o muro como habitar



Muros não podem entrar em colapso, nem serem demolidos (nem mesmo o muro de Berlim), uma vez que eles são a “nossa casa".
Souto de Moura1

Não creio em destruir para construir. Prefiro ser o elo condutor de uma história.
Álvaro Siza2

Escolho descansar na ponta de um longo banco de pedra branca, tangencial à avenida de carros. Ao sentar, percebo a sua densidade maciça. Decido lhe dar algumas batidas com a mão. Seu som opaco quase não alcança meus ouvidos, abafado pelo barulho das rodas dos carros em contato com o asfalto. Estou ancorado, e miro o mar. Atrás de mim, edifícios longos de quatro pavimentos, preguiçosamente alinhados, apontam seus corpos em direção à orla. Abrem grandes vãos de janelas, em uma tentativa esquizofrênica de alcançar o mar através do enquadramento total dessa paisagem azul. Visitar o projeto da Piscina das Marés, de Álvaro Siza, é ser induzido a uma forma de perceber a paisagem diferente da proposta por esses blocos residenciais: primeiro se confronta a imagem do horizonte que está do lado de lá para depois senti-lo se revelar a você, camada por camada.
    Levanto-me, dou uma última olhada nos banhistas, e começo a andar. Sou conduzido por esse banco-linha que mais me parece o começo de um muro que nunca foi completado. Seu estado agora tímido não o remove totalmente da condição de elemento condutor e limítrofe, então pretendo deixá-lo me guiar. Já estaria eu dentro da obra que vim visitar? Álvaro Siza articula o chão de uma forma que o faz se desdobrar, para por vezes crescer em volumes que conduzem, por vezes se subtrair em espaços de vazios pensados. Esse desdobrar-se do chão faz com que os limites do corpo da obra se tornem difusos, e assim começo a ser conduzido antes mesmo de entender se estou, de fato, dentro do território da Piscina das Marés. Siza delimita ao mesmo tempo em que des-limita.

(...) a arquitetura não termina em ponto algum, vai do objeto ao espaço e por consequência à relação entre os espaços até o encontro com a natureza.3

    Olhando em direção ao mar, vejo os planos em diferentes alturas que compõe a laje do edifício. São cobertos por telhas corridas de cobre oxidado. Seus tons esverdeados parecem manter um diálogo simultâneo com o Atlântico e com a vegetação. Imagino que tipo de luz entra por entre as fenestrações dessa laje desencontrada, para enfim banhar os ambientes internos do edifício. Uma luz solar de Portugal, talvez.
    Começo a andar, com a minha face pousada em cima do ombro esquerdo. O corpo do primeiro volume - e o maior de todos - que se projeta para cima do nível da rua me cobre o horizonte. Continuo andando, vendo agora apenas o azul do céu solar. O segundo volume é um pouco menor, e ele me apresenta de novo o horizonte - só o horizonte. Sua laje inclinada o aponta para mim. Meus pés não param, como quem gira freneticamente a fita do filme, com medo de talvez perder o que a narrativa quer contar. O terceiro volume é o mais baixo, e me mostra, por uma última vez, a praia e a piscina. É uma imagem que logo se ocultará, para assim lentamente revelar as suas inúmeras facetas a mim de diferentes maneiras, ao longo do meu circuito pela obra. Aqui, de fato, me sinto convidado a andar. Siza parece projetar em 4 dimensões, onde a movimentação do visitante o faz perceber a construção do território. Um andar que movimenta uma narrativa projetual que se desdobra e lentamente se revela a quem está disposto a percebê-la. Uma anunciação da obra que ainda está por vir, mas que já começa a se presentificar antes aparecer totalmente, corporalmente.
    Logo, meus pés me sinalizam o começo de uma rampa.

O edifício dos balneários está ancorado como um barco no muro da marginal. Dali não sai.4

    A marginal de Leça da Palmeira, em Matosinhos, é demarcada pela presença ubíqua de um limite: um muro de arrimo suporta a zona urbana ao passo em que a separa do litoral. Sua superfície de concreto claro cria um desnível entre a cidade construída e a natureza: uma colagem até então imperturbada de areias amarelas, rochedos e oceano, “com toda aquela força que o Atlântico possui”5.

