Uma Realidade Atroz, ou Banal


(sobre a exposição Half-Empty, dos artistas Eduardo Fonseca
e Diogo Gama, patente na Galeria Buraco de Lisboa em 2024)

The sun shone, having no alternative, on the nothing new.
Samuel Beckett, Murphy.

I

Para começar é preciso, antes, assimilar a ausência de conclusão. A incapacidade de realizar a nossa anónima natureza. A vida é sentida como torrente de momentos desconexos e o advento da morte não ilumina o sentido de cada evento no contexto geral de nossos dias. A ténue corda do ser estirada entre o vazio da inexistência muito ressoa, mas teria a sua ária alguma nota a nós discernível? Numa cultura banalizada onde o sujeito em conflito pouco mais faz que tatear os escombros de sua existência, deveríamos tentar definir o estofo de quem somos, ou ante a ausência da epifania melhor assumirmos o gozo da falta de verdade e a perpétua invenção por ela concedida?
    Vejo na exposição Half-Empty as tentativas de Eduardo Fonseca e Silva e Diogo Gama, em relativas vitórias e fracassos, de abordar à questão: como forma-se, hoje, o humano? Há nestas salas um interessante senso de conflito pois, num contacto inicial, parecem apresentar-nos posturas ao todo opostas. Se nas obras de Eduardo há uma consistência metodológica que enaltece o signo da clareza e do banal solenizado, Diogo acolhe prática experimental mais afeita ao vulgar decadente e ao naif. Se naquilo que pinta Eduardo visa instaurar uma lúcida aura, Diogo parece antes interessar-se pelo tema do delírio por vezes auto-depreciativo. Mas suas divergências guardam mais do que algumas semelhanças.
    Em sua obra Temper Tandrums, Diogo trabalha um reles antropo rosto de sapato que, ante a magnitude do coito cósmico entre um vulcão e uma estrela, pouco pode fazer salvo agonizar a violência da sublime cena que muito o supera. Seu pobre aparato mental não é páreo a eventos deste porte, não à toa pintado de forma naif, explicitando-nos a inépcia da figura em compor a sua imagem. E no entanto a cena dá-se em seu peito: não é fenómeno externo, mas sentimento. Seria um comentário sobre a eterna potência do humano, para sempre mal-formada em nossas empresas? Alude também à figura de Cristo, derrotado que tanto conviveu com a estupidez — dos outros e a própria, pois homem também era. Mas nada do sagrado persiste. Este cariz cético, que celebra derrotas, pauta muito de sua obra. Sob o signo do ingénuo, a violência adquire tons satíricos não ao todo distintos de uma comédia de costumes. Por vezes suas figuras parecem submetidas a abusos que elas próprias, pois estúpidas, são incapazes de assimilar. Uma agressão, quando ignorada, segue sendo brutal? Seu estilo, que tanto deve ao cartoon, conjuga um desenho infantil com o uso de cores quase estridentes para salientar a tensão entre o agressivo e o inocente.
    Eduardo, mais pintor que desenhista, pratica um estilo de controle. Sua técnica dá-se não na veloz linha mas no lento preencher de espaços restritos. Longe do clássico, aciona um repertório mais afeito ao barroco — a inclinação dos horizontes, os trompe-l´oeil ensaiados pela volumosa saliência dos ovos, as diagonais e sobreposições articuladas nos objetos, como entre os ovos cozidos e as figuras do Buda e do guizo, entre os tomates e a pele de alho, na lâmpada e aguardente sob o pano da casa, ou na subtileza do focinho do golfinho sobre a jugular da banana detrás. E no entanto atenuadas: em sua obra Faca, o chiaroscuro é mais um jogo de cinzas que um tenebrismo. Tais métodos barrocos contrastam com a reduzida escala das obras, criando um senso de constrição jamais claustrofóbico, pois também contidas estão as figuras e não sangram sua energia afora sobre as bordas das obras. Abafadas pela alcatifa do paspartur, adquirem um delicado acento. Também ambíguo é o peso das pinceladas, que conservam esta contida violência, um calmo pânico cuja intensidade não turva os objetos mas contribui para a sua candura, sua energia latente de uma riqueza nunca explícita que permeia todas as coisas de potência e promessa.
    Se em Diogo a fartura dá-se na forma como busca metodológica, em Eduardo, de estilo mais lacónico, está presente no conteúdo, na mitologia de sua interpretação dos objetos. Nota-se este signo do fecundo em tantas de suas figuras: no ovo, no cavalo a correr, no Buda de costas que assim revela-nos a sacola cheia, nos tomates maduros, no guizo cósmico de sino semi-tapado, sua música (das esferas?) apenas sugerida. A placidez quase espelhada da superfície polida dos objetos contrasta com sua íntima potência — os ovos cozidos em Bell Ball Boiled Egg e Boiled Egg Fortune God são quase pérolas mas pulsam por debaixo, na espessura das pinceladas. O vital aqui é não a exibição da energia, mas o suster da possibilidade. Anula-se a expectativa para tolher o suspense. Nada acontecerá. Se, em suas obras, um ovo cozido é perpétua promessa de coisas porvir, o foco torna-se não a surpresa mas justo o terror e o gozo da mórula. O tênue perfume da espera eterna. Seus objetos, mesmo em avanço ao primeiro plano, reclusos afastam-se de nós.

