VIGNETTES
Em 1846 o matemático Le Verrier estranhou a órbita de Urano. Supôs o empuxo de outro planeta oculto atrás. Dias depois confirmou-se sua existência. O primeiro planeta descoberto por previsão matemática, algoritmo antes de ponto no céu. Seu primeiro nome foi Janos, o Deus dos começos. Pois agora era ele o portal a um cosmos invisível. Mas sua cor azul se impôs e optou-se por Netuno, o Deus dos mares. A solidão de Netuno é ser o único planeta do sistema solar que o olho nu jamais verá. Em calmo oblívio ele flutua. Sua solidão é também o sentimento daqueles que, ao não o verem, sabem-se pequenos. Naquela noite Le Verrier sonhou-se correndo o sistema solar e nas margens de Netuno contemplou a vastidão insondável do cosmos aberto. Mas virou-se e viu o planeta Terra e ali entendeu o poder das coisas pequenas.
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Thomas Chatterton suicidou-se em seu pequeno sótão. Numa vida sufocada em banalidades nunca descobriu-se mas veio a conhecer a boca da letargia que o engoliu. No momento da morte sua vista falhava. Via tudo incompleto e nas lacunas ele podia expandir-se oceânico. Sonhou ser um ilustre imperador que sob o jugo de seu cetro unificou todos os povos do mundo. A titânica extensão de seu império lhe escapava o entendimento. E súbito seus olhos encurtaram nas paredes do quarto, o frágil corpo trêmulo e a alma escorrendo para outro lugar. Em morte descobriu jamais ter vivido, toda a sua vida um sonho sob portas fechadas. Alienado de si, quase não soube qual dos suspiros foi o último. Morrer foi como acordar.•
O abade queria mais luz. No hálito áureo do Deus eu hei de perder-me, dizia. Para sustentar o sopro divino ele e seus construtores ergueram um altíssimo templo todo suspenso em inovadora estrutura de geometria divina. Como se o próprio Deus empunhando um compasso o tivesse feito. Tudo para escorrer o peso da luz. Ou seria, pontuou o mestre pedreiro, a luz acima que levanta a estrutura? E mesmo após erigido o templo, o abade nunca teve a certeza de sentir na luz o sabor divino.•
Em dado tempo veio a apreciar a máquina. As voltas lustrosas em seus membros de ferro a tudo indiferentes salvo a perpétua moção. Mas jamais chegou a saber o que era a pequena peça que tantas vezes, na fábrica, produziu. E nas lojas e feiras contemplava toda a abundância de coisas e não sabia qual delas ele próprio havia feito. Tantos estímulos e tudo parecia remoto, assim como remotas eram as pessoas ao redor, assim como remoto era o seu semblante no reflexo da vitrine. À noite sonhou uma exposição onde os objetos admiravam e manuseavam as pessoas das estantes, todas similares pois haviam-nas produzido em série nas fábricas. Ao acordar, conseguiu extrair um sentido divino disto tudo. Pois se somos todos partes esquecidas de seu papel ou propósito no esquema geral do universo mas que devem ainda assim encontrar sentido na lasca de vida que nos é dada, também pode haver um sentido a ser contemplado nas engrenagens às quais ele dedicava todos os seus dias, ainda que — ou por causa de — o papel por elas desempenhado no desenho do objeto final fosse a ele sempre interdito.
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O grupo liderado por Horace-Bénédict de Saussure escalou Mont Blanc em 1760. No regresso em meio a uma inesgotável nevasca alguns dos alpinistas viram em sonho os domos de uma arquitetura ou morada celeste de algum tipo. Em seus templos de vidro palpitavam corações de carne macia e doce. Os alpinistas acordaram sentindo-se ocos por detrás das costelas. Convenceram-se de sua existência. Não mais foram vistos.
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Ao pisar fora de casa ele primeiro sentiu no tambor da pele a atmosfera latejante e suas têmporas tardaram para se adaptar aos reluzentes corredores da cidade ela toda de mármore branco à frente uma Igreja Gótica cujos ornatos na fachada exibiam uma cena tão sublime que ele foi incapaz de interpretar e sendo assim decidiu seguir em frente sozinho sob o toldo de uma noite sem lua pois ele levantava a cabeça mas suas retinas não encontravam o nobre astro e não à toa também sentiu a falta da estrela do norte e costuma-se dizer que a falta de tal estrela denota a inexistência de um caminho e não é que naquele mesmo dia à tarde ele havia rezado nas cinzas de Saramago e no sussurro das folhas da árvore que delas brotara ele foi incapaz de captar conselho algum que fosse mas mesmo em meio à tais memórias incômodas optou por seguir seu caminho nessa noite sem lua e com astros de arcos confusos e passou ao lado de pessoas de terras longínquas conversando em línguas estranhas com os dentes vermelhos de belo vinho todos eles estúpidos ciclopes prestes a perder Ulisses mas não haviam cavernas pois as esquadrias das construções iluminavam-se mas ainda menos que um imenso pinheiro de ferro onde ele hesitou em entrar pois brilhava de forma indecente atraindo a todos como moscas de fazenda e seguiu até comprar uma cerveja e sentar-se recolhido ao canto de um bar observando toda a gente como certa vez fez Van Gogh em seu Terrasse du café le soir o valoroso romântico solitário artista visando interpretar o inefável de uma existência fugidia pintando em talhos frescos de tinta pois tudo está sempre em movimento a vida dinâmica nos impede de descansar e não há nada senão a reles caça ao retrato do que nunca cessa nada senão a