Formas Fantasma


If all time is eternally present
All time is unredeemable.
What might have been is an abstraction
Remaining a perpetual possibility
Only in a world of speculation.
T.S. Eliot

Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo.
Ricardo Reis

I

Uma vez passados os plátanos da entrada, o visitante contornaria a casa repleta de obras neoclássicas para enfim acessar o jardim secreto onde, conduzido pelo próprio Goethe, encontraria a inusitada escultura de uma esfera apoiada sobre um cubo — o Altar da Boa Fortuna.(1) Se o romantismo do qual fez parte apostava na autenticidade dos sentimentos desconcertantes, neste templo foi a lúcida serenidade clássica que o ainda jovem escritor optou por cultuar. Pois a artistas e filósofos a geometria desde sempre ofertou uma suposta via à verdade exata capaz não só de redimir o espírito como também de ordenar o caos existencial. Feita em 1777, dentre o clima mental iluminista de herança cartesiana, em suas formas puras a obra representa a potência da razão em dominar a natureza mediante suas próprias emanações mentais, pois advindas de um plano mais genuíno que o revelado pelos sentidos. Cuidadoso demiurgo, o humano altera as circunstâncias como quem, entre os rumores do jardim, pousa uma esfera sobre um cubo. Tal é a força e a promessa da composição clássica, onde a matemática harmoniza formas díspares num todo coeso que, não obstante as rupturas da arte moderna, foi conservado por uma série de artistas.
    Contra tais delicados equilíbrios colocou-se o minimalismo, movimento estadunidense dos 1960 que optou por articular a geometria de uma maneira distinta da experimentada pelas vanguardas. Embora houvesse semelhanças óbvias com o que chamavam de pintura geométrica europeia, como o Suprematismo, o Construtivismo, a Bauhaus e o Neoplasticismo, cultivavam distintas motivações. Rejeitavam, através de esquemas básicos e economia de meios, o método compositivo tradicional — julgavam assim promover uma arte mais natural, que já não impunha certos ideais racionalistas sobre os verdadeiros fluxos do real. “Tornou-se impossível continuar acreditando no racionalismo da arte europeia e russa. Artistas queriam conceitos credíveis, com os quais pudessem trabalhar, conceitos que não estivessem entrelaçados em alguma cosmologia”, disse Sandback.
    Viam-se mais próximos dos readymades de Duchamp, os assemblages de Johns e Rauschenberg, os baixos-relevo de Castellani e as pinturas-objeto de Klein. Pois, contrários à ideia clássica da obra como um real à parte, todos ocupavam o espaço real, eliminando “o problema do ilusionismo — o que significa libertar-se de uma das mais significativas e contestáveis relíquias da arte europeia […] O espaço real é intrinsecamente mais potente e específico do que a pintura sobre uma superfície plana”, segundo Judd. Entediam portanto suas obras como objetos presentes no espaço partilhado do mundo, dentre todas as outras coisas, livrando-se do plinto, aprofundando-se na imanência da matéria, entrelaçando arte e vida comum. Não à toa Michael Fried chamou-os de literalistas — opostos às qualidades alegóricas da arte tradicional, “desvencilhando-se de Immanuel Kant e da coisa-em-si-mesma e deixando aquele platonismo limítrofe na poeira”, disse Sandback. “Estava frustrado com toda esta bagagem excessiva, todo este absurdo gestual, todas estas precocidades decorativas em composição”.
    Na arte académica o intelecto aplica a geometria para impor-se sobre o mundo, a tudo despedaçando para depois reorganizar sob regras mais inteligíveis. A estes sofisticados simulacros o humano anseia fugir pois percebe, na sinergia entre as partes autónomas e o todo coeso, uma lógica ordenada distinta do caos ao redor — prefere o conforto de um idealizar compreensível ao desamparo do esfíngico real. Melhor faria ao aceitar não haver nada no real para ser decifrado, mas apenas testemunhado em seu esplendor. O minimalismo, portanto, abdica da composição em prol de obras cujas “partes são não-relacionais”, escreve Judd. “A forma, a imagem, a cor e a superfície são unas, e não parciais ou dispersas. Não há áreas neutras nem moderadas, não há conexões ou áreas de transição. […] A pintura é quase uma entidade, uma coisa, e não a indefinível soma de um grupo de entidades e referências”.
    Tal simplicidade encontravam também nos objetos banais do cotidiano. Clement Greenberg chega a escrever, de forma pejorativa, serem mesmo “legíveis como arte, como quase tudo é hoje — incluindo uma porta, uma mesa, um pedaço de papel branco”. Mas era justo este o objetivo minimalista, influenciado pelo livro de George Kubler The Shape of Time, cuja hipótese inicial é expandir a ideia da arte para toda a gama de artefactos humanos. Ao apropriar-se das estruturas primárias de objetos mundanos, removidos os acidentes que separam uma mesa de bilhar de um planalto geológico ou uma louça branca da lua cheia, o minimalismo visa enraizar-se num real mais imediato, anterior aos conceitos sociais que regulam a natureza da arte — como o disse Judd, uma obra tem de apenas ser interessante.
    Pela indústria também exploraram uma ampla gama de novos materiais cujos atributos naturais — seja o brilho polido da resina de poliéster ou a rica aspereza dos tijolos industriais — exibiam uma variedade distinta do método clássico onde “a estrutura e a imagem eram executadas em algum material neutro e homogéneo” num espaço pictórico em que a habilidade artística fazia a mesma tinta simular inúmeras superfícies. Também os processos industriais permitiam-lhes conservar uma austera objetividade que exibe a singularidade do material e oculta o gesto humano, marco histórico da subjetividade exaltada do romântico que coloniza o mundo sob seus fluxos íntimos. Se o desenho com tinta, segundo Stella, caracterizou quase toda a pintura do século XX, “era exatamente aquilo que eu não ia fazer. Eu não ia desenhar com o pincel”. Tencionava antes manter a tinta na tela tão boa “quanto ela era quando na lata”, conservando a força de tudo o que é intocado. O artista assim abdica da “pintura que tem uma forma ou contém formas que são emocionais”, segundo Judd, para tornar-se um vínculo neutro com algo maior que si.

