O Subsolo
Os seus discursos e os atos dos trabalhadores ajustavam-se de modo tão feliz que se poderia dizer que estes homens não eram senão os seus membros. Tu não acreditarias, Sócrates, que alegria era para a minha alma conhecer uma coisa tão bem regulada.
Paul Valéry. Eupalino, ou o Arquiteto.
um muco de suas narinas escorria
Hesíodo. O Escudo de Héracles.
Paul Valéry. Eupalino, ou o Arquiteto.
um muco de suas narinas escorria
Hesíodo. O Escudo de Héracles.
I
Eis a dura linha do rigor. As largas asas das aves abertas sempre em simultâneo, constrangidas ante tal bucólica geometria. Seus pés firmes nos ramos das árvores vergando todos juntos, no perfeito charme dos ângulos cheios. Um moroso adestrador as conduz, com seu bastão de ouro, aos devidos lugares. Ao seu lado rabisca o subalterno a tabuleta de argila em elegantes equações, calculando o arranjo geral pelos pesos dos pássaros e grossura dos galhos. Ambos movendo-se, também eles, em modelar simetria. Os passos do pé esquerdo de um alinhados aos do direito do outro. Estátuas crescendo em tamanho segundo a sequência fibonacci, e ordem anti-horária. Partículas de poeira metálica acumulando-se em harmonia sobre as curvas das folhas e o número de lâminas da relva respeitando os arcos nos frisos do espelho d’agua. Painéis de muxarabi em padrões matemáticos cobrindo o jardim, ocultando o céu e controlando a luz do sol, descendo em talhos retilíneos como pilares cintilantes pousando apenas onde compõe o esquema total. Como na saliência do saltério deitado no banco de pedra, suas cordas em número igual às pétalas nas dálias para onde aponta a sua cabeça. Ou nas espaldas dos quatro casais de amantes enroscados nas quinas do jardim sempre quando a lua esconde-se atrás da platibanda. Ou, curioso, nas largas narinas do general Borrifato que, da janela a tudo isto atento, tinha um terrível, terrível resfriado. O plácido combatente despertou de seus devaneios apenas quando a sua jovem valet martelou-lhe a têmpora, duas vezes com a ponta do dedo.
‘Toucinhos do céu?’
‘De cada coisa um pouco, como dizem os franceses. E estes querida, o que seriam?’
‘Barrigas de freira.’
‘Ah. Sendo assim, nem te pergunto o recheio. Aceito uma ou duas, se o Messias permitir-me provar o que a ele pertence.’
‘Não há recheio. É justo esta a piada.’
‘Pois esperava mais da libido eclesiástica.’ E de sobrancelhas elevadas no arco certo do deboche, beijou o doce onde estaria o seu umbigo.
‘És um depravado, Borrifato. Teu pinto fino fareja todo tipo de tabu e alegra-se com o que não lhe cabe. É justo por isso que discordo de ti, do que me dizias.’
À barriga da freira ele diz ‘Ela discorda. Perdão, como?’ E cola-a ao tímpano. ‘Pois te digo, discorda! Ante a mais gloriosa lucidez, que fazem os jovens? Agarram-se ao divino direito de contrariar.’
‘De forma alguma. Penso apenas que, ao invés de negociar com as intempéries e a fome, prefiro eu cortejar a estranha Madame, entre bons doces e bela música.’
‘Talvez’. E contemplava a impecável simetria do jardim, seus ângulos retos e íntegras curvas, suas árvores paralelas em exata planície, tudo composto em exemplar natureza, para exterminar o que é indômito e alegrar o gênio humano. E pinçava sonolento as lembranças dos bosques e colinas, córregos e clareiras selvagens onde cresceu, naquela vida que escondia suas carícias no verso das coisas mais banais, como os passos da raposa e a tosse do pai no quarto, a chuva na testa e a haste dos legumes, as farpas nas ferramentas e as costas lustrosas das trutas, as rugas do vento e a aguardente da mãe, a carne flácida nos calcanhares da avó, o quebra-nozes que mordia-lhe os dedos. ‘Mas sinto falta de toda a pobreza do mundo. Da glória da decadência. Tornei-me um derrotado espiritual em busca de esmolas materiais, lançado ao mais torpe conforto, que atrofia a alma ao alargar a barriga. E lamento a morte do tempo, que não prolifera nestas galerias e jardins.’
A valet contemplava o general, a sua papa balounçante avermelhar-se pelas marés de açúcar na boca — ou talvez pelo particular impacto que certos levantes nostálgicos imprimiam em sua figura. E partilhou de sua angústia. ‘És um narcísico, meu senhor, viciado na própria ruína, e tão distante de tudo que já não sabe o que estudar salvo a si mesmo.’
‘E tu, minha cara, és uma insubordinada, uma indolente e mutinosa criatura. Mas como podes falar assim com o teu superior? Felicito-te.’ E deu-lhe uma marota piscadela mas manteve-se piscando mesmo quando voltou a face à janela, como se este gaguejo fisiológico revelasse o impasse do homem ante um pensamento infeccioso, de singular inquietude. ‘Não há nada, minha cara, menos digno de atenção do que eu próprio. Ocupo-me não de mim, mas das coisas que tive e já não tenho.’