absurda busca pelo instante que está sempre agonizando pois o tempo corre e os planetas correm e as coisas crescem e não há respiro sob o céu nem acima dele pois não há nada no universo senão indiferença então por que pintar imóvel para retratar o fugidio ou o finito para expressar o infinito pois são assim os esforços humanos todos absurdos como é a natureza que nos gerou e cuja placenta é repleta de farpas e na lasca esquerda de seu olhar ele viu um velho com sinusite e barba similar à sua e grossas sobrancelhas como as suas e o sujeito cantarolava a valsa num timbre não de todo estranho e ele notou que as pessoas usavam máscaras e sentiu a carne de sua face de uma falsidade grotesca e virou a cevada e fugiu à ribeira onde o hálito da água era de um frio que ele ainda não havia conseguido acostumar-se e não à toa o dorso do rio crispava em ondulações delirantes que o angustiaram e assim voltou os olhos ao piso onde viu a sombra rasa de seu corpo alongando-se à frente com a cabeça sendo decapitada pelas marés e logo notou ao percorrê-la que ela apontava um farol à distância no centro do eterno Tejo piscando sua tênue luz amarela piscando piscando como a frágil promessa das coisas que sequer damos nota até que algo singelo nos lembra de sua existência e são esses os momentos que cavam o fundo abismo da vida e no leito de meu coração surgiu um anseio insuperável de tocar o farol pois se tanto já andei nada me resta senão mais um passo a grande virtude de seguir em frente quando tudo ao redor é inviável e no seio da noite fria lancei-me à água sequer tirei a roupa e logo senti o peso de meus sapatos ao removê-los engoli água e a ágil correnteza arrastou-me para longe do farol e sob um fio de vida me vi em meio a enormes navios com cascos como torres que urravam e ali a força bruta do rijo deus do engenho e da indústria não me escapou tal é a índole da divindade de todas as ferramentas que possuem função explícita e portanto opõe-se ao inconstante espírito humano que queima nos pés dos peregrinos vagueantes e alcei minha cabeça acima e em meio à névoa celeste notei um avião correndo piscando piscando similar ao que onde eu mesmo havia estado na noite anterior e foi a coisa mais estranha pois lembro-me que havia no avião um menino também chamado Tomas também com o cabelo em corte asa-delta e olhos inquietos e um dente negro pois chocou-se no terceiro pilar à esquerda no pilotis da velha escola e tal menino sentou-se ao meu lado e não disse palavra por todo o vôo senão em dado momento ao mirar as nuvens e dizer E amanhã eu também me verei vendo todas as coisas informes cuja linguagem nenhum livro é capaz de captar foi um típico deja-vu pois algo em mim me fez lembrar da frase e a vinte mil léguas de altura enunciei com ele em simultâneo e eis que agora enquanto eu afogava-me entre goles d’agua eu de novo gaguejava as mesmas palavras e meus olhos inquietos de águia viam numa janela desse avião a face de um menino vendo a névoa e outra atrás piscando piscando ao além do alcance da mão que já pesava miserável sob a água enquanto todas as pessoas falavam coisas que piscavam em seus dentes reluzentes como mármores brancos e em meio à elas na terra como um solícito camarada estava o farol e já não mais piscava. •
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E você entra em seu quarto talvez um tanto inoportuno pois ali jaz o grande homem, teu avô com as pernas para cima sendo manobradas pelas mãos da médica, e você vai ao seu lado e primeiro assusta-se com sua pele gomosa e seus pálidos lábios, os olhos encovados e a vida esvaindo-se na folga do hálito, tão rápido, tão cansado. E a morte aninhada em seu peito. Mas você quer beijá-lo e quando seus lábios tocam-lhe a fronte sente mais uma vez aquele perfume que guarda tanto de tua infância, as tardes douradas e o doce ócio e o barulho dos insetos, o murmúrio dos talheres e o rompante das risadas, tudo ali conservado nas rugas do velho que teus lábios tentam preencher. E tu seguras-lhe a branda mão e lembra de momentos, principia frases na esperança de acender algum tendão neuronal e fala demasiados Você lembra?, Você lembra?, e de fato escuta, nos fiapos daquela débil voz, certas longínquas trovejadas serrando o horizonte do oblívio, palavras-chave que confirmam, por detrás de toda a névoa ele entrevê, e se lembra. Mas também sente, no assentar da poeira sobre a cômoda, o desinteresse, o desapego dele pelas ocorrências da vida, e percebe que isto tudo importa apenas para ti, e dali a poucos minutos ele esquecerá de sua visita, e de suas palavras, e dos lumes acesos nos nódulos da mente, e o teu anseio de ver algo ali realizar-se é vão, e o vínculo genuíno que tencionava construir revelou-se uma conversa sufocada pelo peso do silêncio, inútil, talvez seja melhor deixá-lo só com suas feridas e seus vícios, com seu sossego e tumulto nesta jornada para sempre distante daqueles que ainda guardam distância dos dias últimos. E horas depois teu pai vai ter contigo e você sente a agonia na lacuna de suas falas, nas estrias de seus olhos, e na falta de ter o que dizer, nada diz, e de novo perdeu-se a ponte e no palco do instante não foste capaz de entreter nem discursar, esteve abaixo do que a vida lhe pediu, mais uma vez entendeu o teor momento tarde demais, viu-o de costas, e pensou que amanhã será melhor, e talvez seja, mas esta noite o pai lamentará sem o afago do filho.