Ao utilizar-se apenas de linhas tensionadas através do ambiente que, quando muito, contornam espaços vazios, Fred Sandback talvez tenha sido quem mais acentuou tal neutralidade matérica. Inaugura a sua prática em 1967, quando exibe longos paralelepípedos apoiados no piso e parede com apenas as arestas visíveis, em fios de acrílico vermelhos e pretos.(2) Em sua quase absoluta economia de meios, presença física, apreço ao material industrial, culto às formas geométricas e antipatia à composição, Sandback aceita os fundamentos do minimalismo. E no entanto a sua atitude quanto ao anti-ilusionismo, talvez o conceito mais precioso do movimento, é mais complexa do que em outros artistas. Pois ao delinear um sólido sem definir o seu volume mas sugerindo-o onde antes havia apenas ausência, Sandback acaba por explorar certos aspectos de nossos processos cognitivos que, embora em sintonia com o arcabouço teórico minimalista, consigam talvez subvertê-lo. Mas antes é preciso abordar algumas das teorias que compõe os alicerces conceituas do movimento.

II

O ímpeto realista do minimalismo é similar ao da fenomenologia, cujo fundador Edmund Husserl batizou de um retorno às coisas elas mesmas. Dedicada ao estudo das estruturas da experiência como vivenciadas pelo indivíduo em contacto com as condições presentes no real, a fenomenologia estimula-nos a um estado de presença absoluta no mundo, nem dele divorciado nem a ele submetido. A análise empírica condena-se à ilusão pois supõe ser possível ao humano apartar-se de si e habitar apenas o mundo, e a dedução racional também destina-se à fantasia do simulacro mental pois tenciona remover o humano do real — a fenomenologia assume um meio termo que visa esclarecer os processos pelos quais o real emerge para nós, entre a estrutura psíquica e a natureza dos factos externos, reconciliando sujeito e objeto.
    Em sua obra O Olho e o Espírito, o fenomenólogo Merleau-Ponty critica a dita arte clássica e enaltece alguns dos preceitos da arte moderna, sobretudo mediante a sua análise de Cézanne, que havia dedicado-se ao que seria a principal aspiração das artes visuais: a revolução perceptiva. Para Merleau-Ponty, o pintor académico dedica-se a “um artifício que apresenta aos nossos olhos uma projecção semelhante à que as coisas inscrevem na percepção comum”, demasiado comprometido com o bolor das representações convencionais para conseguir decifrar as “propriedades verdadeiras” do real. Também ilusória é a perspectiva, pois abandona o mundo para idealiza-lo numa perfeição matemática “manejável e homogénea, que o pensamento sobrevoa sem ponto de vista” como se fôssemos um ser absoluto que, fora do mundo, costura uma rede perfeita entre todas as coisas.
    Mas “não é assim que o mundo apresenta-se a nós quando o encontramos em percepção. A cada momento estamos sujeitos a um certo ponto de vista, e tais imagens sucessivas não podem ser sobrepostas”. A verdadeira experiência é sempre específica e de impossível sutura — as coisas “são rivais perante o meu olhar precisamente por estarem cada uma em seu lugar.” Meu aparato físico-mental assimila os estranhos estímulos do mundo e antes que eu possa atentar-me já opero sob a ilusão de reconhecer aquilo que acabou de apresentar-se. O erro da academia é julgar ser toda maçã a mesma maçã, quando na realidade tudo é sempre único. É deste mistério que a arte deve tratar: a conflituosa natureza do real em sua constante imanência. E Cézanne, ao buscar as formas essenciais que estruturam a experiência humana, compreende que “a natureza está no interior” — como certa vez o disse. Não satisfeito com os meros invólucros das coisas, ao invés de imitar as aparências, anseia a estrutura que nelas entrevê, em intuição tornando visível o antes invisível. Apresenta-nos, assim, o que Merleau-Ponty chamou de a “deflagração do Ser”: as próprias condições de onde o real aflora. “Essência e existência, imaginário e real, visível e invisível, a pintura baralha todas as nossas categorias ao desdobrar o seu universo onírico de essências carnais” — tal é, segundo Cézanne, o instante do mundo. “A visão é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do Ser”.
 