II

Também Diogo trabalha a falta do tempo e ausência de surpresa, mas noutro signo. De início, parece explicitar a ação: muitas das obras estão em media res, no seio do incidente, como nos coelhos e revolutas de Voulez-vous un Rendez-vous Tomorrow? ou na ebulição cósmica em Temper Tandrums. Outras representam o primeiro instante após o evento, sua energia ainda vigente. Pinta, como banda desenhada, o grafismo da ação: nos traços sobre o macaco em One Two One, nas faíscas em Temper Tandrums, na máquina moedora de Henry. Os sinos de Mundo Invisível e Get a grip and Let Go são, ao divulgarem movimentos, procedimento similar.
    E no entanto há, em Sweet, goodbye!, outra perspectiva sobre o tema da ação, aproximando ambos os artistas. Acompanhamos, num vídeo em loop, um peixe-humano que, absurdo, navega de barco um eterno Tâmisa. Súbito nota-se a presença constante do Big Ben, monumento maior do que os gregos chamaram de Cronos, o tempo mensurável do relógio. Mas por que marcar o tempo de uma jornada sem fim? Suas figuras, talvez, amarguem não a urgência de um golpe mas a sua extensão ad infinitum, pois agrilhoadas estão ao instante da obra, neste imenso momento que nunca finda e invalida o calendário. A assumida artificialidade de suas obras, que pauta tanto da arte moderna, acentua a nossa descrença ante os efeitos da entropia pois o método da pintura, embora aluda ao movimento, é sobretudo o fixar do agora.
    Mas neste purgatório tampouco há ansiedade, pois a clausura do eterno repetir, quando assimilada, fornece-nos clarividência — não mediante uma compreensão causal, mas devido aos eventos futuros já terem sido vividos no passado. Talvez então encontremos nas figuras de Diogo não a estupidez dos ingénuos mas justo o seu oposto: a clareza total dos versados. Não o espanto ante um abuso imprevisto, mas a sua completa adesão à ordem das coisas. Suas figuras apenas encenam, quando muito, surpresa. Já era-lhes sabido o desfecho da ação. Em One Two One há todos os signos da urgência: o rubro da paisagem, holofotes em busca, um sapato em marcha a flutuar fantasmal. Induzem-nos à uma fuga cujo perigo jamais é sentido, tão confortáveis e sorridentes estão as figuras com o desfecho da ação. Sua obra Mundo Invisível ironiza a figura de um fantasma, típico símbolo do susto, que embora situado poderoso na aresta superior do aposento, é incapaz de assustar-nos, seja pelo cliché de sua capa, seja pelos sinos que denunciam o seu avanço. Burocrática, sua chegada perdeu o aspecto paranormal.
    Em suas obras, polida foi toda a aspereza. Mas a falta de terror origina o maior dos terrores: a ausência do susto. Neste tautológico mundo tudo foi enfim assimilado ao dogma dos acordos coletivos, numa etiqueta social que anula o imprevisto. O excêntrico em suas obras representa não o fim das amarras, mas o seu domínio total pois a tudo racionaliza, coibindo o sentir. A razão, dada liberdade, concebe não a utopia mas o absurdo — atrela-se não à verdade, mas ao medo: fabrica padrões que nos amparem do imponderável. A etiqueta, aqui, é força elementar criadora do mundo. Nada persevera salvo a manutenção do esperado. E se mesmo a violência e o absurdo são incluídos às convenções de um corpo social, já não há balança moral que nos permita escolher uma coisa em detrimento de outra. Nada é distinto, tudo é o mesmo. Este relativismo é tal que torna-se, tamanha a liberdade de a tudo aceitar, opressor. Na ausência do sagrado, tudo futiliza-se no profano. Não há verdade — só artifício. E a única escolha é a submissão. Nestes termos, omitir o violento seria a maior agressão.
    Mas o grande incômodo é justo notar que o delírio da etiqueta em sua obra não é pior que o nosso, que assemelha-se aos seus processos. Toda coreografia social é, no fundo, assim: permite apenas a repetição do assimilado, onde o indivíduo que anseia expressar-se encontra só os desvios já planejados pelo sistema, presentes não para questionar o estado de coisas mas para fornecer-nos a ilusão de liberdade. O atrofiado imaginar já não encontra alternativas. O antes absurdo torna-se a norma, nos rituais de tal forma perpetuado que é possível, aos educados em seus precedentes, prever os resultados dos eventos. A clarividência é o auge da civilização: o futuro abre-se (fecha-se?) para nós. Se o teatro coletivo da etiqueta é nossa única arma contra a hostilidade da natureza e a ausência do divino, que mais podemos fazer salvo refinar rituais arbitrários? Tantas convenções já foram testadas que torna-se difícil não aceitar a futilidade de nossas escolhas. Estamos fadados, sempre, a convencionar. Não há alternativas salvo o vertiginoso leque de novas alternativas onde, na infinda permuta de valores, nada mais pesa com o impacto da verdade. Diogo revela-nos um real ainda mais coerente que o nosso, pois já divorciado da ilusão de liberdade e da hipocrisia de crer em desvios jamais manifestos onde emoções, reações espontâneas ao imprevisto, inexistem.

