O Litoral



Zás! O automóvel disparava na rodovia, ainda meneando pelo recente solavanco. Sua inquietude é ampliada a uma escala cósmica por um sol de cobre que impera o zénite como um holofote atento a cada gesto, enquanto no outro lado do mundo uma lua invisível alonga a sua aura para a tudo sossegar num augusto descanso. No céu algumas gaivotas sustém-se imóveis, as asas largas contra o vento, já outras flecham o ar.
    “Temos mortalhas?” Ele apertou o volante até os músculos saltarem dentre os ossos das mãos, não levantando o braço sequer para ajustar o retrovisor enviesado. O calor geme nas janelas, abafando o ambiente do carro. Ela súbito despertou, qual boneco de corda solta.
    “Claro, creio que sim. Quer dizer—, não sei. Deixe-me checar. Mas vai fumar? Tenho frio, na pele.” Coçou a testa e precipitou-se ao porta-luvas, deixando uma garrafa vazia cair ao chão, em meio ao seu desconcerto. Apertou a embalagem de mortalhas, vazia. “Não há problema”, disse mais alto do que supunha. “Respiremos, então.” E abriu a janela. O vento projeta-se em baforadas para dentro do carro, ribombando o ambiente numa grosseria aerodinâmica que assustou-o, embora não movesse um músculo de seu teso corpo. Ela fechou a janela, buscando na bolsa algo que tampouco encontrou, e levantou-se sobre o assento para levar a barra da camisa à sua testa molhada. Ele repeliu-a com um golpe de cotovelo. Ela desequilibrou-se de volta ao assento.
    Ele desculpou-se, após certo tempo.
    “Quer estacionar?”
    “Prefiro não. Impossível.”
    Ele parou de viés, na borda da estrada. O carro de trás buzina, ultrapassando-os num rasgo sonoro. Ela saiu pela porta e contemplou os campos de aveia, suas hastes duras como bronze e indiferentes às pelejas humanas. Seu peito latejava, em meio à letargia do mundo. Ele assomou ao seu lado e esticou-se de quatro no chão, como um bicho que examine a própria integridade. Ela levou as mãos à sua nuca, ao que Ele levantou, alongando-se para trás com o peito estufado. Inspirando o ar espesso em aparente remorso.
    “Mais vivos, agora”, Ela forçou um sorriso.
    Ele voltou-se ao carro e passou a mão nos rompantes de lama que cobrem este lado da lataria. “Ouviu o agudo que ressoou quando ele resvalou em nós?”
    “As aulas de meu pai serviram-te para algo, ao menos”.
    Ele suspirou, de sobrancelhas elevadas. “Foi por pouco. Por um triz.”
    Ela de novo estendeu os olhos ao redor, modulando-se ao lento compasso da paisagem. “Sobre os cavalos de Tróia, Virgílio escreve serem tão leves que atravessam um campo de aveia sem envergar um caule sequer.”
    “Suponho ser eu então o teu equino favorito. Ao menos não rompi nenhum, ao desviar.”   
    “É estranho. Sinto-me suave, de repente.”
    “Descansamos um pouco?”
    “Sim. Há tempo, ainda.”  

Estacionaram numa loja de conveniências, à beira da estrada. A porta fechada não cede, mesmo quando Ele forçou todo o seu peso sobre a maçaneta. Por detrás da poeira nas vitrines, as cores gritantes das embalagens de chocolates e das latas de refrigerantes demarcam as intactas estantes, e um imenso mascote em papel-cartão constrange a delicada solenidade dos pães amontoados na bancada, com um pequeno cálice tingido de vinho, ao seu lado. Escutaram rumores, no lado de trás do terreno. Ele volteou a construção. Encontrou um homem gordo de mamas avantajadas, nu, mas de boné na cabeça, com uma mangueira lavando um homem deitado de bruços no chão.  
    “Não há ninguém, saíram faz tempo”, diz ao ser perguntado, apresentando-se como G. Ele contemplou os jatos d’agua cristalina sobre o corpo pálido, e perguntou-lhe se não poderia beber um tanto. Tinha imensa sede, na realidade. G. diz-lhe não recomendar, a água é suja. Ela fitava o corpo caído.
