Quando Brota a Nua Rosa


(sobre a exposição Rosas, da artista Lea Managil,
patente na Galeria Zaratán de Lisboa em 2024)

Eu sou aquele que outrora cantou
ao compasso do caule da Rosa.

Quem viu-a nascer só, flor tardia no orvalho dos campos, decerto educou-se em seu encanto. Ou talvez tenha-na visto de olhos fechados, emergindo magnífica do leito fundo de nosso inconsciente, graciosa em suas pétalas sedosas, terrível em seu longo caule cravado de espinhos. Quando abre a Rosa, afloram-se antagónicos sinais. Apenas um símbolo tão invencível poderia convergir tais díspares sensações.
    Flor atraente e hostil, doentia e de cultivo difícil, florescia nas poucas semanas do meio do ano, sob o signo de Gêmeos. Parecia fadada a simbolizar tanto o brilho que escapa quanto a farpa que toca, a malícia virginal e a pureza erótica, o presente incerto e o ausente hipnótico. Suscita-nos desejo mas impede-nos a posse. O perfume nos atrai e, no arrebato de seus afetos, a mão ferimos. A Rosa evoca, mas não atende. Perguntamos, e ela apenas ressoa. Em sua remota volúpia, atenua-se a urgência das coisas. Detalhes diluídos, consigo vê-la de outras formas — a distância e o indistinto permitem o livre jogo do imaginar, um contemplar ativo que a tudo altera. Na refinada filigrana tecida por debaixo do imediato, mais doce é o nascido no amargor, mais belo o perfurado de espinhos.
    A Rosa a todos ensinou. Teve tantas formas quanto sugere o denso acúmulo de suas pétalas, que evoca o infinito, ou talvez a roda hipnótica dos mágicos. Foi o óleo de Afrodite, conservando intacto o cadáver de Heitor. A coroa de monges perdidos na Arcádia. A flor ofertada por Isis a Lúcio no romance de Apuleio, restituindo-lhe a forma humana. O orgulho dos jardins simétricos de místicos islâmicos, que suscita o melancólico canto do rouxinol. Foi a égide dos trovadores e seus amores platónicos suspirados em palácios de pedra. Ibn Arabi não tardou em compará-la tanto às bochechas rosadas de sua amada quanto aos muitos nomes e atributos divinos. Foi o tempero transparente dos povos do deserto. A mãe de Cristo. O mistério que, no filme de 1941, assombra o desfecho do solitário magnata — Rosebud, expira Charles Foster Kane. A face colorida das catedrais, rosácea de raios perfeitos. Foi azul, impossível, e por isso onipresente para Novalis. Adornou bandeiras de nações e estandartes de exércitos, batizando guerras terríveis. Seu odor, no poema de Rilke, queimava o ar. A Rosa tudo foi. Entre céu e terra, nada havia fora da sombra de sua sublime silhueta. Não à toa os alquimistas situavam todo o processo de mutação mental sob a rosa — sub rosa.
    E no entanto a Rosa, antes suspensa entre tantos sentidos, corre hoje o risco de já não sustentar nenhum. Como escreve Umberto Eco no célebre fim de seu primeiro romance (ou seria Bernard de Cluny?), a Rosa de ontem mantém apenas o seu nome; nomes nus nós temos. Quando, no século XX, Stein buscou descrevê-la, pôde apenas gaguejar o seu nome já desnudo de sentido. Nosso materialismo atual perdeu-se do leque simbólico que antes encantou a vida. Se o regime cultural de outrora concebia um mundo de essência oculta, explorado mediante uma sensibilidade nem sempre alheia à fantasia, a modernidade entende a natureza como massa neutra desprovida de íntimo, apta apenas ao estudo científico e ao manipular físico. E sequer fomos capazes, em nossa busca por controle, de criar novo propósito para a vida. O humano moderno agoniza, ele próprio nu, em meio aos ventos gélidos da falta de sentido. Já não pode voltar a crenças passadas hoje vistas como insensatas, tampouco sabe como seguir adiante, exausto ante o medo de novo fracasso. Em sigilo, anseia absurdos lógicos repletos de magia e inviável veracidade.