‘Não encante-se com o brilho de suas lembranças. O mundo é nada mais que a apatia de formas mudas sob o sol. Todos estes teus bucólicos amores são estofo inventado por ti para encontrar beleza numa realidade pobre, como um mendigo que enche a própria mão de migalhas para convencer-se que o mundo é farto. O que via nas dobras da natureza era a sua própria alma refletida nos líquenes das pedras e nas pernas dos insetos, preenchendo este mundo oco com a matéria de seu próprio espírito.’ Mas como perdia-se na meiga melancolia de coisas mortas, pensava a valet.
O homem rubicundo roía agora as bordas de um éclair de baunilha. E bicava um licor de laranja. Os olhos lentos e a testa tesa sob os tendões de suas lembranças em contraste com a lividez dos dedos e boca, ocupados como estavam pelas delícias do dia. Era a clara face de um homem cindido entre o brilho da baunilha e os grânulos de uma vida perdida, entre passado e presente, entre a sobriedade da mente e a opulência da boca. E ao centro, o nariz. Farejando em abas largas uma possível resposta para sempre fugidia, dado o terrível estado de seu resfriado.
‘E também’, agrega a valet, ‘que falta real fazem as coisas de tua infância? Talvez encontrem leito mais macio na nostalgia, onde o brilho da memória polvilha os córregos de uma prata inexistente e sopra as colinas com um vento que nunca houve, mais bonitas pois já não é possível subi-las. O passado é fantasia de covardes que tem medo de um punhado de pó, mas brilha bem quando sabe-se lembrar.’
Ao mastigar, solene ele disse ‘Sua sabedoria, querida, é venerável, mas tampouco me consola.’
‘Sim, mas Telurópolis o reconforta, ou não? Pois lembre-se, não só de gentis córregos e colinas se faz a natureza. Aqui escapamos das tempestades e das feras hostis, das doenças dos estrangeiros e da falta de alimento, para atuar num ambiente onde o humano é senhor.’
‘Senhor? Há muito não sou senhor de mim.’ E entre espirros disse ‘No momento, minha cara, meu senhor é o catarro.’
‘E também estes deliciosos canapés.’ Ao que a jovem valet jogou-lhe um dos doces à boca, que Borrifato mordeu com grande destreza.
‘Fosse eu a Madame’, absorto ele diz, ‘teria não muitas mãos, mas bocas. Duas em cada uma de minhas quatro faces, e oito concubinas alimentando-me na ponta de seus longos dedos.’
‘Com tantas outras barrigas, também. E perdoem-me todos pela multiplicação do que no singular é já pecaminoso.’
‘És a própria Pandora.’
‘Se tu não o fosses antes.’
‘Disso eu gostaria, te confesso.’
‘Pois eu, não.’
‘É este o teu problema. Muito afeita às normas.’
‘Quando a mim são favoráveis, sim. E aqui há muito o que agrada.’ E limpou com um lenço os resíduos de açúcar e catarro na boca de Borrifato.
‘Há prazer aqui, é claro que há. E no entanto é alto o custo. A suntuosa vida, toda forma sem conteúdo, com seus rituais auto-indulgentes e cerimônias absurdas, sufoca-me o coração. Amarra-me as veias. Em meio à opulência destas mil maravilhas já não distingo a minha face. Tornei-me engrenagem. Mas gostaria de ser algo diferente. Uma outra criatura.’ E ao abrir a boca para morder a sua éclair, Borrifato treme a mão como se o doce ganhasse vida e, rebelde, forçasse o punho para cima, longe da glote aberta, ganhando altura triunfante, ascendendo açucarado ante a janela entre as estrelas do domo celeste por detrás do muxarabi, livre enfim.
‘Devo lembrar-te a anedota que tu mesmo me contou? Encantado com as estrelas, Tales de Mileto tropeçou e caiu num poço. E todas as donzelas riram-se dele. Como agora eu rio de ti.’
‘Nobre Tales.’ Borrifato perfurou com o dedo a éclair e espiou no buraco. ‘Mas o que as risonhas convivas falharam em perceber, minha cara, foi que de dentro do poço Tales via com extrema exatidão o caminhar das estrelas, enquadradas pela boca do túnel. E assim o sonhador inventou o primeiro telescópio.’ Borrifato colocou a éclair sobre um dos olhos, como uma luneta. ‘Do poço de meu presente eu contemplo, feliz, o céu de meu passado. É vero o que disse agora há pouco. Há certas coisas apenas conhecidas à distância. A eterna prontidão destes tesouros palacianos esconde a tudo na proximidade. Mas é na lonjura fora de alcance e controle, minha cara, que encontro o centro de meu espírito.’
‘Fale baixo. Outros escutam.’
‘Que ouçam.’