    “É um resíduo”, G. diz. “Não era suposto estar aqui”.
    “Nota-se”, Ele disse. “Isto, se vê. Um morto nos fundos de um posto”. A frase pareceu-lhe estúpida, quando dita, não horrorizando-lhe como previra.
    “Rego-o, para renascer. Como se faz com as plantas.”
    “Mas estamos no asfalto. Precisa enterrá-lo.”
    “É verdade”, G. diz. “Não é para regá-lo. Quero empurra-lo ao longe. A senhora perdoe, não tenho malícia para mentiras.”
    “Parece bem confortável, deitado aí”, Ela disse. Sentia sono, pois na vida não cabia o vago horror que formigava-lhe os olhos.     
    “Deveria levá-lo para lá, mas não quero tocá-lo. Nunca tinha visto um cada-a-ver antes”, G. diz.
    “Cadáver”, Ela disse.
    G. faz que sim, com a cabeça roliça. “Nunca havia visto um. Não era suposto estar aqui.”
    “Onde deveria estar, então?”, Ele disse.  
    “Mais para o lado de lá”. G. aponta o nariz a um campo indistinto, onde há um bosque de ciprestes. “Depois ainda das árvores”. E coçando a testa sob o boné, “o problema é que os frentistas do posto de lá avisaram que arrastariam uns desses para cá. Não acreditei.” E olha de novo o cadáver. “Os patifes.”
    “E por que se dariam ao trabalho?”, Ela disse.
    “Pois são muitos, senhora. Eles não aguentam mais.”
    “Mas então aqui é perigoso! Nós mesmo, minutos atrás—”
    “Não, minha senhora. Aqui é seguro.”
    “E onde estão as suas roupas?”, Ele disse.
    “Nunca usei-as.”
    “Apenas um boné”, Ela disse.
    “Há também o avental da loja, mas não temos clientes. E sinto frio na careca. Não é um crime, pois não?”
    “De bom tom, não é”, Ela disse. As carnes do cadáver esparramavam sobre o asfalto como massa fermentada que envolvesse-lhe o cansaço, amortecendo o seu corpo num confortável casulo onde poderia dormir até o fim da vida. Tornar-se as coisas contempladas é como despertar ao sono, aceitando em si a dormência daquilo que não importa-se com a nossa angústia.
    “Pensando bem”, G. diz após recompor-se de uma pausa em que fitou-os de cabeça inclinada, “valha-me deus, não é que—”
    “Você enoja-me”, Ele disse, mais por hábito que convicção. Entrevia uma placidez monstruosa em todas as coisas agora isentas do tumulto dos dias e da melancolia das noites — tudo havia revelado-se, talvez, mas ainda conservando a antiga silhueta. Como alguém que enfim exibisse a face por detrás da máscara, tendo ambas a mesma feição. Tudo era, sentia-o, em absoluto si mesmo. “Esta estrada é circular”, Ele disse, como se estupefacto por uma longa reflexão. “Não há destino, nem sentido final. Vai a lugar nenhum.”
    “Nosso compromisso!”, Ela disse. “Atrasamo-nos.”
    “Tentei empurra-lo com uma vara, mas tive nojo. Sentia-o chacoalhando em meu punho”, diz G., indiferente à pressa do casal. “Pensei em afasta-lo com a água, mas não resultou.”
    “É absurdo”, Ela disse, “empurrar um cadáver com água. Por que não usa uma corda, ao menos, para puxa-lo?”
    “E quem vai amarrar? Os senhores? Assim posso limpa-lo, ao menos,” e volta a rega-lo. “Talvez depois não seja tão estranho.”
    “Mas pensei que esta água era suja”, Ele disse.
    “É verdade, senhor. Aí me pegou”, e fecha a água.  
    O cadáver cospe a água e, moroso, resmunga algo. G. chuta-o, num acesso de raiva. A gordura não retém a sua agilidade. Vê-lo mover-se é quase milagroso, como se pudesse impulsionar-se aos céus com um ligeiro golpe dos dedões.
    “Não faça isso! O homem vive.” Ele precipitou-se ao corpo, mas algo reteve o seu avanço.
    “O que houve, querido?”
    “Nada”, disse duvidoso enquanto fitava o cadáver. “Não é nada.”