Como expor este substrato vitalício oculto sob a miopia da preguiça perceptiva? Deveríamos pintar “cubos, esferas, cones, como Cézanne disse uma vez? […] Isto seria por de um lado a solidez do Ser, e de outro a sua variedade”, escreve Merleau-Ponty. Tal relação entre o sólido e o variável é justo um dos alicerces do minimalismo que, assim como outrora Cézanne, também aposta nas formas puras — mas mediante outros métodos, sobretudo preterindo o plano pintado em prol do contexto real e da apropriação de objetos, numa continuação crítica de algumas das vanguardas modernas.  
    Pois embora revolucionária, a prática de Cézanne estagnou-se nos limites da própria pintura, que exige uma postura artística mais subjectiva onde, para surgir na tela, tudo é filtrado e composto pelo próprio indivíduo. “Pintura e escultura tornaram-se formas estabelecidas. Boa parte do seu significado não é convincente”, escreve Judd. E o minimalismo, ao fiar-se quase por inteiro na pré-existência de materiais, processos e lugares, sintetiza o leque de decisões e acede a uma neutralidade onde suspendem-se as preferências do artista, tornando-o canal do livre escoar da realidade. O erro da arte clássica foi afastar-se em demasia da concretude da vida, preterindo-a em prol de um panorama mental. A arte moderna aproximou-se do real mas não foi radical o bastante. Dado estarmos entrelaçados ao mundo, o minimalismo visa instaurar este intervalo perfeito donde contempla-se a própria natureza da experiência que abre-nos um real de veracidade e esplendor inquestionáveis. Tal atitude assemelha-se também ao conceito pírrico, depois adotado pela fenomenologia, da epoché — a suspensão do juízo que introduz a ataraxia, liberdade da preocupação e ansiedade (que também Schopenhauer havia explorado em sua Atitude Estética). Mediante objetos que catalisam um determinado ambiente e ancoram-nos no instante atual, o minimalismo cria o palco propício a esta neutra serenidade onde — segundo Schopenhauer — nosso ego desaparece e, menos distraídos em devaneios interpretativos e preconceitos habituais, abrimo-nos à solidez da existência. Merleau-Ponty escreve que a visão “é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser”.
    Neste despertar primordial não há moralidade nem semiótica, apenas encantada observação. Simbolizar é abandonar o real, substituindo o fenómeno pela ideia dele feita. Portanto as obras minimalistas antecedem a emergência do sentido, pois apreendidas sem o auxílio de conceitos prévios que sobrepõe-se ao imediatismo da experiência real. É esta “estrutura do acontecimento presente na carne da contingência”, agora oculta pelos coágulos de nossos vícios percetivos, que o minimalismo quer apresentar-nos.

Para desvencilhar-se de ilusórias composições, compreendendo enfim os atributos de nossa mais primordial percepção, o minimalismo utilizou-se da Gestalt, teoria criada pelo filósofo Christian von Ehrenfels e que entende a nossa percepção como holística: assimilamos o real não como partes autónomas em harmonia, mas totalidades absolutas cujo valor é distinto da simples união entre as partes que o compõe — como quem assimila uma melodia sem compreender as qualidades das notas isoladas, tendo tal fraseado uma aura inexplicável à mera soma de suas partes.