    Teria a Rosa, una e entretanto múltipla, educado também Tomás de Aquino? Estupefato ante o absurdo da eucaristia, onde num golpe de fala o padre transforma hóstia e vinho em carne e sangue divinos, Aquino compreendeu ser possível uma coisa alterar a sua essência e ainda conservar, intacta, a sua aparência. A sua teoria da transubstanciação visa entender este bizarro fenómeno — como pode algo ser outro, e no entanto manter-se o mesmo? Outro sacerdote desta discrepância foi Marcel Duchamp, cujos readymades escandalizaram o que restava de dogmático na arte moderna. Na realidade fez pouco mais que professar o teatro cristão tantas vezes encenado no altar. Se aparências são meros acidentes, o que haveria de impedir um urinol de ser A Fonte? O faz, quem sabe, não para cultuar a autofagia divina mas como crítica aos abusos de uma cultura convencional. Assim, a mais cáustica modernidade afilia-se a um ritual sagrado — e se o semelhante pode vir a ser distinto, não há incoerência aqui.
    E se algo pode parecer o mesmo mas ser outro, como poderia o humano moderno, insaciável organizador resignado à ideia de que a matéria encerra toda a verdade, extrair saber válido do mundo? Seria este um vértice capaz de questionar a modernidade, e compreender o real não como entidade sólida e coerente, mas um todo confuso vai-e-vém de eventos absurdos que desafiam o nosso domínio dos processos naturais? Houve tempo em que no regaço da Santa pães tornavam-se rosas. Vencida a atual miopia, quem haveria de contestar outra sorte de assombrosos milagres?  
    A Rosa, genitora da doutrina de Aquino e Duchamp, acolhia diversos sentidos no mesmo corpo. Em sua exposição Rosas, Lea Managil sinaliza fascinante inversão: é a matéria quem muda. A Rosa, aqui, jamais é flor. Assume ao invés uma miríade de outras formas que, embora empreguem símbolos primordiais — a fruta, a porta, os ramos, a vela, o ancinho, o pão — são elaborados mediante métodos contemporâneos. Influenciada pelo espetáculo das coisas distintas e pela versatilidade que advém da descrença numa única verdade, Managil passeia por um amplo repertório de operações artísticas que acentuam a inteligência singular de cada obra. Há, em seu processo, um engenho tecnológico e um raciocínio evolutivo típicos da modernidade, mas em prol não do hirto progresso, e sim de um sugestivo assombro — o acúmulo incoerente de formas e materiais promove um baralhar de sentidos que enriquece a apreciação.
    Se o nosso regime cultural visa, numa torrente de signos simplistas, retardar o nosso acesso à confusa natureza das coisas e oferecer-nos, ao invés, conteúdos descartáveis que convém apenas à manutenção do consumo, no trabalho de Managil temos o oposto: não o regime da escassez travestida de abundância afastando a tudo em eterna promessa, mas o genuíno acúmulo como riqueza interpretativa que transborda de sentido, tornando-o inevitável. Aqui, a fantasia não é miragem mal-intencionada mas benéfico desperdício. Ao acolher o excesso, suas obras existem dentro e fora de si, acenam à Rosa mas dispersam em outros sentidos. Neste câmbio entre o universal e o particular, bifurcam tanto na busca por verdades externas quanto no despertar de íntimas ficções. Cada uma das peças reúne, em clareza e artifício, variadas poéticas, acumuladas e contraditas tanto no contato com as obras ao redor quanto no contexto geral da narrativa expositiva, pensada em especial para o espaço da galeria.
    Em Nódoa negra flor, um ancinho é uma Rosa, ou braço que busca sentido no outro lado do Portal, porta-Rosa metafísica, e revela-o a nós, tosca rosácea a derreter na flor de sua mão de sólido concreto, mas lesionada em vincos longilíneos. Na base levanta a sua fileira de dentes que tanto nos ferem quanto sulcam o solo onde há de plantar a Rosa colhida. Em O Novo Fruto, um dedo-Rosa crava a vasta unha, em desejo e repulsa, num fruto-Rosa gorduroso e espinhento que talvez o salve do abismo de uma pia e assim informa-nos, por contraste, sobre a peça final da exposição, Risus, pão-Rosa risonho extraindo do alimento não os percalços da carne mas jubilosa elevação. Assim, constelações de sentido ascendem e declinam mediante o ponto de vista do espectador, neste anel mágico que é o nosso vício em sorver e perder o íntimo das coisas. Retirada de seu críptico silêncio, a Rosa aqui renasce múltipla, terrível e atraente.