III

Trabalha portanto um mundo todo ele teatro, onde encena-se peças cuja diversidade apenas camufla medulares semelhanças, conservando a manutenção do mesmo sob a propaganda do distinto. Também Eduardo compreende a construção da identidade como processo teatral — não algo anterior ao nascimento, prescrito por forças do além, mas força imanente realizada no contacto com as circunstâncias externas, na sinergia entre o indivíduo e os objetos assimilados, e reinventados, na mitologia da vida íntima. E busca no indivíduo o mesmo que Diogo encontra no corpo coletivo: a emergência do ser. Diogo ignora a desgraça e o sucesso, assumindo o êxtase de uma realidade lúdica que inventa-se e reinventa-se sem o rumo da verdade. O limite entre o que as coisas parecem ser e o que elas são, entre o prescrito pela convenção e o concebido pelo indivíduo que tantos artistas buscam romper é, para ele, exercício estéril.
    Para Eduardo é toda a questão, pois vê no artifício o caminho da epifania. Utiliza o teatral não para conceber outras personalidades mas para, em processo arqueológico, desvendar a sua própria, e vaga verdade. Opera, em prática oposta à Diogo, no surto obsessivo de um artista que elegeu um método por acreditar em seu poder. Não há segundas alternativas. Se em Diogo há o estranho ruído de uma violência assimilada à gentileza de brutos gestos, em Eduardo há uma quietude que tenta não assustar o advento do sagrado. Se Diogo impera na tautologia de um teatro pirotécnico, Eduardo encena um palco-tabernáculo onde manifesta cerimónias demasiado delicadas para a insolência do mundo aberto, no cuidadoso arranjo de objetos pessoais no tablado de um teatro semi-abstrato sob luz de holofote. Performa, assim, o mecanismo de sua própria constituição psíquica. Em meio à embriaguez de memórias remotas, cada certeza, embora tímida, é decerto conquista.
    Se nos formamos nos sucessivos estímulos de um mundo em tumulto, talvez a busca por objetos da infância revele quem éramos antes de lançados ao seio de um social que visa a tudo nivelar, quando em sublime oblívio brincávamos com bonecos e talheres sem saber estarmos regendo os alicerces de nossa existência. Eduardo alveja assim um momento anterior à primeira invenção do eu, na polidez de um mundo desprovido de poeira, morte ou entropia — não quem agora é, mas quem foi, antes de ser.
    Prévio ao brotar da consciência, na primeira infância a criança vive o que Lacan chamou de corps morcelé: despedaçada pelas coisas ao redor pois não ainda entendeu-se como entidade autónoma e interpreta-se como sendo, ela própria, os objetos que encantam-lhe. Na ausência de cisão entre si e o mundo, ao conceber o sentido das coisas ela está, de fato, inventando-se. O esboço inaugural do Ego apenas se dá quando a criança, suscitada pela euforia de seu próprio reflexo, percebe a sua unidade corporal como separada das coisas ao redor. Não mais um campo que a tudo engloba, mas solitária coisa dentre outras. Buscava a si mas o que encontrou foi a imagem de outro que, mediante lapso egóico, chama de eu. Entende-se portanto como objeto — parecemos fadados a existir fora de nós.
    E no entanto o impacto deste contacto não é capaz de consumar a auto-consciência, pois ainda persevera, absoluto, o Imaginário: a fantasia pessoal que emprega em sua interpretação das coisas. Este embriagado sentimento de si é apenas contestado no advento do regime Simbólico, onde assimilamos a linguagem e aceitamos os sentidos acordados pela sociedade. Tornamo-nos, assim, o terror e o interesse de Diogo: atores do teatro coletivo. Eduardo visa a isto escapar. E embora já demarcada a linha entre o interior e o exterior, e mitigado o nosso enlace com os objetos, o Imaginário permanece e ao longo da vida de fantasias alimenta o indivíduo em conflito com a civilização. Entre o si e o outro, tumultua-se o eu. O preciso teor da troca entre os ímpetos inventivos do íntimo e as exigências do exterior dará o tom de sua existência.