    “Acalme-se, senhor. Ele não vive. É que não sabe onde está.”

Indecisa dentre a luz vitrificada de uma lua em ascensão e a desbotada espessura de um sol que esmorece, a cidade de Setúbal desvela-se outra. Também os holofotes dos barcos deslizando em sua baía baralham-se com os néons dos edifícios comerciais que despertam para a esperança da noite como relâmpagos indolentes parasitando as fachadas. Também a chuva recente, agora derramada nas calçadas de pedra polida refletindo os faróis dos automóveis, evoca o verdadeiro talento de uma cidade que anseia ser, mais que uma arquitetura sólida em si, um mero suporte para a alquimia de luzes. Seu carro vagueava em corredores ladeados por prismas cromáticos de tons mudos, formados mais pela melancolia das cores do que pelas cores em si. Pessoas montam mesas de ferro nas calçadas, suas costas abençoadas pelas capas de cor emanando dos edifícios, ou caminham de braços dados pelas ruas sem sombra de ansiedade, ou ainda olham o mar, não demonstrando interesses específicos. Há aqui uma aura de suspensão, ambos sentiram-na embora não tenham comentado, talvez pois receassem romper o silêncio litúrgico de um momento que esquecera-se de participar do tempo, talvez por terem sido agraciados por uma apatia contrária a qualquer ação, que esvazia-nos de nossa identidade para entulhar-nos com o espírito de todas as coisas.  
    “Penso estarmos perdidos”, Ele disse enfim.
    “E por que o diz? Já viemos tantas vezes.”
    “Pois dirijo sem destino, e até agora não corrigiu-me. Há tempos estamos na mesma rotatória.”
    Ela tomou um instante, para despertar de sua dormência. Atentava-se a uma ave caminhando na relva, como as aves de sua infância, quando ainda não aprendera que voavam, buscando-as no chão, e maravilhando-se quando desapareciam. Mas esta ali permaneceu, sentando-se enfim, talvez por não ter aonde ir. “Claro, entendo. Entre na segun—, ou seria a terceira?” E viu de novo o mar, distante num sulco entre os edifícios, e disse “agora, meu amor” com imensa calma.  
    “O que viemos aqui fazer? Não sei se recordo-me.”
    “Jantar com meus pais, creio.”
    “Mas não viajam?”
    “Sim? Bem. Foi para passarmos a noite no hotel.”
    Ele arrastou a ponta da língua pela parede seca da mucosa na esperança de ali escavar a lembrança, mas movia apenas massas de areia estéreis incapazes de revelar a nítida silhueta do passado. Pensava nos tons de terracota dos carpetes, e nos padrões náuticos das paredes, e na gentileza do concierge, e no perfume de lavanda dos elevadores, mas nada retinha, suas formas desfazendo-se em amontoados indistintos. “E já estivemos num hotel de Setúbal?”, Ele perguntou enfim.
    Ela contemplava o oceano, e as montanhas mais atrás, ali imaginando um pequeno monastério onde vivia um monge solitário e zeloso que passara a semana a preparar-lhes duas camas, nivelando os pés e lavando os lençóis, agora afofando os travesseiros em contida excitação, suas mãos perdidas nas largas mangas do hábito e os pés juntos, em sandálias. “Vire à esquerda. E siga pelo portal até a fileira de carros.” Não estivesse ela envolta numa aveludada letargia, teria decerto estranhado a obediência de seu marido, tão distinta de sua teimosia usual. Pouco importa, também, a qual lado viramos. O tumulto das circunstâncias é apenas o disfarce de um universo anestesiado aos nossos objetivos. Decisões não são importantes — por que tomá-las?  