II
Não se esquecerá o dia em que um grupo de homens nus surgiu, como brotados do chão, no pântano comprado de forma anônima ao centro do singelo vilarejo. À distância os habitantes viam-nos na pestilência daquele terreno, entre as raízes altas das árvores e o rumor dos sapos. Nas mãos arrancando argila da terra e moldando-na em tijolos, telhas, pilares, na borda das unhas esculpindo austeras senhoras de muitos braços e utensílios de todo o tipo, rompendo no punho os troncos das árvores, nos dedos rasgando as suas cascas, nos dentes lixando a madeira. Por duas vezes um deles sacrificou-se para dos ossos fabricarem ferramentas de corte. Dormiam sobre o solo revolto com os corpos cobertos de lama por inteiro camuflados salvo os olhos abertos, por detrás da retina calculando os pesos e medidas da estrutura. Homens sem língua ou espírito mais parecidos com bonecos de barro encantados na construção de um tempo ainda carente de seu deus.
E então partiram.
Atrás deixaram a casa, imensa e delirante, que humano algum é capaz de contornar. À noite ouvia-se o ranger de suas tábuas, o estalo de suas arestas, o crepitar de seus vazios, preparando-se, preparando-se. Havia algo estranho ali, na anatomia daquele lugar.
Ninguém tampouco a viu chegar. E certo dia abriu-se a porta do palácio, donde saíram homens de pele limpa em fraques de linho e babados de seda, brincos de ouro e botas de couro. Carregavam nos punhos a liteira de ouro onde reclinava-se, imponente, Madame Teluris. Seu tamanho ao menos o dobro dos outros. Toda sorrisos. Da fenda central de sua longa túnica saíam numerosos braços finos, tantos quantos era-lhe preciso, em cuja pele olho algum jamais pousou. Pois cobertos em longas luvas de veludo verde. Alguns tinham leques e abanavam-lhe a face, outros acenavam às pessoas, outros serviam-se vinho e uvas. Outros tantos colhiam de dentro da túnica punhados de peças brilhantes que deitavam ao chão de barro, torrentes douradas de moedas de ouro com o busto impresso da Madame. Bizarro espetáculo, o milagre de seus fecundos membros. Mas se de início a todos espantou, logo tornou-se mais um dos estranhos dons daquela mulher, gravitando ao redor de sua existência, suscitando todo tipo de hipóteses.
E como mágica toda a cidade passou a condensar-se ao redor do fascínio daquela figura, dispostos a modificar as suas vidas para melhor acolher seus interesses e humores. Tudo valia para vencer-lhe a simpatia, atalho máximo da riqueza. Armavam vigílias ao redor do palácio, e pisoteavam-se na multidão que escoltava a nobre senhora em seus esporádicos passeios.
Impelidos por relatos que narravam a opulência da Madame de tantas mãos, muitos vieram na esperança de partilhar das volúpias e captar lascas das benesses desta messiânica criatura. Donzelas e operários, duques e plebeus, príncipes falidos e prósperos gigolôs, imensas golfadas de aristocratas e miseráveis arremetendo todos os dias às suas portas, ocupando as ruínas, casas e clubes e praças e calçadas e terras baldias da cidade, seus dorsos curvos sobre o peso das posses ou a falta delas, bens há gerações na família ou recém furtados, advindos de outros palácios ou do erro mais rançoso do mundo, errantes de todos os ermos lugares e ricas regiões. Todos eles como pedintes ao redor do palácio.
Quando a Madame enfim surgiu sob a soleira da porta principal, houve quem ajoelhasse na lama com as palmas viradas acima. E contemplou a servidão de toda aquela gente, suspensa em silêncio à espera de uma palavra sua. Eram todos bem-vindos à Telurópolis, disse, minha casa de muitos quartos. Pois em meus braços há sempre colo aos que buscam uma mãe.
Ao seguirem-na, hesitantes, pelos corredores escuros de sua morada, muitos assustaram-se com a anatomia de seu caminhar: a senhora não andava ereta, mas deitada sobre inúmeras mãos. Como fazem as centopéias.
III
Terulópolis é um monólito semi-enterrado de longos muros fechados ao mundo, suas janelas abertas apenas aos inúmeros pátios internos. A magnitude dos espaços oprime o corpo humano, pois a escala de tudo ali teve como molde a imensa Madame, que aprecia ver-se em todas as coisas. A altura dos tetos e a vertigem dos domos em seus amplos salões dilatariam o menor dos gestos num eco de potência sônica não fosse a densidade das paredes de terra, que a tudo absorvem. Superfícies de barro ainda conservando a força primitiva, ctónica, dos músculos de homens macabros sem língua, pouco mais que bestas selvagens, criaturas precárias de trabalho impecável que nas conchas das mãos a tudo construíram. As paredes e o piso, os domos dos salões e as escadas de altos degraus, tudo feito da terra úmida do pântano onde decompõe-se esqueletos e adormecem crocodilos. E ao fim ainda tiveram energia para esculpir em baixo-relevo, em todas as imensas paredes do palácio, o relato de sua diligência.
Nas lacunas entre os elementos de tal solene arquitetura, vê-se faiscar os fios de ouro nos fraques dos homens e vestidos das mulheres, seus corpos lassos sob as tantas camadas de tecidos em damasco e rendilhados de linho, sob o pó da maquiagem e o peso da peruca, estirados nas poltronas e sofás, chaise longues e almofadas, reclinados em divãs e canapés, imóveis no embalo da letargia e ócio vitais. Aqui cultiva-se a indolência apenas manifesta em ambientes onde consegue-se habituar, e enfim desdenhar, do opulento encanto de todas as coisas que aos outros tiram o fôlego. Mas espanta-se com o arco perfeito de uma casca de limão cortada como pormenor de uma bebida, ou com o pálido sub-tom no reluzir de um broche. Entre o cristalino silêncio de candelabros e o esplendor dos pés de ouro das mesas, entre os babados de seda nos seios das cortesãs e as meias de cetim dos homens, um bocejo calado é talvez o maior dos gracejos.