    Na cultura ingresso, anseio dela afastar-me — é este o tema de Eduardo, que busca o encanto de um mundo desnudo de espelhos, onde possa afundar-se na inconsciência dos objetos. Não à toa suas obras carecem de figuras humanas — num exercício de absoluta contemplação, o indivíduo não focaliza-se em si mas dissolve nos objetos manipulados. Tais buscas são bem acolhidas na prática da pintura, que por prescindir de palavras, pode afastar-se do Simbólico para habitar o seio do Imaginário. Pois o que seria o eu salvo uma ausência enfeitada de belezas emprestadas, magnetizando os objetos que deseja? A identidade é senão um holofote, uma córnea a permutar sua atenção entre as coisas do mundo. Conhecemo-nos como um deus neoplatónico conhece as suas criaturas: indiretamente, mediante os atributos que as compõe. Há aqui relevante contraste com a obra de Diogo. Se Eduardo busca o doce torpor de um mundo prévio ao espelho onde o corpo por tudo espalha e a cada coisa batiza conforme dita a fantasia, Diogo vive justo num mundo composto de espelhos, onde tudo é reflexo e o indivíduo já não pode esconder-se no pretenso marasmo de inconsciência.
    Sua escultura Spirited Away parece meta-comentar esta filosofia que tanto guia a sua prática: uma casa-templo semi-oriental em tecido branco de um rabiscado espontâneo (infantil?) quase imprevisível para Eduardo. Em seu centro persiste uma pálida lâmpada, sua forma dissolvida pelo filtro do tecido ao redor. Oculta na gaveta do móvel azul que sustenta a casa, uma garrafa de bagaceira pode ser tragada pelo espectador. O turvar alcóolico remete-nos não só à doce embriaguez da infância onde as coisas baralham em oblívio e fantasia  mas também à discreta vertigem dos adultos que resgatam o encanto de outrora quando, apenas crianças, deslumbravam-se com o espetáculo das coisas agora banais.
    Este cândido tom acentua-se não só no registro do naif, mas também no kitsch, arte sobretudo de comentário, provocação e declínio no artificial. Explícita em Diogo, articula reflexos para despertar no espectador uma postura crítica e cómica ante suas próprias concessões às normas coletivas. Suas esculturas, quase todas readymades, assumem este teor. Em Domesticada, o plástico azul-bebé e a flacidez do fio contorcido contrastam tanto com o ferro quente quanto com o rijo erotismo de um homem reduzido à aparência do próprio corpo. Também nas esculturas de Eduardo o kitsch intensifica-se, talvez por aceitar nos objetos toda a sua plástica industrial e tosca qualidade. Embora semelhantes às pinturas em seus motivos e procedimentos, há no entanto um senso de decadência e desleixo ausentes em seus quadros. As postiças verduras soltas na base de Cauda Paradoxo ou os cortes precários das couves em Chop Chop jamais teriam lugar em seu pincel. Também os suportes, móveis pintados em cores berrantes não distintas de algumas molduras, suscitam a ironia entre o amparo familiar e uma quase hostil estridência. Este aspecto sintético mantém-se nas alcatifas do paspatur de suas pinturas, ou mesmo no azul-celeste mais afeito às piscinas que ao oceano em Três golfinhos, onde banham-se bananas.  