    Estacionaram atrás de um automóvel branco com varas de pescar que pendem, aracnídeas, das janelas. Após breve intervalo desponta adiante, como um imenso inseto, uma embarcação que resvala a sua carapaça pelo brilho pálido da baía, repleta de antenas giratórias e hastes delgadas cujos movimentos incoerentes parecem sintonizados a longínquos acontecimentos em nada semelhantes ao marasmo da cidade e das embreagens dos carros em fila. No porto encosta delicada, reclinando a rampa por onde os automóveis ocupam, aos poucos, o seu vazio interior. Homens delgados de pulsos velozes conduzem a todos em sonolenta segurança, esgueirando-se por entre as latarias para melhor determinar o lugar de cada um. Enfim estacionados, Ele súbito fez menção de sair, enquanto Ela preferiu descansar, quem sabe dormir. Foi-lhe difícil escapar pelas frestas das portas. De lado percorreu tais corredores estreitos, buscando alguém em posse dum copo d’água. Os operários disparam dentre os lampejos refletidos nas superfícies dos carros. Perseguindo-os, complicou-se. Preso no nicho entre dois automóveis, as costas coladas no vidro de um furgão e os joelhos abertos sobre os faróis de um conversível, uma das mãos na capota para não cair à frente, desperta enfim a misericórdia de um deles.
    “Ajuda, senhor?”
    “Água, meu querido.”
    Como o operário não demonstra compreender o mais banal dos pedidos, Ele resignou-se ao ridículo de estender o polegar da mão livre à boca aberta. “Água. Tens aí?”
    “É pena que não.”
    “Mas como assim?”
    “Ao que parece, não fomos reabastecidos, hoje. Não há estoque no barco. Apenas ao capitão, naturalmente.”
    “Naturalmente. E onde posso encontrá-lo?”
    O operário, agora solene, fita-o nos olhos para agravar o instante, preparando-o para a memorável doutrina. “Ao capitão, ninguém perturba”, diz categórico. E relaxando a postura, “Tente a casa de banho, no terraço de cima. Queira controlar-se, é breve, a viagem”.
    Ele abaixou a cabeça e viu uma gota de suor despencar da testa para ribombar na capô do conversível, dali deslizando ao seu joelho, que pressionado entre os pára-choques da frente e de trás, começava a formigar. “Meu senhor”, o operário diz. “Poderia ajudá-lo?”
    Ele disse que sim, poderia.  
    “Pois não.” Sua mão estende-se num vagar quase sagrado, ultrapassando o seu peito e contornando a sua cintura, descansando enfim no fundo do bolso direito, cuja distância obriga-os a colar bochechas. Enfim retira dois bilhetes, picando-os como se temesse ferir ao papel, e recolocando-os no mesmo lugar, talvez para reaver à sua bochecha o suor que ao outro transferira. De novo ereto, recompõe-se penteando os cabelos com as mãos. “Cumprimentos, senhor”, diz antes de disparar a outro canto, deixando o pobre homem na mesma posição, da qual ele enfim escapou quando o proprietário do conversível veio buscar a garrafa que deixara no aparador, bebendo o seu último gole e, num acesso de caridade, soltando o freio de mão para permiti-lo um tão necessário acréscimo de espaço.  
    No terraço, a cabine de banho encontra-se trancada. Esperou um tanto, depois martelou-a de mão fechada, sua porta oxidada que parece muito mais antiga do que todo o restante do navio.  
    “Pois não?” É estranho o tom de voz, abafado pelo metal da porta.
    “Ainda demoras? Pois venho em busca d’água”.
    “Meu filho, a não ser que pretenda esbaldar-se na pia ao lado de um velho que caga, será preciso esperar”.
    “Não há problema, posso fazê-lo. Na realidade, será uma honra.”
    Após certa hesitação, o velho diz “Meu filho, não dá. Convenhamos. Peço desculpas. Sua mulher se constrangerá.”
    Ele apoiou a testa na porta, as palmas abertas ao redor. “Tenho de encontrar o capitão, é o único jeito. Sabe onde está?”
    “E como não haveria de saber? Sou eu o capitão.”
    “E tens água, na cabine de comando?”
    “É evidente. Dou-lhe um tanto. Apenas espere-me sair. Mas já aviso — demora, ainda.”
    “Mas quem conduz o navio, agora?”
    “De fato, é uma boa questão”, e após hesitar possíveis respostas, diz “as correntes, creio.”
    Voltando-se à paisagem, a lua alinha-se sobre a cabeça de sua mulher para despejar-lhe lampejos pelos cabelos que, imóveis nas costas, eram como uma coluna de cristal que sustentasse o domo celeste ou um véu de vidro para preservar o espírito da inocência de um mundo que agora tampouco parecia interessado em assalta-la. Ao seu lado e mais abaixo, um sol cinzento já convive com a bruma marinha que liberta-se das águas para tingi-lo em sua nebulosidade. Sob esta alquimia de matizes, o navio refulge esquálido, como se todo esculpido de um diamante.  