A relação entre natureza e construção é decisiva na arquitetura.6

    Todos os anos, nas marés vivas, o mar leva o que não é essencial. Naquele sítio, um maciço rochoso interrompe as três linhas paralelas: encontro do mar e do céu, da praia e do mar, longo muro de suporte da via marginal.7
    É possível entender o ato de construir como um erguer limites. Limites que, juntos, traçam o contorno do corpo de uma figura que é facilmente percebida enquanto um artefato construído por seres humanos. No entanto, essa figura não se encerra nos seus limites. Ela se expande para além do seu corpo material, criando todo um campo que coloniza a paisagem. Uma paisagem que agora age como fundo. Um fundo cuja existência está agora atrelada, em uma relação hierárquica, à figura. Uma relação, então, de figura e fundo. As árvores que tão generosamente nos proporcionam sombras e frutos, o rio que nos lava, a grama que massageia nossos pés acabam por se tornarem todos parte de um grande fenômeno conhecido como o lado de fora. Já a casa, a lareira, a mesa de jantar e os quartos, os banheiros e os corredores se tornam parte de um grande e central ambiente conhecido como o lado de dentro. Entre o lado de dentro e o lado de fora, existem limites muito facilmente reconhecidos. Muros, lajes, pisos. Seria, portanto, na separação ao lado de fora que nós encontramos a nossa identidade enquanto seres humanos habitantes da casa, e do mundo.
    Essa leitura bipolar da arquitetura foi amplamente difundida em certos momentos históricos que viam na figura do homem uma presença controladora e central do universo. Durante o Renascimento, por exemplo, a temática conhecida como a “vista da janela” se tornou muito bem estabelecida. As pinturas - e o seu jogo de corpos e volumes para criar a falsa sensação de uma perspectiva pautada pelo olhar - procuravam se mostrar, quando presas nas paredes, como janelas para uma paisagem qualquer. Essa articulação estabelecia, muito claramente, uma separação entre o lado de dentro que tomava o papel central de figura, e o lado de fora que recebia o papel marginal de fundo. Não coincidentemente, o movimento moderno se usou dessa mesma ótica em alguns dos seus pontos fundamentais, como o estilo towers in the park, ou nos desenhos de Le Corbusier, onde o observador frequentemente se via confrontado por uma grande janela que enquadrava uma distante e belíssima paisagem.
    O filósofo alemão Martin Heidegger procurou diluir os limites binários dessa relação figura e fundo. Para ele, esses limites auto-impostos nunca se tornam rupturas absolutas. Mesmo que nós tentemos nos esconder detrás de recintos fechados e procuremos nos ver como um elo à parte dos fenômenos que existem no mundo de fora, a nossa presença na união de todas as coisas ainda é necessária para a nossa sobrevivência. É através das aberturas nas nossas casas que a brisa selvagem entra pela sala, que os raios de sol beijam a louça, que o frio ou o calor tocam a pele de quem vive recluso. O barulho humano da ceia de jantar emana e corre por entre as flores do campo. Através do labor do homem, os frutos da crosta da terra chegam à mesa de jantar - o centro magnético da nossa vida - sob a forma de pão e vinho. Para Heidegger, “habitar uma casa significa habitar o mundo".8
    É, portanto, no espaço entre as coisas onde a vida brota. Na energia do vazio. Nas aberturas e fendas e rasgos que todas as coisas têm, e que as permitem se comunicar com os outros fenômenos nesse mundo das coisas. Sem a fenda não existiria troca, e sem troca não existiria vida. Heidegger aposta em uma diluição dos limites dos corpos físicos que habitam nosso mundo. No campo que emana de cada corpo e domina o vazio do entre, o transformando em um espaço vivo de choques e toques. E dos toques, surge a força da vida que brota. Ainda assim, esse campo ainda se vê ancorado por um corpo físico que possui limites próprios que o separa dos outros. Uma fronteira que age como um filtro de passagem: uma superfície de contato que separa e une ao mesmo tempo.
    Sendo, fundamentalmente, um limite, a pele do corpo humano também abriga essas aberturas. Os olhos, a boca, os ouvidos, o nariz, o ânus. Entradas e saídas, canais de troca entre nós e o ambiente ao nosso redor. É através deles que nos guiamos pela carne do mundo, por onde pautamos a nossa existência.