    Sua prática portanto associa-se à auto-representação mas sobretudo à auto-ficção. E embora a verdade seja tantas vezes incoerente e assim adequada ao teatro, ver nele uma via à certeza é traiçoeiro pois a própria essência do artifício pode coibir a crença em algo que, caso verdadeiro, não precisaria de ilusões para revelar-se. É este o dilema de tantos artistas, incluso Platão, o amante da verdade objetiva que empregava o teatro para suscitá-la. A prática de Eduardo possui mesmo um pendor platônico pelo entusiasmo do remoto e suspeita do iminente, e o emprego do artifício para entre ambos  transitar. Sua obra parece revelar-nos não as coisas em si, mas a ideia das coisas. Recolhem-se no silêncio de uma distância mais afeita às lembranças que à urgência da matéria, subvertendo assim a hierarquia do par modelo-cópia — mais real é o que afasta-se do físico. A ausência de entropia, paisagem ou escala, as sombras que numa lâmina de ar separam objetos e palco, os dorsos por vezes cobertos em linha branca como delgada auréola — tais operações insuflam em suas figuras uma monumentalidade não ao todo alheia à estatura que certas memórias adquirem em nossas mentes. Mas se o filósofo buscava a certeza da única verdade, Eduardo anseia justo uma verdade singular a si, ao seu próprio íntimo. O arco celeste aqui não é cosmos comum mas a curvatura da caixa craniana recolhida numa arqueologia mental.
    E embora pareça preocupar-se apenas com a dimensão imaginária dos artefatos em sua própria identidade, ao selecionar objetos banais a todos disponíveis, escapa do feixe individualista para acessar o campo coletivo das ideias partilhadas. Em sua obra alguns arquétipos milenares da historia humana — o ovo, o cavalo, a cauda do réptil, o santo, a casa, a esfera cósmica, a aguardente — combinam-se aos produtos da cultura de massas — a bola de guizo, o bibelô oriental, o boneco, o cabo da faca industrial. O banal transcende ao incarnar o eterno, e mesmo tendo seu sentido matizado pelo Imaginário de cada espectador, neste âmbito mais amplo da experiência já não perde-se vulto das interpretações comuns. Pois o indivíduo que crê conservar uma autêntica e coesa identidade é, em certos aspectos, mais parecido com o outro do que consigo. Se ilusória é a ideia deste eu como entidade mais semelhante a si do que com as coisas ao redor, ao servir-se de objetos banais de nosso cotidiano partilhado, Eduardo cria pontes de contacto entre as fantasias que pensávamos singulares mas que em verdade muitas vezes assemelham-se umas às outras. Incluso porque os sonhos tendem a se igualar na sociedade de massas — é esta toda a questão da etiqueta em Diogo.
    Mas uma vez regressos no tempo anterior ao advento da linguagem, no seio do Imaginário, também incapazes seríamos de partilhar do sentido Simbólico. Prévio ao advento da consciência, a criança encantada pela miniatura do Buda não extrai lições de exuberância e bem-viver. Mas explora-o esteticamente: sua polida superfície, o brilho de sua cor áurea, o álgido metal em suas mãos. Suas obras parecem abordar não só o motivo da analogia alegórica entre objetos mas também a sua sintonia física. O ovo cozido refulge quase como as costas do Buda.
    Se Diogo promove um estilo expressivo que manifesta um mundo todo moldado por surtos humanos, a pintura de Eduardo, embora influenciada pelo barroco, implicita a expressão e sugere quase um hiper-realismo. Não distorce o mundo sob o prisma de seus próprios sentimentos pois tenciona conservar o vago encanto de cada coisa, permitindo-nos nossas próprias ideações. Em suas obras há também, na remoção de certos elementos ou sutis sobreposições, uma calculada incompletude — nos corpos das bananas e dos lagartos, no vínculo entre os ovos, o Buda e o guizo, ou mesmo no cabo de uma faca que, partida ao meio, contém todas as lâminas do mundo pois em nós suscita a sua completude.
    Já inserido no ciclo social, o espectador transita entre os registros Estético, Imaginário e Simbólico. Atenta-se ao sutil trato físico das formas, e mapeia o peso de seus teores coletivos, e perde-se no brando torpor da fantasia sempre farta de novos sentidos. Entre o manifesto e o sugerido, sua plácida expressividade permite-nos convergir os campos coletivo e pessoal, como numa busca por sentido em loja de antiquários.