    “Meu filho, não emprestaria-me uns tostões, por acaso? Esta sanita é sovina que só. Pede moedas para a descarga”, diz o capitão, ainda dentro da cabine.  
    “Tenho sim, algumas”, e checou o bolso esquerdo. “Quatro de vinte e cinco.”
    “Perfeito. Deslize-as por debaixo da porta, por favor.”
    Ele o fez.
    “Estão salvos. Cá entre nós.”
    “Como assim?”
    “Imaginas entrar aqui depois de mim, sem descargas? Também sua mulher, talvez toda a embarcação, sofria. Mas alerto-lhe, ainda falta.”  
    Indo à Ela, abraçou-a por trás. Uma lufada de vento parece usurpar as sombras de todas as coisas. “Não dormes?”
    “Veja”, Ela disse. Contemplaram então um oceano todo branco, pois multidões de medusas arrastam-se morosas sob o espelho d’agua, as bordas de suas alvas membranas dançando ao sabor das marés como fantasmas alcoolizados na leveza do além, esquecidos de assombrar-nos ante o irresistível empuxo de uma energia maior, ou os vestidos de donzelas invisíveis, suas barras flutuando sobre o chão, ou os irisados orvalhos nos ramos de abetos que perfumam o princípio do inverno, ou as pérolas no colar das mães quando, antes de dormirmos, abaixam-se para beijar-nos a testa, ou a seiva que lacrimeja quando sulcamos o tronco da seringueira, ou as pelotas que correm a relva nos domingos de futebol, ou sinos calados badalando o juízo final, numa lentidão que ignora a existência do tempo, ou os dentes de siso perdidos sob o travesseiro e que tempos depois descobrimos, no estado de graça de um mecenas oriental, num estojo de marfim sobre a velha cómoda, ou os cogumelos despontando entre as raízes das árvores por nós coletados com o auxílio daquele amável, imundo cão cuja verdadeira cor ninguém conhece, mas nós o sabemos, ele é branco como os coalhos de leite no chá de hibisco de nossa avó, quando a chuva fina impele-a a reconfortar-nos, ou o bule branco de onde nossa tutora bebia ao ensinar-nos a tabuada e o passé simple, sendo-nos agora impossível contar uma história em francês sem sentir o aroma de café.   
    “São quase abstratas”, Ele disse. “Pode-se ver o que for, nelas.”
    “Imaginamos muita coisa, mas o real é sempre maior. Tudo é verdade. Sonhar é desvendar um fato até então desconhecido.”
    “Pensa serem todas iguais? Ou distinguem-se?”
    Teriam as medusas pais e mães, Ela pensou. Amantes, memórias? E tentava lembrar-se de sua vida. De seu primeiro beijo. Daquela tarde em que seu pai ensinou-lhe a dirigir. De quando por alguns minutos perdeu-se, ainda criança, de sua mãe numa feira de natal abarrotada de estranhos. Estas imagens que emergiam do passado, seriam apenas as suas? Ou lembrava-se das vidas de outros? Fôssemos nós as medusas, seria a mente humana o oceano? Um fenómeno cósmico que atravessa-nos todos, suas correntes aparando as arestas de cada identidade para despertar a nossa essência comum em tudo espalhada — cada indivíduo contém o todo, sendo a mesma parte da imensa criatura. Teriam as minhas lembranças nascido antes mesmo de mim? Os instantes de sua vida não mais pareciam-lhe uma arquitetura coesa à espera de sua chamada, mas um cardume promíscuo que escapava-lhe os limites para entrelaçar-se no passado de outras pessoas. Quando pensava na própria vida, encenava também as vidas dos outros, e já conseguia pressentir o dia que enfim questionaria se ainda conservava algum acontecimento próprio, ou se tudo o que continha não teria originado-se em outro. Quando um cardume de medusas, aos poucos alterado por outros cardumes que esbarram-lhe, torna-se enfim um novo cardume? “São o primeiro animal do mundo, as medusas”, Ela disse. “Em quase tudo iguais à água, e ainda assim, conscientes. Um tímido tropeço da biologia: ei-nos na vida.”