Estando ali, o edifício se mantém contra a furiosa tempestade acima de si e assim faz a tempestade se manifestar em sua violência… O forma física do templo torna visível o espaço invisível do ar.9

(…) o templo torna visíveis todas as coisas do mundo: a rocha, o mar, o ar, as plantas, os animais e até a luz do dia e a escuridão da noite. Em geral, o templo “abre um mundo e ao mesmo tempo volta a situá-lo sobre a terra”. Fazendo-o, confere verdade à obra…Por fim, o templo proporciona a visualização da terra…Assim fazendo, dá uma aparência às coisas…o templo não se soma ao que já está lá, mas o ato de construir faz com que as coisas surjam como são.10

    No entanto, essa fronteira não é, por si só, um espaço. Se qualifica apenas como um limite, um filtro, uma linha negra rabiscada em um papel qualquer. E não se pode habitar traços solitários. Eu habito o vazio da casa, e apenas atravesso suas paredes para me ver na paisagem de fora.
    Mas e se fronteiras conseguissem ser habitadas? Como seria esse terceiro território?
    Simplesmente transpassar fronteiras ainda é pouco para Siza. Portanto, começa a se insinuar uma grande questão ao arquiteto: como entrar na praia? Ou, talvez, melhor ainda: como habitar um limite?
    Sinto-me convidado a entrar na rampa. Desço. Sua entrada é estreita, e seus muros se alargam à medida que me afasto do calçadão e dos barulhos da cidade. É quase uma transição onde sou seduzido a adentrar um lugar que gosta de estar alienado à vida urbana, mas que por enquanto só consigo imaginar - estou andando em direção à um muro cego. Conforme vou descendo, percebo melhor os sons da cidade que começam a se despedir de mim, ao passo que um grande volume vai se revelando à minha esquerda. Descer essa rampa é quase um ato de escavação. O mar é agora apenas uma memória. Não escuto mais a rua, mas sinto um eco do vento, como se ele tivesse sido filtrado pelos muros labirínticos da obra e cantasse agora para mim uma canção de latência. Ao fim da rampa, se abre no meu lado esquerdo uma entrada para os ambientes internos do edifício. Uma subtração no canto desse grande volume que escavei com o meu andar. Aqui, há uma escolha a se fazer: sigo o percurso dos descalços ou dos calçados? Posso entrar no corpo da obra se for essa a minha intenção, mas também existe a possiblidade de, munido de meus sapatos, seguir à direita ao longo de um corredor linear contido pela presença de dois muros paralelos, que pode me levar a lugares que ainda desconheço.
    Porém, com a cautela dos que não sabem o que se aproxima, dou meus primeiros passos em direção à escuridão. Antes de entrar, percebo que estou coberto por um beiral. Sua sombra me dá um frio abraço, mantendo o meu corpo estático, em um entre externo/interno. Entro no vestiário. A pouca altura do pé direito me indica que me encontro em um espaço mais íntimo. Na piscina das marés, não existe luz artificial. Os vestiários são naturalmente escuros. Uma tímida claridade entra pelas frestas formadas pela pouca altura das suas paredes de madeira, como uma luz que só existe para evidenciar a escuridão. Estou sentado em um corredor. No seu fim, uma iluminação natural brota de cima e ilumina uma única pia com um espelho redondo, que ao tocar a claridade se torna um farol que me guia no escuro.
    À minha frente, baias. Uma série de portas iguais entre si e em perfeito ritmo compõe um plano escuro que aperta o corredor. Sinto um cavalo de corrida relinchar nas entranhas do meu espírito.
    Retiro meus sapatos e sinto o frio da pedra tocar meus pés. Entro na baia e continuo a me despir. A cada tecido que toca o chão, sinto que me torno menos um cidadão pagador de impostos e mais um fenômeno vivo, um animal que quer habitar a paisagem - mas apenas quando o momento for certo. Quero ficar pelado, completamente nu. Entrar nessa baia e sair galopando em direção ao horizonte. Imagino o meu corpo abraçando a areia com a bunda apontada para o céu, mas a minha alma não é tão selvagem. Ainda assim, sinto que a minha passagem pela obra está também me revelando, lentamente, um outro tipo de natureza. Uma que vem de dentro. Vejo, do outro lado e enfileirados na parede à minha frente, pias de piso. Lava-pés. Mais um ritual denso de significados. Lembro-me de Jesus Cristo e das histórias bíblicas que minha avó me contava, e me indago se Siza, habitante de um país católico, não pensou também.
    Um rasgo abre um grande vão na parede, e o sol me convida ao abraço. Cruzo a linha desenhada no chão entre a sombra e a luz, e sinto o sol esquentar meu corpo. Paro por alguns instantes. Estou em um amplo espaço, talvez um pátio. Daqui, não consigo ver paisagem alguma. Estou num espaço entre, quase abstrato. Mas escuto a cidade e o mar. Os banhistas, os gritos de crianças. O vento no horizonte, os carros e suas buzinas. Não vejo nada, mas escuto tudo. Uma sensação sutilmente dissonante domina meus ouvidos. Em um surto de lucidez, percebo que estou no entre geográfico. No lugar de choque, na fenda existencial de Heidegger. No breve instante em que o corpo passa pela soleira da porta da frente da casa, e o pé da frente começa a tocar o lado de fora ao mesmo tempo em que o de trás começa a flutuar em cima do piso da casa. Consigo escutar tanto os talheres da mesa de jantar quanto o canto dos pássaros nas árvores. Siza, na Piscina das marés, prolonga esse lapso momentâneo, e o transforma em um longo percurso ritualístico de percepção total da paisagem.