    Este câmbio de registros não é alheio ao tema do clichê: a dimensão simbólica das coisas que o artista carrega consigo e que apresenta-se como obstáculo à realização de uma obra autêntica. Pois ninguém, jamais, aborda a tela em branco. O artista, antes mesmo de manejar o pincel, já conserva todo um repertório de preferências que decerto pautarão a sua prática. Combater tais impulsos para subverter o clichê em possibilidade é, talvez, o ofício central de toda arte. Diogo pinta repleto de imagens e visa suscitar toda a exuberância das escolhas possíveis a alguém já divorciado de um purismo pictórico. Longe do acréscimo, Eduardo empreende uma remoção asceta mais afeita ao iconoclasta pois interessa-se pelo oblívio do indivíduo que de quase tudo abdica e guarda só o essencial, os alicerces que sustentam o palácio de sua identidade.
    Este regresso a um passado mítico é muitas vezes também um exame do presente. Articula o agora através de artefatos de infância que, longe de terem calcificado no ontem, são ressignificados conforme o indivíduo vivencia novas realidades. Talvez mais que ideias sejam então fantasmas de objetos pretéritos, divorciados de suas origens e transcendidos de seus limites mediante o acúmulo de novos sentidos que enriquecem e repreendem antigas noções. Em sua obra morro por acabar, acabo por morrer, os ovos mexidos são berçário de múltiplas analogias, alegoria talvez da mente cujo vício é tecer a própria estrutura pela costura entre coisas, numa teia de associações onde nada é fixo e tudo embrulha — passado e futuro, lembranças e invenções, memória e oblívio. Pintado incompleto, suscita-nos as imagens de uma cadeia montanhosa com falésias, os escombros de uma arquitetura pretérita, e sobretudo o cérebro humano. Nele afundam cavalos, símbolo máximo do movimento e da liberdade, melosas caveiras e uma mosca, memento mori do medo não ao certo da morte. Há nesta obra, mesmo em seu nome, o signo da inversão: o ovo mexido talvez não esteja expandindo, mas regressando ao íntimo. É não o destino, mas a origem do ovo cozido.
    E não seria sempre assim? Não só o passado esculpe o presente, também o presente altera o passado. Jamais neutra, a lembrança reinventa a memória do evento mediante o ânimo atual daquele que recorda. É falaz, o culto ao tempo linear — se encontro-me sempre imerso na lâmina do agora, a matéria do ontem é tão maleável quanto a estrutura do amanhã. E portanto Eduardo, que hoje aplica-se no enceno do ontem para comentar eventos atuais, acaba por baralhar o fluxo do tempo, pois está demasiado corrompido para voltar à pureza de um período ainda intocado pelos eventos que moldaram a sua identidade. Em sua obra o agora é não consequência, mas causa do passado: concebe uma pseudo-infância onde desde criança sabia, inconsciente, o desenlace de sua existência. Simulava-o nos objetos ao seu dispor, bonecos de lagartos e bananas-golfinho, como um oráculo a lançar  búzios no cesto de palha. Mas não há deuses aqui, apenas intuição existencial: as vagas lembranças de eventos ainda não manifestos. Esta estranha clarividência é quase a mesma das figuras de Diogo, no entanto mais turva — a violência é senão pressentida.
    O hoje infindo de Diogo e o remoto hipotético de Eduardo são a nossa condição. Sob a película de suas obras ambos conservam um tremular todo ele fugidia dúvida. Se constrangido sigo entre um passado meio esquecido e um futuro de supostos esboços, entre a saudade do que ainda não é e o desejo do que foi perdido, então a fantasia do hoje em tudo triunfa: o teatro é o próprio teor do real. Entre oblívio e invenção edificamos a nossa ilusória identidade.  

