acumulado tanto? Rude ironia! Sob o amparo de meu palácio pensava eu conservar os escassos encantos de um mundo monótono. Ali gestava nova vida, meu domo a mais fértil das placentas. Mas agora percebo. Mesmo a rara beleza do mundo mostrou-se demasiado. São tantas as coisas. Sua abundância transborda-me. Incapaz de desvendá-las, sinto-as esquivando-se, calando a sua essência nas cavidades fundas onde não consigo acessar. De que importa então tê-las? Em meus bosques há esbeltos alces albinos mas jamais deitei os olhos em sua divina placidez.
    Mas então mentiram. Pois sempre disseram-me Todas as coisas são tuas por direito. Tivesse o cosmo três sóis, seriam tuas as três auroras e as luzes dos três poentes deitariam no assoalho de tua morada, para aos seus pés o anoitecer pedir licença. Sob a benção dos deuses és tu a imagem do Absoluto para onde as lascas do mundo convergem, e sob a goma de teu juízo ao que cabe a vida será renascido e ao que cabe a morte, lançado aos escombros do oblívio. O Norte segue o seu olhar, o Sul as suas costas. Assim falavam. Assim fizeram. São meus os prados onde erram cavalos selvagens e as facas de sílex enterradas sob os passos dos paquidermes, o primeiro orvalho da manhã amaciando as hastes das frutas e a língua crespa dos dementes, as águas escuras como sonhos nos rios da Anatólia e as nuvens de argila nas pólis Babilônicas. São meus os dramas dos adolescentes, os sonhos dos velhos, a vingança dos injustiçados, os punhos quebrados dos caçadores, a incompreensão dos pais e o furor dos filhos, os olhares perdidos, são meus os amores solitários e os sussurros dos amantes, as lágrimas dos mudos e as cicatrizes dos errantes, as dúvidas dos devotos e a solidão do anacoreta e o sufoco dos celebrados e de tudo isto eu extraí o perfume, a delícia alojada entre dobras secas e ainda assim, meu suave amigo. Sou incapaz de entender. Desconheço o meu próprio acervo. O grande enigma segue sem resposta, sua sombra titânica sobre mim. Tudo o que pedi foi a verdade, envergonhada, aos meus pés. E agora são meus os joelhos caídos.

CARTA III
Outono Tardio

Entre dedos escorria a valiosa visão de minha obra, crescendo à minha volta em deserto anódino e uniforme, suas dunas cobrindo as virtudes de todas as coisas e eu, pequeno ente em imenso mundo, em mim guardava nada salvo angústia, e a sede invencível. Por todo este tempo, pensei, bebia de um copo vazio.
    E então te encontrei, doce Lucius. Sob as dormentes areias entrevi o brilho renovado de sua lembrança, jamais esquecida mas talvez abafada no passado. Pois no ápice de minha agonia encontrei, quase por mágica, o objeto que conserva vivo o nosso encontro, tanto tempo atrás, quando cativou-me o teu porte altivo e longos dedos servindo-me vinho, suas túmidas clavículas no peso da ânfora e mamilos perfurados. Curvado sanavas tu a minha sede sob os lumes rosados da pólis de Lápila, onde tudo é feito de cristal para em  meio à delicados alicerces contemplar-se a força branda e a ampla gama das cores solares e lunares. Nesta noite eras o meu copeiro e mais novo servo, tu e todos da bela cidade que por tanto tempo sufoquei em cerco e cujas foscas muralhas já conhecia melhor do que a fronte de minha terrível mãe, à espera sob as árvores todos os dias vendo os vultos baços de seus habitantes no rumor de seu vai e vem, seu medo granulado na opacidade dos muros que mantinham-nos ali, fora, exilados nas valas da selva comendo raízes e roedores entre grunhidos de soldados com os pés submersos na mucosa quente daquele mangue, todos nós esquecidos de nossos postos ou títulos e dormindo com a testa febril e as costas nuas sob os olhos das corujas, esvaídos de nobreza ou do suporte da cortesia. Ali eu temi por minha vida e tive de manter o trono à força das unhas, já mesmo sem discernir a relevância de meu título nos olhos desbotados de meus homens, sob máscaras de argila espreitando o meu sono.