    Onde estou, não existem elementos tradicionais aos pátios portugueses - tão caros à tradição construtiva desse país - como fontes ou árvores cuja natureza foi dominada pela mão do ser humano. Mas existe a natureza sonora da paisagem ao meu redor. Consigo escutar, tão claro quanto a luz amarela que bate nas suas paredes de betão, o som ubíquo do oceano Atlântico, indomável e constante. Um corpo sonoro, uma presença ausente. Logo, uma imagem mental desse gigante azul, uma memória de quando ele se revelou a mim, ainda na via dos carros. Dois simples muros de betão não são o bastante para me separar totalmente do mar. E nem deviam.
    Siza nos propõe, nessa obra, uma forma muito sensível de habitar o entre, onde os lugares e fenômenos que são apresentados a nós existem em um limiar da fisicalidade e da imaginação.
    O som do mar português me fez perceber como eu estou com sede. Um tipo de sede não apenas físico, mas também da ordem da saudade. Um tempo humano. Começo a sentir falta de todo aquele azul que primeiro se revelou a mim. Começo a acelerar meus passos.
    Cruzo o pátio e olho para frente. Finalmente, reencontro a praia. As rochas e a areia, o mar e o horizonte. Uma brisa me dá boas vindas, e o som de albatrozes e maresia é tudo que eu escuto. Já consigo ver o mar sem qualquer tipo de obstrução, e sinto o seu vento. O som que eu vinha escutando tem agora um corpo azul. Estou do outro lado.
    Quão mais próximo do horizonte eu chego, mais o corpo de betão se esconde por trás das rochas. Ele está assentado nesse território, escavando a paisagem. Olhando de volta para a cidade, vejo pessoas na rua tirando fotos. Seus corpos estão cortados da cintura para baixo pela laje da obra. Assim como no começo do meu percurso - antes de descer a rampa - meus olhos conseguem atravessar e me mostram o outro lado. Agora, da praia para a cidade.
    Seus muros de betão parecem cansados. Suas cicatrizes sinalizam o seu estado de espírito. São marcas que surgem do choque frequente com o imensurável. Esse processo lento e contínuo de sedimentação ajuda a inserir ainda mais esse grande corpo geométrico na lógica temporal dessa paisagem, o que me faz perceber todos os seus estágios de vida. Todas as coisas aqui presentes vivenciam a passagem do tempo, e contribuem através da decomposição dos seus próprios corpos para a composição desse lugar. As ondas batem nas rochas e fazem surgir as areias de Matosinhos, feitas por uma mistura bastante heterogênea de pequenas pedras brancas e beges, lisas e rugosas que quando olhadas de longe, se mesclam em um mesmo tapete. Essas mesmas rochas também estão presentes no betão ciclópico que compõe o corpo do edifício. Gosto de pensar que Siza também escolheu usar a água salgada do Atlântico na mistura desse material, para fazer surgir o betão, que por sua vez se choca com a luz do sol, com a maresia do mar, com a chuva do céu e faz surgir… alguma coisa. Se choca também com a carne das pessoas.
    Todas as coisas do mundo são compostas basicamente do mesmo material biológico, mas não são iguais entre si. Humanos e árvores, uvas e elefantes, água e diamantes possuem corpos diferentes, mas, em um olhar mais atento, se convergem em quatro pequenos elementos: carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio. Essa aparente divergência de corpos representa, apenas, diferentes formas de existência. O que Siza faz na Piscina das Marés é deixar aparente essa proximidade de conteúdo, através do diálogo da materialidade do objeto arquitetônico com a paisagem onde ele está inserido. Ao se usar da areia da praia para criar o betão que compõe o corpo do edifício-muro, ele se insere nesse processo temporal da erosão das rochas. E assim, uma rocha antropomórfica é criada. Uma que é composta de planos e linhas retas, mas que ainda assim pertence a esse lugar.
    Aqui, a obra de Siza não procura fugir da ação do tempo. Ela o convida para si. Também não deseja usar o tempo como um veículo para defender algum ponto. Não procura revelar uma época qualquer, não é historiográfica, nem procura abstrair a passagem do tempo. Ela simplesmente se dispõe a tornar manifestada a passagem do tempo longo da natureza. Nos mostrar que ele existe, e que mesmo um orgulhoso muro de betão está sempre em constante movimento.
    Ao mesmo tempo, a forma como o forte sol português e a sua luz clara se tornam táteis ao tocar os muros de betão e o piso de pedra fazem dessa obra um grande relógio solar: e assim o tempo curto do cotidiano ganha corpo também. O tempo do dia e da noite, do par de horas que habitei esse lugar. Da dança diria entre sombra e luz.
    Imerso nessa atmosfera criada pela piscina das marés, quase consigo segurar o imensurável nas minhas mãos.
 