E caso, no terrível conforto de seu descanso, o bocejo se expanda em cochilo de tantas horas, nem sequer um instante do dia terá sido perdido. Nos domínios da Madame o próprio tempo suspende o seu tear e já não corre mais. Em sua inércia, coagula o ar, torna-o espesso, pesando o corpo de todos, estirados como estátuas na macia mobília, salvo em esporádicos golpes de punho para mover os leques de ouro ou em morosos comentários onde debatem os gracejos favoritos da Madame. Ou quais sabores seu palato favorece. Ou o correto emprego das pausas entre palavras, para não cansar-lhe os ouvidos. Ou quais acordes secretos do alaúde ainda não comoveram o seu gosto musical. Ou o grau perfeito no arco de uma mesura. Pessoas cujas vida eram antes dedicadas a temas tão variados quanto a anatomia humana e o crescimento dos vegetais, a resiliência financeira das nações e o correto exercício da justiça, agora ocupados nos humores e devaneios da Madame, dona absoluta de um mundo assentado em eternos rituais onde todo dia é a cópia exata do anterior. Pois tudo em Telurópolis fora calculado pela Madame. O ângulo dos raios de sol entre as cortinas. O arranjo dos móveis. As alianças e antipatias na corte. O ritmo do mastigar. E todos os dias repetido à minúcia. Em seu palácio criara um mundo de controle total, perfeito sistema de inflexível rotina, de hábitos e símbolos próprios onde o acaso não existe e há pouca, ou nenhuma, tolerância a transgressões. E quando morre de velhice um cortesão, simula-se um homicídio de tal prodigiosa execução que torna-se impossível descobrir o malfeitor, permitindo assim, em simultâneo, o oblívio do tempo e o repouso de todos. Fora isto, para as rugas nas faces e escassos cabelos que são os resíduos da marcha dos dias, há sempre boa maquiagem e gordas perucas.
E ao centro dinâmico deste estático mundo, no meio desta turba de velhos decrépitos e jovens arrivistas, de pelancas pinceladas de rubro e polvilho branco nas estrias, das tesas costas dos meninos e clavículas saltadas das garotas, dos dentes podres dos idosos e vigor nos dedos das crianças, todos idênticos na película encerada da maquiagem e cerdas gordas das perucas, indistintos aos sentidos, ei-la. Madame Teluris, sentada numa poltrona de malha persa. Absorta no elã divino de seu próprio tédio, como se todos os estímulos da vida por ela elaborada fossem, quando muito, sombras de uma outra instância menor, tão alta está no auge de sua elegância. E demora a responder os decoros dos outros, como se à ela escapasse da dimensão de um instante, ou a urgência inevitável das interações, em descaso deixando escapar fiapos de palavras.
Mas nos longos intervalos entre os comentários dos convivas e as melodias avulsas de cravos e oboés, pode-se ouvir por debaixo do piso, sob o silêncio humano de tão educadas assembléias, um estranho tilintar metálico. Sua cromada teimosia de quebrar o encanto daquele mundo em suspenso. Mas ainda distante, e precário. Custa pouco aos cortesãos afinar ouvidos a outros timbres mais simpáticos.
IV
Todas as manhãs o mais seleto dos comitês é conduzido à câmara privativa de Madame Teluris, para auxiliá-la nos rituais matutinos. Vêem-na já vestida em sua túnica, sentada no toucador penteando os longos cabelos que cobrem, em labirintos de fios ondulantes, o piso do aposento e os pés de toda a corte. Em gordas tranças volteia a cabeça até fixar os cabelos acima, ordenando-os. Depois maquia-se. E honra a um dos cortesãos com a tarefa de recolher o seu penico de ouro, sempre cheio de moedas, e revelar aos outros o milagre vespertino da Madame que da bosta faz nascer o ouro.
Abrem-se as janelas de seu quarto. Da sacada, cumprimenta a multidão reunida no jardim. E descreve o programa do dia. Certa manhã, só de troça, mandou todos andarem de costas. Em outra sentiu-se baixa e fez todos caminharem de joelhos. Houve ainda o dia em que, ao despertar, encontrou na curva inferior da bochecha uma nova ruga. Em desespero ordenou a todos que cortassem suas faces neste mesmo desenho, convertendo-a assim a traço inerente do corpo humano — igualar-se à Madame, que seja em reles ruga, foi motivo de orgulho para mais do que alguns convivas. Certa vez os rumores do rio não deixaram-na cochilar. Disse que aterrassem-no. Os senhores e senhoras do palácio com baldes de lama transbordante em suas mangas de brocados carmesim. Num dia de singular brilho solar lamentou-se por ser noite e mandou todos às camas. Se a Madame não tem forme, ninguém come. Se quer beber, tragam todos tantos goles quanto ela, lançando o palácio num estado de completa derrisão moral e desapreço pelas normas, ao que a Madame súbito volta à sobriedade, e quem não acompanha-a deve ao menos aparentá-lo.