IV

O construir da consciência, segundo Sartre, é um aprender a sair de si. Quem pensa foge da clausura do agora: lança-se ao ontem, ao amanhã, ao perto e ao distante. Viver é estar além — o eu é ausência magnética projetando-se nas coisas. A existência precede a essência pois absoluta é a liberdade, e o desenho criado pelos trajetos de um eu que não cessa em si contém o mapa de quem somos. Jamais possuímo-nos, portanto, e a falta de um cerne onde ancorar nossas escolhas torna-se a pior das clausuras.
    Imersos num hoje de infindável fantasia, ambos os artistas falham sob o peso de suas próprias liberdades. Eduardo incerto ante a verdade do ontem, pois dentre fantasmas busca a linha mestra de si. E Diogo, cético pelas promessas do amanhã, encontra em suas figuras a inabalável crença de que nada será distinto. Eduardo vai de encontro ao que é mas não consegue fugir de si, e Diogo visa reinventar-se mas é incapaz de escapar dos outros. Entre o já-não-mais de Eduardo e o ainda-não de Diogo, crivado de vazio está o existir. Esta ausência a ambos amedronta, e cada um opera-a à sua maneira. Diogo aceita o arbitrário assumindo um cinismo satírico. Eduardo, para escapar da eterna ciranda dos costumes, busca no método e no íntimo a lucidez de uma verdade que sabe ser inviável. O ceticismo de Diogo e o esforço de Eduardo retroalimentam-se numa perpétua cadeia que mantém tudo em suspenso: a falha do indivíduo tolhido socialmente de compreender-se gera a desesperança que alimenta a busca por novas identidades, logo acolhidas às etiquetas sociais. Falta telos em ambas as obras — não há conclusão. Tudo é, sempre, interminável espera. Este perpétuo ínterim é atroz pois a ausência do fim anula também a chance de redenção. Difícil não recordar-me do Eterno Retorno de Nietzsche que, ante a inexorável volta de tudo o que foi, encontra saída apenas na aceitação da dor. Mas a dor, quando inevitável, é banalizada até ser sequer assimilada. Encenada, perde o seu impacto e, seja no processo de Eduardo ou no conteúdo de Diogo, torna-se convenção. E deixa de doer. E a falta de dor é o que mais dói.
    A implícita tristeza das figuras de Diogo revela quão difícil é calar no íntimo do indivíduo a emergência do recalcado. A desesperança dos que pensam antever o amanhã não impede o advento de uma angústia que, se não sublimada em ação, transforma-se em melancolia: a sensação de um vazio insanável, sobretudo quando tudo futilizou-se. O humor irónico de suas obras, mesmo os sorrisos de seus personagens, sugerem uma oculta tristeza. O sujeito anestesiado concentra tudo no íntimo. É este, talvez, o tema crucial das obras de Eduardo.
    Seria uma branda tristeza o nosso estado ideal? A felicidade transborda o sujeito e a tudo preenche no ímpeto de um gozo pessoal que oculta a real natureza do outro. Já a agonia anula o mundo sob a urgência de um estridente desconforto que recolhe o indivíduo sobre si. Mas a melancolia, tão doce quanto amarga, a nada anula. Entre tudo abre fendas sensíveis à influência do outro. Ensina o delicado pois, ao respeitar a integridade alheia, ojeriza o enfático. O sujeito vulnerável compreende o silêncio das coisas e, solitário, anseia a sua companhia. E afasta-se de seu próprio centro apenas o bastante para, na borda de si, aproximar-se do estranho encanto do outro. Este estado meio-vazio, half-empty, é o tom do atento existir.