    Os princípios perceptivos da Gestalt foram adotados como métodos artísticos pelo minimalismo: continuação, fechamento, similitude, figura-e-fundo, proximidade e simetria. Assim, o minimalismo visa facilitar a assimilação mental dos fenómenos em obras que são sempre uma totalidade compreensível, nunca a composição de partes autónomas.
    Merleau-Ponty, pela Gestalt influenciado, escreve que no suposto encontro entre um espectador e um cubo, não seria-lhe necessário esgotar todos os pontos de vista para construir uma imagem mental fidedigna. Não deduz-se o cubo idealizado após a experiência, pois percebido de maneira tão automática quanto percebemos os nossos próprios corpos, coisa jamais testemunhada por inteiro e no entanto nunca duvidada. “O fantasma do espelho arrasta para fora a minha carne e, do mesmo passo, todo o invisível de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo […] ele é o instrumento de uma universal magia que transforma coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu no outro e o outro em mim.” Ao intuir a própria totalidade, o espectador intui também a do cubo — sua mente completa as seções ocultas do fenómeno não em devaneio fantasioso mas num compromisso analítico com o real.
    Completamos o mundo mediante as inclinações de nosso próprio sistema cognitivo — se um fenómeno parece incompleto, preenchemos as suas lacunas, tornando o real algo a mais do que à simples soma de elementos. Muitos minimalistas acolhem tal procedimento. Talvez nenhum com a veemência de Sandback que, em sua estranha aplicação dos princípios gestálticos, talvez vise não esclarecer os nossos processos psíquicos mas justo revelar a inusitada riqueza presente em suas fragilidades fundamentais.  
    O princípio de figura-e-fundo revela entendermos o mundo como totalidades cheias dispostas num campo vazio, e como algumas configurações mais complexas confundem o nosso discernimento acerca a natureza dos fenómenos. Nas obras em que dedica-se ao contorno de vazios, Sandback estressa um dos nós essenciais de nossa percepção, levando-nos à incerteza de baralhar as figuras e os fundos, permutando as densidades entre o cheio e o vazio. “Vejo um espaço adensado aqui, um espaço esvaziado ali ao lado. E a arquitetura apresenta outro tipo de espaço, e então minha linha é mais complicada que esta simples questão figura-e-fundo. Penso que este tipo de complexidade motivou-me a livrar-me do ‘meio’”. Cria assim armadilhas que subvertem a lucidez perceptiva do minimalismo e levam-nos a questionar a nossa suposta sintonia com os parâmetros do real — seria a nossa intuição apenas fantasia subjectiva? Interessante notar que, embora cultive um distanciamento do cânone minimalista, tal dúvida também reforça-o pois garante sermos co-construtores do real, separando a aparência da coisa-em-si — “fantasia kantiana” que a fenomenologia abdica. Não importa a verdadeira natureza do espaço, o único real à nós relevante é aquele que construímos entre nossa cognição e as condições do mundo. Mas se o fenómeno pode tornar-se, dadas as corretas circunstâncias, tão nitidamente inexato, como não duvidar da validade do real como o percebemos? O fantasma cartesiano volta a sombrear-nos. “Penso que meu primeiro fascínio por esta situação foi como ela permitia-me jogar com algo que tanto existe quanto não existe. A coisa-em-si era tão material quanto poderia ser — um volume de ar e luz sobre a superfície do chão. Mas ao molda-lo, a forma e dimensão ganhava qualidade ambígua e transiente”.