E todos os dias, quando as aves do jardim central abrem as asas três vezes, um homem chamado Rolain aborda a Madame, oferecendo-lhe uma madalena recém cozida, que ela mordisca para criticar a proporção entre leite e açúcar. Dali a três quartos de hora outro conviva de nome Nataniel convida-a para um jogo de cartas, ao qual a Madame de início recusa, para depois aceitar ao atravessarem a soleira no salão de descanso. E a cada sete dias um dos súditos comenta que a senhorita Cassandra levara o marido da senhora Gertrude num passeio deveras longo por entre os arbustos, falha de pronto castigada com a morte dos três, o delator e os amantes, dado a repulsa da Madame a segredos. É este o mais ingrato, ou honroso, dos teatros. Os intérpretes são sempre novos, dado que seus personagens já foram executados inúmeras vezes. Do cortesão é esperado atuação convincente, mesmo tendo tido poucos dias para ensaiar e além de tudo sabendo que morrerá. E a senhora Cassandra de fato leva o amante aos arbustos, há dias residente no quarto da senhora Gerturde (para imbuir veracidade à cena), ambos lançando-se no que decerto é o mais exultante dos coitos, dado a iminência do cadafalso.
À tarde jogam cartas. Cavaleiros, poetas, políticos, filósofos, ladrões, farsantes, alquimistas de outrora, agora estimados consortes de cotovelos cravados na mesa da nobre Madame, cujo cansado semblante lançava sombra sobre os ombros de todos, incluso os da valet, e o sublime jogo em suas mãos. Substituía Borrifato que, na esperança de curar o seu terrível resfriado com uma pasta de ervas roubada da cabeceira do Senhor Solinóis, pedira licença à Madame com a desculpa de uma indigestão. Em geral Madame Teluris não entretinha tais torpes transgressões, mas dado a graça da valet, que caía melhor aos olhos, consentiu. Com a condição de ter a ele (e sua valet) em perfeita forma na seguinte cerimônia matinal.
Na borda dos belos olhos a valet podia ver a Madame de inúmeras mãos manejando as cartas e a taça de vinho, contando moedas e servindo um charuto à boca frouxa. Sua névoa ofuscando-lhe a face maquiada em tons de branco e vermelho, como as peles lisas das bonecas. Mas toda a encantada mecânica de sua anatomia não é imune a certos deslizes, pois sabe-se. Quando a Madame blefa, falha o punho de seu terceiro braço. Treme a superfície frisada do vinho. Se em seu palácio a Madame criou um sistema de controle total onde a riqueza e o conforto eliminam o imprevisto, é no vício do jogo onde a nobre senhora pode ainda testemunhar os caprichos do acaso. E amargar a má sorte. Suas muitas mãos controlam todos os aspectos da vida no palácio. O baralho de cartas ainda escapa-lhe. E todos fitam-se em calado incentivo. Quem apostará contra a Madame? Mas deitam-se os olhos e cai a coragem. A valet fechou as cartas. Ali não joga-se para ganhar, mas para conservar a vaidosa fantasia da Madame, suposta senhora de todos os aspectos da existência.
Ouvia-se à distância o estalo das cartas quando os tesos dedos da Madame deitaram o jogo pífio à mesa, mais uma vez vencendo sob o fingido assombro de todos. Ria-se alegre, os dentes brancos como as tíbias dos cavalos. Novos braços surgiam da túnica para terem as mãos beijadas pelos derrotados, tantos quanto bocas havia. Mas a voz que usava para debochar da inépcia dos cortesãos não lembra, em timbre, a das mulheres. Talvez fosse quase possível notar, nas bordas das palavras, o sutil desalinho entre sua boca e sua fala, que sequer parece sair-lhe da garganta, mas do topo de sua icônica túnica, rubra como a carne da terra, a mais impecável das vestes, com figuras costuradas à fio de ouro onde um demônio telúrico mastiga multidões de pessoas entre montanhas de ouro, tudo composto numa geometria em muito acima dos mais virtuosos arabescos do arenoso oriente.
Caminhe, Madame, pelas salas de seu palácio onde são todos bem-vindos exceto o tempo e o acaso, neste mundo encantado de imaculado rigor e absoluta ciência, onde profecias não assustam pois tudo o que será, já foi. E cante, Madame, no selo dos lábios, pois há tantos cortesãos sempre ao redor, ampla horda simulando os seus gestos, rindo quando ris, bebendo quando bebes, comendo quando comes, vorazes idólatras na ânsia de partilhar desta coesa estrutura que é o fenômeno de tua existência. Sabes decerto quão bem visto é o ato entre as mulheres — e alguns dos homens — de copiar-lhe a rubra túnica e nela cobrir os filhos para fazerem as vezes de teus mil braços. Ao imitarem-na em teus passos de centopéia, tropeçam na própria prole. E quem há de acompanhar a velocidade de teus passos, tuas patas ocultas sob a túnica, quantas seriam? São todos teus sósias, do chão vendo as costas da túnica, estupefatos ante o grânulo de teu brilhantismo.