    Após todo este horror estava eu de novo entre cálices cuja finura faz quebrar no calor do chá, na pródiga ceia que lançaram em minha homenagem, seu novo soberano. Acreditas, Petrônio, que ao enfim rompermos o cerco e trovejarmos pelos escombros cristalinos da muralha, súbito a visão daquela cidade ressoando no toque das úmidas nuvens em suas torres de vidro fez-nos calar? Guardamos o aço e tiramos as sandálias. Tudo ali escorria sutil, mesmo o vento demorava-se entre as ruas onde os habitantes em graça faziam-nos lentas mesuras, como o mais nobre dos cervos sob a palma dos profetas. Morosos seguimos esta pilhagem que era mais dança que duelo. O decoro do lugar educava-nos.
    E tudo isto eu vi realçado em ti, Lucius. A tua lisura ao encher-me o copo, o perfume de tua carne florida, a maior dentre as delícias do banquete. Eras meu por direito, deus do tato e do talento. Toquei-te a mão e ordenei que mais tarde visitasse meus aposentos. Colhi apenas teu descaso. Em vão esperei a tua vinda. E fiz algo inconcebível. Fui eu, imperador, à ti. E ali, ante o teu quarto nos corredores de vidro, por muito tempo vi a garoa de meus suspiros borrifando a tua porta. Mas com a carne dos dedos enfim empurrei-a. E ali, sob a soleira, em pavor velei o teu sono. Suas costas úmidas na língua prata da lua. Oh, Lucius. Curta era a noite mas larga a minha devoção, humilhado ante o suplício à ti, imenso ícone de fina pélvis usurpando-me a decência. Relapso entre as cobertas, teu corpo era colosso em minha mente e só ao seu redor faziam as coisas sentido. Gatinhei o teu piso, eu, o dono do mundo intruso em meus próprio domínios, raspando os joelhos na baça cerâmica de um serviçal. Mas era eu quem te servia, dentro de mim. Ajoelhado com a face rente à tua boca o seu bafo ardia-me a testa. Eu queria subjugá-lo, digeri-lo, ao menos masturbar-me ante o espetáculo de tuas espaldas, mas a altivez de sua presença impedia-me. Atônito, lá guardei-me por certo tempo. Queria conservá-lo para mim. Fui à cômoda e o que pensará de mim, sábio Petrônio, quando leres que lento abri a gaveta. Dali pincei algo indistinto que retive no fecho das mãos. Só abri-as quando fora do quarto, meu coração um sino quente na cúpula de meu ser, retorcendo sob os badalos deste amor. Um cálice de barro. Em toda a pólis de Lápila a única das coisas que ao segurar não revelou-me os dedos atrás.
    Pois foi este o objeto que dias atrás encontrei em cristalino pedestal no centro de um cômodo cujas tábuas do assoalho rangiam sob os meus pés, mas não no ritmo de meus passos. Quando segurei-o, notei enfim. Há tempos procurava-te, calado, sem saber. E no entanto na carne das mãos eu sentia a sua energia evitando-me, recolhida às partes do copo intocadas pelo meu calor. Como fez o seu antigo dono. Estarias aqui? Meus dedos buscavam-te no barro, mas tu, elusivo, dançava em sinuosas elipses e nas revolutas deste encontro também a minha alma movia-se, desatando enclaves, solvendo coágulos, clareando córregos há muito obstruindo as terras de meu íntimo. Tu não eras, jamais serias meu. Passei então a buscar-te dentro de mim, no seio deste sentimento que prosperava à revelia de nossas vontades. Fora de mim sou incapaz de encontrá-lo, mas de olhos fechados vejo-te por toda a parte, na proeza de cada detalhe, na potência infinita das coisas latentes, jamais manifestas na dura luz do mundo onde o que de fato acontece sufoca todas as promessas do que poderia ser, onde dentre tantas hipóteses apenas uma sobrevive. Justo por esconder-se, te encontro em todo lugar. Justo por não ser meu, possuo todas as tuas versões. Faço-te receptáculo de todo o desejo e toda a esperança, de toda a libido lacrimosa de meu imaginar. Assim voltaste à mim, conservado na distância. No encanto das coisas que escolhem não ser, seu tesouro tal que uma vez nascidas quebram-se sob o peso do ar. Melhor mantê-las na placenta, no doce cordão da fantasia. Pois maior que a chegada é o advento, maior que o agir é a apatia, maior que o tudo, o nada. Nunca foste meu, assim é meu para sempre.
