As vidas dos filósofos
1. De Tales, dizem ter sido avesso às coisas do mundo. Não lembrava-se do aspecto de sua própria casa — encontrava-a mediante o cálculo das constelações. Certa noite caminhava contemplando as estrelas e acabou por cair no fundo de um poço. As meninas e os amigos riam-se dele. Mas alheio à débil película daquele escárnio, de dentro da terra percebeu que as bordas do poço eram o suporte perfeito para contemplar o cosmos. A firmeza da terra explicitava o andar dos astros. E da lama do mundo voou pelos céus.
2. Quando penso em Heráclito, vejo-o no silêncio da madrugada de uma noite sem lua, quando estão todos a dormir, caminhando nu pelos bosques sob a tempestade, fascinado pelo enigma e fluidez das coisas, todo um mundo em cada relance, e discutindo com os deuses, energizado nos rompantes jactantes do relâmpago, que governa o universo.
3. E quando eu vi que tudo, desde a cenoura em minha boca à face titânica de minha mãe ao primeiro abrir os olhos, desde o friso da espada à nostalgia que no sereno das noites me assalta, todo o conhecido e também o desconhecido é composto de minúsculas partículas chamadas átomos, elas próprias um mistério insondável, fiz como Demócrito, em cuja larga bocarra cabia sempre mais sorrisos, e matava-se de rir em espasmos sob a túnica e de chinelos caindo dos pés, pois o absurdo da existência é, de fato, hilariante.
4. Eis a mais oculta das verdades: Sócrates não morreu. Quem bebeu a cicuta em seu lugar foi Platão, o mais nobre discípulo. O fez para que Sócrates pudesse, agora sob codinome Platão, escrever enfim os seus diálogos. Em sua coragem o aluno venceu a morte. Era este o grânulo que faltava à filosofia do mestre, pois Platão era agora pura forma no mundo das idéias, sussurrando-lhe do além tão belos e perfeitos saberes. Fica a questão: quantos nomes cabem em um homem?
5. Winckelmann não tinha nervos na face. Quando nasceu, não chorou. Em olhos pétreos contemplava a sua mãe. Desde cedo aprendeu a expressar emoções sob o verniz da apatia, como a lisa película de sonolento oceano por onde trafegam coisas anônimas. E assim entendeu conseguir, mediante a placidez, revelar afetos em contraste, contendo sob o aparente sossego a potência de todas as faces do mundo. Superara a fisiologia ao revelar-nos que captamos o ódio, o amor, a angústia, o medo no outro não mediante o arco dos lábios ou a altura das pálpebras, e sim devido a uma telepatia típica da face. Mas era avesso aos rostos dos outros, sempre excessivos em suas sensações. Encontrou enfim seus pares na calma solenidade, na grandiosa serenidade das faces de mármore que os antigos esculpiram. Com elas viveu até o fim de seus quietos dias.
6. Difícil esquecer a noite em que sentei-me ao lado de um jovem Hegel, à convite da Baronesa de X, em seu banquete de ano novo. Primeiro serviram-nos uma tigela de melões em cubo com um prato raso de presuntos ibéricos. O jovem ao meu lado, alheio às normas gastronômicas, comeu primeiro o melão, depois o presunto, de novo o melão, depois o presunto, agitando-se em derrisória, delirante espiral, suas sucessivas, vorazes tentativas de convergir ambos os sabores, cujas notas no paladar pareciam sugerir algum tipo de síntese, e eu, tonto com tudo aquilo, tomei-lhe o pulso e ofereci um dos presuntos envoltos no melão, ao que o jovem, enquanto mastigava, agradeceu-me com uma lágrima e o sussurro úmido de Absoluto.
7. Sou eu também o cavalo que, em Turim, Nietzsche abraçou. É errada a exegese geral — o filósofo não era louco antes de conhecer-me. Foi, sadio, salvar-me da chibata. E eu em troca fiz como Xantos, mediúnico corcel de Aquiles, e entreguei-lhe a tenebrosa verdade. Salomé não te ama, eu disse, minha língua batendo na embocadura. Tolice confiar a sanidade ao amor fugidio das jovens donzelas, pensei ao testemunhar o homem corrido em lágrimas de joelhos em minha bosta. E, no Eterno Retorno de nossos reencontros, eu, tão avesso ao tautológico, testo sempre novas verdades. Já disse-lhe que a pena da irmã profanará a sua filosofia, que o seu Übermensch usará, ridículo, cuecas vermelhas, e que ele morrerá sozinho entre as tosses dos tuberculosos. Ao cambiar de horrores, exerço o maior dos males: o refutar de sua doutrina. Pois se acredita ele que nas vidas futuras tudo teima em repetir-se, como pode este equino trazer sempre novos portentos? Mas uma coisa ao menos mantém-se: enlouquece toda vez. Talvez por fraqueza, talvez por convicção filosófica. E fico eu a tentar distinguir todos os distintos impulsos que acabam por criar os mesmos gestos. Chego a pensar que a única maneira de conservar algo é, de fato, alterando-o.
8. Sartre encontrou a filosofia num coquetel de damasco. Bebeu-a e ao sentir o líquido descer nas paredes do espírito pensou poder expandir a sabedoria do néctar à toda a condição humana. Mas o mundo era maior que as bordas de um drink e seu olho extraviou-se e sua garganta foi incapaz de tragar tão difíceis dilemas morais e, sem obter respostas a perguntas impossíveis, voltou-se à literatura, onde a dúvida não é incômodo mas monarca absoluta.
9. Derrida — e isto é conhecido nas curvas mais centrais da espiral social — certa vez entrou num elevador com espelhos faceados e perdeu-se na eterna sucessão de todos os seus reflexos. Não se sabe qual dos reflexos enfim saiu do elevador quando a porta se abriu. Pouco importa também.