V
Portanto não espanta a força semi-divina com que o general Borrifato combateu os ímpetos de seu nariz, cujo deplorável estado seria algo trivial, quiçá tímido incômodo, caso não se encontrasse na câmara íntima de Madame Teluris. A poucos permitia-se o privilégio de acompanhar os rituais matutinos da gloriosa senhora, compostos de delicadeza tal que mesmo a reles fungada de um subalterno poria tudo abaixo. Determinado a controlar-se, primeiro adotou tática de imposição física e apertou nos dedos o nariz. Não resultou bem. Depois buscou abordagem mais mental e repetiu a si o mantra de que era ele o senhor de seu corpo, não o nariz. Chegou a vigorar mas apenas por um tempo. O muco acumulado escorria nos bigodes. Elaborou então, no calor do momento e de forma admirável, um tipo de fungar lento, pianíssimo, para camuflar o constante ruído do nariz sob a cortina do silêncio geral. Mas todo o seu brilhantismo militar foi vencido quando enfim espirrou sob tal força que chicoteou-lhe a cabeça e lançou a peruca abaixo, fraturando o tão solene equilíbrio da cerimônia e, no alarde geral, abalando sobretudo os delicados tímpanos de Madame Teluris. Cujos braços detiveram-se, suspensos no ar. Toda a corte em silêncio. Cabeças baixas. O homem enfim tomou coragem e disse Perdão, Madame Teluris. Grande azar. O instante em que emitiu palavra foi o mesmo em que a Madame havia decidido voltar à cerimônia, tolindo-a pela segunda vez. Ela quebrou na mão o estojo de maquiagem. O produto polvilhou-se em névoa creme. Borrifato espirrou uma segunda vez.
‘Perdão?’
‘Perdão.’
‘Mas pelo o quê, nobre Borrifato?’
‘Pelo espirro, Madame Teluris.’
‘Espirro?’
‘Espirro.’
‘E pelo perdão, ele próprio tão perturbador?’
‘Perdão pelo perdão, Madame Teluris.’
‘E pelo segundo espirro?’
‘Também por este, perdão.’
‘Mas é a sua boca quem pede perdão pelos impulsos amotinados do nariz? Seria ele tão covarde, senhor, que após relampejar sobre a delicadeza de nossa cerimônia já mais nada tem a dizer?’ O semblante apático da Madame. Os glaucos olhos absortos em coisas apenas a eles visíveis.
‘Madame, meu nariz?
‘Este pedaço de carne moída que tem entre os olhos, sim.’
‘Mas o nariz não fala, Madame.’
‘Pois falou agora há pouco.’
‘Meu nariz sou eu. A boca também.’
‘Também o pescoço. Será ele o sacrificado?’
‘Não, por favor. De forma alguma.’
‘Então, gordo nariz do senhor Borrifato, peça perdão. E por deus, vista a sua peruca. Não tens etiqueta, homem? Daqui vejo saltarem as veias de tua careca.’
O catarro acumulado na borda da boca. Fitou os outros. Todos desviando a vista, sem saber onde pousa-la. Borrifato tampou a narina esquerda no polegar e no indicador pressionou a direita na esperança de emitir algum acorde ou nota menor indicando a tristeza do remorso. Estudara trompete no exército e sabia dos afetos tonais. Inclusive pensou-se deveras espirituoso por tal idéia. Que revelou-se insuficiente. Som algum saiu dali.
‘Faça o seu nariz falar, senhor! Ou farei eu.’
A pele em brasa de Borrifato incitava algo há muito adormecido no leito mais íntimo de sua alma, e no tremer dos lábios escapou-lhe a palavra ‘Não.’
‘Não?’ Em leves errâncias na sinfonia de seus braços podia-se entrever a surpresa da Madame.
E de corpo vacilante sobre os calcanhares, um pálido Borrifato confirmou. ‘Não’.
A Madame lançou longe o estojo quebrado e gritou SIM! SIM! SIM!, pela primeira vez erguendo-se ereta, ganhando altura como se a cada palavra fosse gerada nova vértebra em sua coluna, a todos diminuindo sob o peso de sua presença, até sua cabeça tocar o teto e precisar curvar-se adiante como uma imensa cobra compondo, lenta, o seu bote. Estavam face a face. Borrifato podia ver, por detrás da maquiagem afinada no suor da Madame, o peso de uma face mais velha que o mundo e escorrida por um tempo galático, suas fendas e pelancas como a marca dos primeiros golpes de meteoros.
‘Sim?’
‘Sim.’