III

Para Merleau-Ponty, mesmo a imagem de um cubo perfeito não emana do solitário intelecto, mas através da “espessura do mundo pela experiência perceptiva, pois a coisa e o mundo não me são dados por qualquer ‘geometria natural’”, e sim numa conexão existencial onde mesmo os lados do cubo são por mim percebidos como distintos uns dos outros. O filósofo acessa, assim, o contraste fundamental minimalista: ao submeter a perfeição racional de objetos geométricos ao infindo câmbio das circunstâncias — seja do espaço real, da inconstante percepção do espectador ou das nuances matéricas — o minimalismo tensiona o ideal universal com o empírico particular, convergindo na obra todo o alcance existencial disponível ao humano.
    “Reconhecemos que o mundo é 90% acaso e contingência. A pintura antiga dizia que existe mais ordem no esquema das coisas do que admitidos hoje”, escreve Judd. Assim, ao acolher o acaso, o minimalismo transforma o outrora uno em infinito — do mesmo objeto emergem inúmeras construções mentais, seja entre sujeitos diferentes ou entre o mesmo indivíduo em distintos momentos. Tal inesgotável experiência não advém de sua multitude interpretativa, mas justo da ausência de sentido. “Não há nada ali para esgotar”, escreve Michael Fried. “É infinita como uma estrada circular”. O obra torna-se a sucessão de impressões nascidas a cada nova situação — como as stacks de Judd, onde os elementos acumulados são similares o bastante para configurar uma contínua repetição mas distintos o suficiente para garantir a eterna renovação da experiência. “O próprio espectador estabelece relações ao apreender o objeto de várias posições e sob variáveis condições de luz e contexto espacial”, escreve Robert Morris — antes de sua chegada, a solitária obra encontrava-se incompleta em sua suposta perfeição, invisível como um sólido platónico, virginal em seu isolamento. No contacto com o espectador, de imediato nasce ao desintegrar-se em fragmentárias singularidades. Nas Floor Pieces de Carl André sente-se as cicatrizes do que à distância era impecável quadrado, e na Eight Sided Pyramid de Sol LeWitt o artefacto antes imaculada brancura palpita num prisma de cinzentos criados pelo contorno do espectador. E sendo a nossa percepção uma busca de totalidades compreensíveis, então cada lampejo perceptivo apenas informa a constituição mental de um novo paradigma, desta vez não mais ideal anterior à experiência mas modelo surgido através dela — a complexidade dos particulares apenas reforça o uno oculto que unifica-lhes. Esta presença ausente é, segundo Morris, a “força da constante, conhecida forma, a Gestalt”.