    Quando penso em ti há sempre algo distinto nos detalhes da memória. Do cerne de cada minúcia germino em fantasia todo um cosmos de coisas inéditas, rutilantes, onde o tempo não troveja o fim de todo o prazer e cada ato carrega em si a calma do eterno, radiando fresco como a primeira fruta da seguinte estação, para sempre doce pois jamais colhida. Por vezes vejo nas tuas costas sobre a cama os matizes de outras luas, nas janelas as cortinas sob os sopros de outros ventos, as cerâmicas sob outras temperaturas, no vaso de vidro flores de outras cores ou espécies, a maciez de teus cabelos soltos, ou presos? Mesmo o timbre da tua voz, quando ouso inventá-la. Por vezes me repele e ou torno-me um vagabundo em fuga, toda a minha vida ofegante sob o susto de teu desdém ou a tua recusa ensina-me a digna humildade dos imperadores. Por outras me acolhe nas tuas cobertas e nas gomas de tua língua, na calidez cambiante de tua saliva e ou abandono a coroa para contigo viver em oblívio, o império florescendo ou arruinando em minha ausência, ou tu vestes uma segunda coroa ao meu lado, e juntos, quatro mãos no mesmo cetro, vergamos a vida ou somos engolidos por ela. Torno-me assim o feliz sentinela deste mar de mundos correndo céleres à minha frente, pasmado no fascínio de tua crista desconhecida, pois tudo me escapa e as pontas dos dedos formigam como quando eu era jovem e tudo era estranho e anônimo.
    Na magnitude e no grânulo deste sentimento, prospero. Em mim não és mais Lucius, delicado cortesão, mas sublime portal de todos os rumores, todas as fábulas. Turbulenta força rasgando no fundo de mim os depósitos de matéria morta e abrindo verdes campos onde alma alguma ousa andar salvo a minha em sua doce solidão, para sempre transformada sob o prisma deste deleite, no brando júbilo de vencer novas distâncias onde todo o desejo ali deitado cresce em florestas cujos ramos não tardam em transbordar seu leite. Refém de minhas próprias fantasias, consumo os frutos deste romance, intacto e eterno pois para sempre solilóquio. Quase sou grato pelo teu desprezo. Desconheço-te, Lucius. Assim me libertastes. Ó deus dos segredos, derrama teus sussurros sobre mim.


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Petrônio. Não estranhe quando estes sussurros deitarem em teus ouvidos, neste novo disfarce que uso para alcançá-lo, água fresca das cinzas nascida e sulcando o ar no auge da noite. Ou as sendas da telepatia. Acalma-te, querido, e deixe-me verter límpido este sonho na bacia de tua alma. Pois embora escute o rumor destas palavras, não estou ao pé de ti, mas em margens distantes. E tão próximas. Lembra-se das caçadas nas escarpas do monte Velino, onde sob o ensino de Burrus curvávamos o arco? O doce prazer de alvejar a besta ao longe, serena entre os troncos dos abetos. Neste teatro antes vi-me como caçador, ao fim da vida como caça. Agora sou eu a seta. Se a lâmina do que digo for demasiado aguda para ti, desculpa-me. Mas que a ferida por mim causada, torço, abra-te os sentidos para renovada sutileza. Sei agora como caem os figos dos galhos. Pois da árvore da vida também eu caí. Pergunto-me qual dos Deuses trancará os dentes sobre mim. Talvez o além seja senão o processo digestivo dos deuses, onde todas as coisas misturam-se indistintas na bile divina, enfim unas no absoluto de seu glorioso estômago. Caso assim o seja, serei eu presenteado com o requinte da simetria, pois vim a falecer também pela barriga. Ontem do copo de barro brotou áurea bebida que mesmo transbordando jamais esgotava-se. Levei-a aos lábios. Cidra. Líquida, ela escorria em riscos na parede do intestino e seu perfume sedoso preenchia a minha boca como as maçãs nos verões de minha infância, quando o velho Vitus com seus olhos de estátua tateava-me o caminho ao