‘Não…’
A Madame hesitou. E recolheu-se ao tamanho normal. Venha cá, por favor, filho meu, disse em brando sorriso, seus dentes uma fileira de tíbias. Assustado, ele acercou-se. E então, Madame, você abraçou-o, aquele homem rubicundo de suíças e bigode branco que vivera a vida de peito estufado e baioneta nas costas nos campos onde são lançados, a ferro e sangue, a sorte de nações, e ele era tão pequeno em seus braços. Com uma das mãos catou um lenço em sua túnica e assou-lhe o nariz. Com as outras afagou-lhe a cabeça. Ele fitou os seus olhos tão largos, perdido no brilho baço de suas primitivas retinas. E pediu-te perdão, Madame Teluris, perdão. Você acalmou-o, disse não ser preciso preocupar-se. Me decepcionas, filho, e eu abro-me ainda mais para ti. Ele chamou-te de mãe. E então, grande senhora, você comeu-o. Seus braços recolheram-no para dentro da túnica e dali a instantes viu-se fios de sangue surgindo nas bordas da veste. Espalhando-se pelo aposento. Os braços foram servindo-lhe pequenos pedaços do corpo do homem, um após o outro por horas a fio, e você comeu-os sob a leveza de teus olhos pesados e, cansada após tanto tempo, as mãos até moviam-te o maxilar.
Atônitos ante a extensão do escândalo, ninguém ousou emitir som. Apoiavam-se no dossel da cama, encostavam nas paredes, as palmas sobre as quinas dos móveis, todas pífias tentativas de conservar a postura. Um vomitou, sem dobrar as costas. O vômito escorreu-lhe no peito. Outro virou a face e vomitou também, sujando o ombro. Como resistir ao horror de testemunhar, durante horas, cena tão abjeta? Nem ao menos a brevidade foi-lhe permitida, como o são tantas pestilências que não passam de vislumbre ou golpe de olhos, persistindo na mente como vago recordar de certo terror. Por tanto tempo tê-la ali, ao lado, e ser obrigado a aceitá-la como o bastião de um novo real, a cada instante convencer-se de sua presença, de sua urgência, e perceber que sua duração transcende o choque. Amedronta-se não tanto com a cena mas com a sua lenta assimilação, e o corpo aclimata-se e acostuma-se com o odor metálico e o gordo sangue sobre o piso, com o úmido mastigar da Madame e suas mãos mecânicas, repletas da carne de um semelhante. E sutil sob o imenso silêncio podia-se perceber, embora indistinto em meio ao delírio, debaixo do piso, o levante de titubeantes golpes metálicos como ponteiros de relógios neuróticos.
A Madame limpou a boca com o verso do lenço. Onde estão meus cães? Ninguém moveu-se. Até um homem chamado Eugéne latir fino. Outros seguiram. Um deles ajoelhou-se e gatinhou ao redor da Madame. Seus joelhos patinando no sangue. Outro pediu-lhe comida com a língua de fora e ofegante, as mãos acima em punho quebrado. A Madame lançava-lhes alguns ossos de Borrifato. Eles comiam, entre vômitos. A Madame tossiu e com uma das mãos colheu de dentro da boca algumas pepitas de ouro, que jogou aos seus cães. E apontou ao penico. À ela levaram-no. Com ele sob a face, vomitou ela também. Mas de sua glote só saíam pepitas de ouro e alguns ossos menores, numa torrente logo preenchendo o penico e transbordando ao piso de terra cozida no hálito quente dos homens de barro, tempos atrás. Um dos cortesãos remove o penico. A Madame retira-se do aposento. Todos lançados ao chão na violenta peleja pelas pepitas untadas em vômito e sangue, todos menos uma. A jovem valet ajoelha-se. E recolhe um dos ossos de Borrifato.
VI
Naquela noite, a valet não queria dormir. Revirava o osso em seus dedos. Qual parte de Borrifato seria? Estaria aqui conservada a sua saudade, o seu remorso? Era liso e bicudo, e quando o sono formigava-lhe as pálpebras, testava-o contra a carne macia dos dedos. Para acordar. Ao longo da noite repara o volume crescente dos estalos e batidas metálicas no subsolo, como o lento e caótico desempenho das entranhas da casa, digerindo algo. Abriu a porta do quarto e de quatro foi tateando, na palma das mãos, o ressoar dos ruídos. Espantou-a quão fácil foi encontrar a entrada. No centro da sala principal há um imenso candelabro de vidro com detalhes em baixo relevo, que pulsava os seus cristais ao compasso dos estalos. A valet puxou o tapete persa. Um alçapão. Levantou o seu tampo e desceu as escadas. No declive do túnel afogou-se na enxurrada de sons metálicos, as superfícies aonde apoiava-se desmanchando em grãos e caroços de terra consoante ao palpitar sincopado de tal vertiginosa percussão. Eis que alcança a grande cripta, atordoada ante a magnitude daquele barulho.
O pandemônio. Um enxame de coxas e braços e torsos lustrados de suor, nas peles nuas reflexos áureos de todos os golpes de luz das moedas ao redor, em pilhas imensas nas mesas, nas paredes, no chão. Aos poucos divisou, no mar de membros, corpos humanos. Pessoas em perpétua moção como inertes ferramentas, seus olhos foscos encovados nas faces ósseas, aquecidos em nada salvo a brasa quente de seu sangue, esta lava lenta onde amparam-se sob o gélido abraço do mundo. Suas palmas fartas do maior dos tesouros escorrendo-lhe os dedos nodosos, a barriga vazia e as costas em curva, gemendo nas moedas, lustrando-as em seu bafo, com maçaricos derretendo as pepitas e em martelos moldando-as, aniquilando-se na finura de uma borda, na exatidão de uma linha, alienados de si na histeria de seu delicado labor, seus punhos os alicerces de todo aquele império do requinte. E ao centro de tudo, no cerne de todo este tumulto, soberana levanta-se Madame Teluris.