    Ante a mirabolante estranheza destas Rosas, e extasiados pelas assimetrias entre o dentro e o fora, poderíamos encarnar o asceta e conceber em tais obras a busca daquilo que, intacto por detrás da mudança, mantém-se o mesmo — a Rosa perene que persevera em todos os seus distintos aspectos. Há, na vida, um cerne inalterável, cristalizado por debaixo do turbilhão das mutações? Ou talvez haja aqui mais complexa metafísica, uma que busque aquilo que persiste apenas ao mudar, sendo justo a troca de aparências a maneira de conservar a essência. O violar como a via perfeita à pureza: apenas ao modificarem-se, podem certas coisas permanecerem as mesmas. Como? Difícil dizer. Tudo muda e no entanto sinto, nos mesmos lugares, o virginal encanto da primeira vez. Haveria aqui uma busca por novas posturas espirituais, mais afeitas ao nosso regime estético, que resgata a herança religiosa do ocidente sem jamais submeter-se à canónica iconografia católica? A ausência da figura humana em suas obras — salvo, justo, a mão — parece revelar-nos o quanto de si nós projetamos, e moldamos nas coisas, idolatrando-as, conservando na ausência a semente mais sagrada de uma presença delicada demais para suportar o peso de nossa própria imagem, na esperança de que nossos vestígios mediem melhor o anseio humano pelo oculto, quando a sombra for enfim mais densa que o corpo. Ou talvez possamos, em postura contrária a qualquer misticismo, entender conceitos universais como nada salvo ilusões, gaguejos entorpecidos de uma mente entediada, e julgar estas Rosas não como disfarces ou mutações de uma Rosa pretérita (qual delas?), mas a invenção de novas rosas nascidas para refutar crenças passadas. Pois como seria-me possível afirmar que há, em determinada coisa, a essência de outra? Constrangido por, entre tão rico espetáculo físico, crer no não-visto, aceitaria a associação entre carne e espírito. Ou, quem sabe, este acervo explore não a esfera supra-pessoal dos juízos coletivos mas o leito íntimo da artista, em busca da linha mestra de sua própria existência.
    A boa obra é como a Rosa: suscita o conflito mas não o esgota — ressoa, sem reposta. Se o intelecto rasga-se na inviável balança do paradoxo, a arte promove não a resolução do impossível mas o deslumbre pela eterna tensão dos contrários. Esta cindida energia não resolve-se — nem deveria: a dúvida é o núcleo mais sagrado do pensar. E neste baralhar de sentidos, acessamos o manancial de saberes abertos que é a inteligência simbólica. O símbolo, escreveu Goethe, favorece o pensar mas impede um conceito adequado pois, ainda que pronunciado em todas as línguas, continua inexprimível. “O símbolo é a coisa sem ser a coisa e é, no entanto, a coisa”. Estas obras são, e não são, Rosas.
    E visam, portanto, não o regresso nostálgico a noções de outrora, mas a esperança de que ainda nos é possível ver mais, ao além do que a retina cansada acostumou-se a mapear. Pois se o âmago das coisas é opaco às palavras, e o cerne é o não-dito, o símbolo, que pouco explicita, torna-se o feixe infinito do livre refletir. Em dado tempo, coleta material o bastante para contradizer-se, sem nunca deixar de ensinar. Hegel não tinha grande apreço pelo simbólico pois via na incoerência entre forma e conteúdo o sinal de que o símbolo jamais esgota a ideia simbolizada. Mas esta inépcia em nada pesa quem tenta conservar a inconsistência presente em todas as coisas. E a Rosa, que entre perfume e espinhos soube sempre guardar a perfeita distância para a flor confundir-se com as ideias da flor, e com as muitas imagens que brotam de uma ideia, é a anfitriã das múltiplas identidades.
    Portanto adentremos, indecisos, estas salas onde proliferam símbolos sobre símbolos, como vozes germinando numa câmara de ecos — ou as pétalas de uma flor cujo núcleo teima em escapar-nos. Sucessivos simulacros não para regozijar-se na mentira mas para buscar, em receosa devoção e apaixonado ceticismo, uma verdade em eterno conflito consigo. Adorar o mistério é raiar em si o calmo êxtase da incerteza. O oculto não impede a busca — antes suscita-a. A Rosa dos teus dias só floresce à noite, e no entanto persiste o seu perfume, mais real que o real, após a aurora.

Mark