Neste fluxo de variações perceptivas e projeções mentais, os aspectos físicos das obras atuam também como âncoras de certeza. Embora a sua simplicidade inicial guarde surpreendentes oscilações, as stacks de Judd não confundem o espectador nem ocultam a real natureza dos fenómenos. Todos os elementos visam esclarecer a sua apreciação perceptiva, sem empobrecer a riqueza da experiência. Já em Sandback este diálogo minimalista entre o empírico específico e o racional absoluto adquire outro caráter.  
    Se outros minimalistas costumam empregar figuras geométricas em materiais densos, Sandback regride ainda mais à pura racionalidade. Desprovidas de evidências formais e materiais que as relacionem a terceiros ou apontem precedentes, suas obras talvez alcancem o limite da auto-referência. Também ao utilizar linhas tensionadas, quando muito contornando espaços, atinge talvez o mais ideal dos elementos, pois redutível ao basilar conceito da menor distância entre dois pontos — é, portanto, o manifestar de um intervalo. “Eu nunca penso sobre o que está dentro de minha corda, pois a corda é uma contradição. Ela parece sugerir haver uma linha ali […] Mas eu não sei o que há ali dentro”. Em obras como a realizada para a galeria Jurgen Becker, em Hamburgo no ano de 1993,(3) o artista explora um conceito típico de Judd: a repetição equidistante. Mas aqui quase tudo é dúvida. As linhas compõem cubos fantasmas cujos planos jamais são esclarecidos. Distintas perspectivas fornecem apenas aparências contrastantes, não esclarecendo a forma escultórica. Embora leves, as cordas simulam peso, como se apoiadas na parede. Ou talvez fossem quinas de objetos maiores, continuados através dos planos da arquitectura. A depender do instante perceptivo, a sua ausência de lados permite-nos vê-los não mais como cubos, mas quatro superfícies fletidas sobre um retângulo ou degrau invisível prolongando-se abaixo. Pois tendo todas as zonas igual densidade, pode-se entender os intervalos como cheios — e os cubos talvez então como quatro perfurações num ambiente todo espaço positivo. Se na experiência minimalista o espectador transita entre as dimensões do suposto e do percebido sem jamais confundir quais estímulos vêm de cada região, em Sandback tal zona é quase um dédalo onde as origens confundem-se com as chegadas pois não sabemos em exato o que advém da mente e o que provém do objeto.
    Não há falsidades — ainda mantém-se clareza em relação à natureza da situação, mas ela encontra-se atenuada o bastante para corromper a confiança e despertar incertezas sobre a validade de nossas dinâmicas mentais. “É simplesmente uma questão de penetração — tornar a situação tão densa e complexa quanto possível sem falsificar nada”. Os seus métodos ainda são minimalistas, mas talvez tenha-os estendido até o ponto de ruptura, pois as qualidades de sua obra não informam novo paradigma gestáltico, mas justo impossibilitam a sua execução mental. “Uma escultura que tornou-se menos algo em si e mais uma difusa interface entre eu, o ambiente, e outros povoando o ambiente […] Ainda escultura, mas menos densa, com uma ambivalência entre exterior e interior”, escreve Sandback. Estivesse o artista enganando-nos, a fractura seria menor pois a fuga ao simulacro fortalece a solidez do real, mas suas obras operam justo na dúbia fronteira que mais impacta. “Se estivesse apenas vendendo ilusão, sentiria-me como um vendedor de óleo de cobra”.
    Longe de exclusivo a Sandback, o emprego do espaço é comum no minimalismo e assemelha-se à prática da arquitectura, surda melodia que em ritmos reparte e tempera o tecido do real, intervindo “em todos os atos da existência e condicionando as relações vitais do homem com a realidade”, segundo Argan em seu livro sobre Gropius. Seriam os espaços de Sandback sempre o mesmo, ou teria cada contorno a capacidade de inaugurar um espaço tão distinto quanto os fios que o definem? O espaço cartesiano da perspectiva pictórica é homogéneo, pois criado por grelha matemática tão neutra quanto a divisão do tempo pelo relógio. Talvez o