    Diogo espalha-se em numerosas veredas, sua tristeza é um vulto invisível jamais validado pois em sua obra a ideia de sucesso, como tudo, é relativa. Assume a prática do artista que percebe a cultura como falsa mas já não contém o ímpeto romântico para torna-la legítima, preferindo transforma-la sem o peso de um norte único.  Testa todos os estilos pois já não crê em nenhum — como qualquer valor social, são só artifícios passageiros. Suas figuras exauriram-se sob a vertigem de tantas alternativas, como exaustos estamos ante um real onde o acúmulo de signos sobrepõe-se ao sereno anseio de verdade. Apenas performam as regras de sua realidade. Como atores que, soterrados pelo constante câmbio de máscaras, olvidaram suas próprias feições. Pouco importa. A dor maior já foi superada: a busca por sentido. Esta ausência do sagrado talvez seja o maior de seus temas, e comenta muitas de nossas angústias. Suas figuras perderam dignidade e, vencidas, já não podem dizer Não.
    É esta a dor de Eduardo: incapaz de aceitar o estado das coisas, entrega-se à uma crença ainda cética no sagrado. Anseia uma impossível redenção pois compreende que as fantasias do indivíduo, para sempre matizadas pela convenção, não conseguem extrair dos objetos um grau de pureza anterior ao despertar da consciência. Ante a desordem da vida opta pelo autocontrole mas também ele é-nos interdito, pois o caos presente no mundo nasce justo do caos aninhado no íntimo. Assim amarga, enquanto artista, o próprio cárcere revelado nas obras de Diogo. A obsessiva minúcia com que compõe as suas obras volta-se contra si pois alimenta uma auto-consciência tão acentuada que atua como obstáculo em sua busca ao inconsciente. Se a opressão em Diogo advém de agentes externos, em Eduardo a tirania brota de dentro. Não à toa seus horizontes são pintados tortos: é inviável atingir o destino pois os olhos que fitam estão, eles próprios, retorcidos. É este o aspecto trágico de sua obra: crer profundamente e, ainda assim, duvidar. Neste universo tudo é sagrado mas nada divino, em todas as coisas há uma aura nunca por inteiro revelada, despertando-nos a dúvida do crer, e descrer, haver ali algo a mais. O ardor da crença e a mágoa da dúvida entrelaçam-se em sua obra.
    Diogo trabalha um mundo todo carne e consciência. Eduardo um real de conflitos entre o aparente e o oculto. Diogo é a fadiga da constante invenção de um mundo já derrotado. Eduardo, a potência jamais manifesta de uma comprometida busca por respostas. Sob o solene de Eduardo, há riso. Sob o trivial de Diogo, há pranto. Como na ironia de sua obra Voulez-vous un rendez-vous tomorrow?, onde uma orgia de coelhos perde o vigor mesmo se pintada em cores saturadas, pois encerrada está no ecrã de um televisor. A intensidade cromática não advinha do êxtase animal mas de uma má regulagem do sistema de transmissão. Ou na obra Cauda Paradoxo de Eduardo, onde o sacrifício pelo  grande amor revela-se falso, pois abdicada uma parte desnecessária do corpo que, enfim regenerada, poderá perder-se noutros encantos. Mas mantém-se os cadáveres em coração, símbolo ingénuo dos mal-amados de sangue frio. Seria toda a sua prática a composição de falsos sacrifícios?
    Não obstante tal invencível derrota, ambos seguem adiante pois nada mais pode o artista fazer salvo continuar. Esta suspeita expectativa lembra as asas em chamas de Ícaro ou a escrita de Beckett, que compreendeu o colapso no centro de todas as coisas e seguiu, num jocoso ceticismo que encobre, mas não anula, a faísca do ardor, esperando Godot até o fim de seus dias.

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BIBLIOGRAFIA

BARRETT, William. Irrational Man. New York: Anchor Books Editions, 1990.

BECKETT, Samuel. Murphy. London: Faber & Faber, 2009.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984.  

HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor. Dialectic of Enlightenment. Stanford: Stanford University Press, 2002.

LACAN, Jacques. The Mirror Stage as Formative of the I Function. In. Écrits, New York: W.W Norton & Company, 2007.

MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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