E abre a túnica. De dentro saem uma, duas, três, incontáveis pessoas, nuas de luvas verdes, que removem o tecido. Ao centro há um homem largo com uma pequena cadeira sobre a cabeça, apoiada nos ombros. Sentada ali, uma raquítica, tacanha criatura. É esta Teluris. Outras retiram-na de suas costas, e com o maior dos cuidados dão-lhe colo. Tão débil, mesmo um sopro é capaz de pulveriza-la. Removem a peruca de seus longos cabelos e pousam-na numa redoma de vidro, onde há um pequeno berço. Eis a Madame. No fio da morte, irrisória ante a violência de sua criação. Suas finas costelas de cristal e os membros robustos dos trabalhadores, sua pele fria e as infinitas forjas ao redor derretendo os dentes da terra, ela recolhida com os punhos finos sobre os seios, os beiços largos e secos dos coitados ao redor, desnuda Madame, como desnudo está o seu palácio. E percebe agora a valet: esteve sempre à vista, no austero semblante de Teluris.
Abriu-se uma porta e um homem pousou, defronte à Madame, uma enorme travessa de carne. Com longos espetos de ouro colhia pedaços e, mediante uma pequena abertura na redoma de cristal, entregava-os à boca da Madame, que apática mastigava tudo que lhe era dado, para depois vomitar num buraco aos pés de seu berço. Sob ela, outro abria uma portinhola e recolhia baús inteiros de ouro, que eram levados aos operários para serem transformados em moedas. Imperfeitos em sua moção. Martelavam o metal sob a vigilância de outros tantos, açoitando-os com as longas luvas de veludo verde. Que também usaram para enlaçar o pescoço de um homem que colapsara com a testa na mesa. Arrastaram-no até outra porta, onde desapareceram. Agachada, segue-os a valet, pelos cantos e esquinas da fábrica. Atravessa a porta.
A amplitude. Estonteada notou o domo aberto do céu, a lua cheia descendo e a coroa do sol despontando no horizonte. Revoada de pássaros. Uma lufada de vento veio de cima flauteando as suas pernas, erguendo as bordas do vestido. A planície estendia-se. Estranhou a falta de simetria. Paisagem enferma, às coisas faltava o seu par, o seu reflexo. Ao longe longos vultos nos vincos do relevo e formosas copas de árvores. E inúmeras torres, altas sobre a crista do bosque. Água espumosa gorgolejando na corrente de um rio em cujos cálidos vapores despertava um grupo de humanos, gordos e nus. As ancas oscilando sob o peso de suas carnes caídas, as palmas nas margens e só os lábios na água. Muitos dormiam, dispersos, com as costas nos troncos, mesmo com as fibras da primeira luz sobre a testa. Outros ainda entregavam-se ao livre jogo de carícias na relva macia, sob a tênue sombra de altos tonéis de ferro, cuspindo grãos em longos cestos onde outros tantos foram comer. As mãos em concha e os olhos atentos à distância, talvez nos passos vacilantes dos luva-verde, que enfim largaram o operário num afloramento de pedras perto dali.
O dia escoava. A valet cambiando a atenção entre os hábitos dos selvagens e o doce aroma dos ramos de hortelã onde optou por esconder-se. Viu quantas vezes os luva-verde arremetiam contra eles, e sob tímidas e precárias revoltas raptavam-nos um a um, para levar a uma tenda de metal anexada ao palácio, de onde sai um trilho elétrico carregando carcaças esguias, desprovidas de órgãos. Um estabanado tropeçando numa raiz. Um velho de bengala. Uma mãe com o filho balofo de boca aberta em seu seio. E depois os golpes abafados das lâminas na tenda, e o odor metálico escoando em seus canos. A tudo isto ela assistiu, inerte sob o disfarce das herbáceas. Chovia agora, espesso aguaceiro desabando sobre ela e o peso de seu cabelo colado à testa quase como um sonho. E quando o manto da noite sobre tudo estendeu o seu sigilo, enfim levantei. Removi as roupas de cortesã. O colete de veludo azul, o vestido de linho, os anéis de ouro, as meias de algodão, os sapatos de fivela dourada. Mas mantive o osso pontudo de meu amigo Borrifato que, alojado entre os dedos, levei comigo quando fui ao bosque.
Mas permita-se aproveitar, tu também, esta bonita noite. E veja, ao centro de toda a pompa e toda a glória, a Madame em sua divina túnica conforme dita a etiqueta, alegre na fartura de infinitos braços, de eternos tesouros na boca saturada de gim, e vinho, e absinto, e rum, e vodka, primorosas alquimias alcólicas correndo o veludo das goelas dos convivas e donzelas de seu impecável palácio, que não cessam em elogiar a tua face mais velha que o mundo, mãe primeva da cobiça e do prazer, insaciável dona mastigando doces e pessoas, árvores e montanhas, engolirás o mundo inteiro pois é a própria filha de Midas, em sua barriga toda a carne vira ouro, e no abraço de sua simétrica bile todos nós seremos, enfim, irmãos e irmãs.