espaço real, sujeito ao acaso e às circunstâncias, seja mais variado. De facto grande parte de seu processo era intuitivo ao contexto específico, onde o artista assimilava o ambiente expositivo para discernir a perfeita intervenção. “A obra considera os elementos de uma situação mais ampla: a natureza e estrutura do meu estar no espaço, a natureza e estrutura do espaço, e as possibilidades que estes dois oferecem”. E assim entende-se o espaço não como quantitativo, mas qualitativo. Também Judd escreve que “não há espaço como algo que continua por todo lugar e não há tempo que perpetua-se indefinido e é algo por si só. Eles são feitos por algo acontecendo neles […] tempo e espaço neles mesmos são apenas o que sentimos em relação a eles.” Matizado pela singularidade da experiência, tudo especifica-se. Talvez por isto a perspectiva seja uniforme: Alberti pensava o espectador não como sujeito, mas olho flutuante. Sandback portanto não manipula, em directo, o ar mas configura o contexto que nos permite reavaliar o que antes entendia-se como mero vazio, numa estranha ponte conceitual com os readymades de Duchamp — mais ainda com sua obra Air de Paris.
    Em obras posteriores, Sandback abdica do volume sugerido em prol de linhas solitárias cortando o espaço do ambiente, como seções de uma corda de totalidade oculta ou mesmo a borda de algum volume imenso.(4) “Era inevitável perceber que as esculturas não acabavam com as linhas, e que a situação havia tornado-se mais complexa”. Tal incompletude é realçada em obras como a feita na galeria Kunstraum, em Munique,(5) que ao ocupar diversas salas, impede a percepção total e imediata do espectador, subvertendo o costume minimalista. “Sempre trabalhei num campo muito mais amplo que o campo visual […] Não é fácil saber onde está, não é claro.” Embora cada parte surja do mesmo substrato estrutural, permitindo-nos supor a totalidade sem esgotar toda a obra, os ampliados intervalos entre os sucessivos testemunhos precisam fiar-se na fugacidade da memória, corrompendo a experiência minimalista. Ironicamente, assim acaba por realçar mais as partes que o todo, aproximando-se do belo clássico da academia.  
    Ainda assim, há nestas obras uma sintonia ainda maior com o contexto, onde o artista articula os atributos do ambiente mediante o mais subtil dos impactos. Na obra para o Palais Thurn und Taxis, em Bregenz,(6) emprega um paralelismo que acentua a robusta horizontalidade da estrutura de madeira. Em 2003, para a Dia:Beacon, tensiona feixes centrais que encontram o cume da estrutura, tornando uma longilínea galeria num espaço de ascensão vertical.(7) Não trata-se de uma subversão do lugar, mas o realce de alguma potência ainda latente ou subutilizada. “A linha é um meio de mediar a qualidade ou timbre de uma situação […] é a tonalidade ou, se preferir, totalidade de uma situação que é o onde estou tentando chegar”.
    Este aspecto circunstancial é acentuado em suas obras tardias, cuja pluralidade de linhas compõe uma qualidade rítmica adaptada a cada ambiente — da linear e equidistante à mais dispersa.(8) Algumas mesmo lembraram-me o irradiar solar do Retábulo de Gante, onde Jan Van Eyck estrutura os raios de luz como os aros retilíneos de uma roda dourada que, assim como em Sandback, explicita o esqueleto dos fluxos antes invisíveis de um espaço “reduzido ao seu núcleo essencial”. Tais simples mecanismos, que “não se parecem nem com ordem nem com desordem”, são também por Judd explorados em sua Artwork: 1980, onde opera segmentações espaciais num padrão cujo ritmo não é clássico, mas intuitivo. Contorna assim o simulacro académico para articular o real segundo as possibilidades disponíveis neste agora sentido em absoluto, no oblívio de qualquer tradição. Tal arte não tem memória, nem expectativas — prefere as possibilidades do presente. “A ordem não é racionalista e prioritária, mas é simplesmente ordem, como a de continuidade, uma coisa depois da outra […] As formas, a unidade, a projeção, a ordem e a cor são específicas, enfáticas e potentes”, escreve Judd.