pomar nas colinas de Anzio e eu deitava-me à sombra azul das macieiras e admirava o brilho nas asas das libélulas. Quão longos dias e calmas as noites nesta época quando a vida era o deslumbre de um enigma assaltando das coisas seus nomes, mantendo-as no apego de toda a busca e todo o desejo, quando eu ainda não vivia constrangido, encovado no cerne de mim, avaliando tudo à distância mas sim na pele, nas margens onde transbordam o eu e o outro. Sorvendo em simultâneo os fluxos de meu ser e as voltas do mundo, encontrava-me longe de mim, perto do outro. Não ansiava o domínio, antes diluía-me na vida ao redor, no verso das coisas e nos vincos da paisagem. E trançado ao todo sequer lembrava-me que existia, era eu as asas dos pássaros e as curvas do vento, as rugas do mar e as mãos titânicas dos adultos. Era eu o mundo como o via, íntimo, estranho. Mesmo em seus costumes mais comuns a natureza fermentava algo de mágico, uma benévola embriaguez destilando tudo entre si, no menor dos grãos eu entrevia volumosas amplitudes, montanhas nas costas de besouros e a fé dos mártires nas hastes da grama e eu, esguio entre tudo isto, desconhecia a morte. Sentia senão eternidade, um imenso agora luzindo o corpo de todas as coisas, repleto de promessas em sua mão aberta sobre o mundo. Mas logo a vida cerrou o seu punho e para fugir do desgaste dos dias era preciso dobrar à força os seus dedos e deitar, se tanto por instantes, em sua palma riscada pelas sobras daquela ternura que antes à tudo regava. Pois cada vez mais tudo vinha à imenso custo, com sacrifício extraído do leito árido da terra e da alma fechada dos homens. Como poderia ser eu algo salvo força e bruta e cólera, ira! Raiva ante a perda do brilho, sim, vejo tudo claro agora na doçura deste líquido em minha língua, onde testemunho uma última vez a inocência e o sossego desta terra perdida, nativa, onde aninhei o início de minha vida, onde nada havia de conquistar pois tudo era meu em seu distante encanto, a minha infância. Oh, sombras cambiantes, que fazem comigo? Ocultas na medula de minhas posses, vibram em suas cavidades como os resíduos estóicos de um vingativo passado. Sob o silêncio de meus salões à vocês submeti-me, entes rugosos. E aceitei o seu rancor. Ante a luz de parcos candelabros e a solidez de certas cadeiras, entre o retinir de raras gemas e o ressoar de elmos e lancetes de estanho, sobre as tranças de toalhas proféticas e a afiada astúcia de talheres, eu pedi-lhes, amigos, que orientem-me na linguagem das coisas sem voz, na visão dos que não têm olhos, no tato do puro pensar. Em meus gestos imitei o rigor de seus corpos, em meus órgãos o pulso de sua espera, em meu pensar as trilhas de sua temperança. Com vocês percorri câmaras fundas e túneis de minha casa, desci escadas e cruzei porões, fui aos alicerces onde entre vermes e insetos e mofo e lepra prospera o encanto das coisas arcanas e borbulha o ímpeto dos renascidos. Ali encontrei, por último, um alaúde flamejante em chama azul que não mordeu-me as mãos. Eu dedilhava-o e todo o meu corpo era clarão, archote de novo começo, e caminhei através dos salões de meu palácio e tudo à volta consumiu-se nas labaredas e polvilhou em cinzas e, rendido à desordem do incêndio, ascendeu enfim às camadas mais altas do éter, indistinto em espirais de fumaça sob as leves notas de minha ária. E eu, amo de tudo em tumulto nascido, tornei-me punhado de pó. Depois fumo, e sombra, e oblívio, e turva lembrança, agora água escorrendo no sulco escuro de teu sonho, onde entoa a melodia. Da servidão dos sentidos libertei-me. Estou ao além de mim. E tateio a mobília de tua memória. Serei eu, Petrônio, o vulto de teu encanto, velando-te o sono por entre as brumas deste mundo.
Mark

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