    “Para onde vão?”
    “Dependem das correntes.”
    “Não pensam, portanto.”
    “Quase não vivem. Habitam a borda do infinito.”
    “Como assim?”
    “Não sei, talvez. O oceano é indivisível. Todo igual. Uma única gota o contém. As medusas são quase gotas.”  
    “Respingos da primeira água”, Ele disse, a língua seca.
    “Minha mãe chamava-as de água-viva”.  
    “Como se a água acordasse.”
    “Mas sonolenta, sempre.”
    “Embora elétrica.”   
    “Não sentem ansiedade pois descarregam-na nos que visam perturbar o seu marasmo.” Nos cardumes de medusas em sua emaranhada procissão Ela parecia querer desvendar, enquanto falava, alguma epifania. “São como deus”, então disse, “quando escuta as nossas preces”.
    A estridência da buzina desperta todos aos seus automóveis. Centenas de passos ressoam nas escadas de ferro e nas grelhas do pátio enquanto Ele conservou-se, resoluto, à porta da cabine de banho que segue fechada mesmo quando Ela desistiu de convencê-lo e sozinha desceu, ou quando um dos operários expulsa-o do terraço para conduzi-lo, sob protestos e ameaças, de volta ao volante, onde Ela recebeu-o não sem um ou dois dedos de censura.  

O carro varava as finas estradas revestidas de areia em tal velocidade que mais parecia sobrevoar o asfalto. Ele movia o volante apenas com o dedo indicador, também pela ajuda do vento que vigora na mesma direção, cambiando talvez o seu ângulo de sopro a depender das curvas do caminho. Pode-se ouvir o tilintar dos grãos estalando no chassi, como uma longínqua praia do submundo sendo fabricada por titãs que nos punhos estilhaçassem imensas jazidas de vidro, apenas para os dois. Passaram por casas atulhadas de uma areia fina que enfia-se nos feixes das tábuas e nos fundos dos copos, nos vincos dos pratos e nas fibras dos tecidos e resistente a qualquer ímpeto de limpeza, levando os residentes a, mais que aceitarem os sabores dos ventos, rejubilarem-se com a ideia de destino. Abrem-lhes a cancela que fecha a estrada como se atravessá-la fosse o seu direito fatal. Estacionaram dentre um bosque de pinheiros, na borda da praia. Sobre o chão de agulhas macias, seus passos não emitiram ruídos, e as pinhas caídas conservam-se onde sempre estiveram. O frescor do lusco-fusco alargava cada coisa, na ausência de calor desatentando-lhes de seus próprios corpos para destacar os seus espíritos neste leviano espaço que amolece a energia do labor e prolonga a ténue epifania.
    Adiante enfim desponta a pálida planície, uma praia de águas calmas e areia tão fina que as marcas dos passos não persistem sobre a lisura geral. Não venta, nem grão algum desloca-se por conta própria. Ao centro da praia uma baleia albina murmura qualquer coisa, como o áugure de um oceano que apreenda a sua boca para veicular o abismal evangelho. Ninguém desencalha-a, ela própria não denotando qualquer angústia. As marés prateadas são espelhos amorfos que não derramam-se na costa, antes reclamam a solidez da praia ao oceano que antecede um horizonte arqueado para cima. A maresia resvala-lhes as têmporas, desatando as tensões do dia numa lisura mental semelhante à inexistência temporária que preenche-nos em momentos de felicidade. Vivemos a memória deste momento, pensaram. Fatiado pelo degrau do horizonte, um sol branco estende o seu trémulo tapete sobre a monotonia das águas primevas. É tempo de regressar. Para onde, no entanto? Um último feixe de luz cinzela a curva do oceano numa planície marmórea idêntica ao céu de uma noite que inicia pálida e sem nuvens como o interior de um imenso ovo. A lua transparente é pouco mais que um orifício que, desprovido de substância própria, parece querer extrair a densidade alheia. Por ela é despejada uma aura cósmica que vitrifica a baleia num cilindro onde transmuta-se o fulgor do dia no mais leviano porvir.
Mark