Caso haja uma implícita coerência entre um sujeito não raro instável e um real por vezes contraditório, Sandback talvez nela acredite mais por hábito que convicção. Enquanto contorna vazios inconciliáveis com as imagens mentais deles criadas e alonga silhuetas ao além dos limites visuais do espectador, sua impecável intuição também revela-nos os verdadeiros aspectos dos ambientes habitados. Tal insolúvel dialéctica, presente em toda a sua prática, instaura um senso de incerteza que talvez ainda revele-se um mais efectivo retorno ao real do que a suposta clareza do minimalismo canónico. Pois quando incapazes de resolver a natureza do fenómeno, mais ancorados estamos numa realidade que não recalca o seu mistério essencial, mas exibe-o num encanto estimulado pela nossa própria exaustão perceptiva.
    Se é vero que o ápice de todos os processos é o paradoxo, ao radicalizar os mecanismos minimalistas, Sandback inverte-os no que parece-me ser o declínio barroco do movimento. O minimalismo esclarece os processos mentais — Sandback, ao clarifica-los ainda mais, acaba por turvá-los. Sua ambiguidade, ao contrastar o que é visto com o que estamos predispostos a ver, lembra-nos não só da riqueza dos factos quanto da nossa abertura interpretativa às múltiplas possibilidades de cada evento — primeiro revela a inutilidade de nossos preconceitos perceptivos, depois reforça a nossa inerente disposição a novos hábitos. Que esta nova imagem nunca adquira clareza pode mostrar-se uma crítica convincente aos simulacros artísticos, que operam sob o dogma da fabricada lucidez. Em suas obras a dúvida não encerra o mundo, antes expande-o.  
    E o espectador que aprendeu a recusar a composição racional do Altar da Boa Fortuna para acreditar ao menos na clareza imanente do minimalismo, em Sandback é levado à deleitosa frustração de supor, quem sabe, ser a neutralidade perceptiva apenas mais uma ilusão. Mas sendo o louco a essência do sábio, pois o único capaz de atingir os limites da sanidade para então entende-la melhor, talvez o espectador venha a compreender que flertar com a incerteza é o tónico perfeito para outro tipo de certeza. “Ilusões são reais e a realidade é alusiva. Eu não gostaria de analisar isto de um lado ou de outro”.

BIBLIOGRAFIA

Argan, Giulio Carlo. Walter Gropius e a Bauhaus. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

Eliot, T.S. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Fernando Pessoa. Odes de Ricardo Reis. Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).

Fried, Michael. Art and Objecthood, disponível em: https://www.artforum.com/features/art-and-objecthood-211317/

Judd, Donald. Objetos Específicos In. Cotrim, Cecília e Ferreira, Glória. Escritos de Artistas 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

Judd, Donald e Stella, Frank. Questões para Stella e Judd. In. Cotrim, Cecília e Ferreira, Glória. Escritos de Artistas 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

Kubler, George. The Shape of Time, London: Yale University Press, p. 1.

Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Merleau-Ponty, Maurice. O Olho e o Espírito. Pontinha: Nova Vega, 2023.

Sandback, Fred. Imagens e textos disponíveis em https://www.fredsandbackarchive.org/

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