Luz é a doadora de todas as presenças, mas o que é feito de luz projeta uma sombra…O nosso trabalho é o da sombra…O sol nunca soube quão grandioso ele era até que atingiu o lado de um edifício…Estrutura é a doadora da luz. Eu não posso definir um espaço realmente como espaço a não ser que eu tenha luz natural. E isso porque os estados de espírito que são criados pela hora do dia e das estações do ano estão constantemente te ajudando em evocar o que o espaço pode ser.11

(...) é na dureza da parede que a luz - ou a falta de luz - aparece.12

    Dirijo-me à piscina: ela parece querer o mar, mas existe um muro, uma linha reta que aproxima e separa os dois: a sua beira.
    Quero sentir a água. Uma escada que se prolonga de uma grande laje me convida a descer. Aceito o convite. Nesse plano em betão, as rochas entram no piso. A cor amarelo-creme do piso procura um diálogo - nunca uma mimese - com os tons das rochas, ao mesmo tempo em que a lisura e geometria do betão não só o separa das rochas, como faz aparecer sua a textura rica e porosa - por contradição. Esse fazer aparecer através de uma dialética de contrastes e aproximações faz as intervenções humanas nessa paisagem habitarem, também, um espaço-entre extremamente sensível entre a ruptura e a aproximação. Siza parece querer nos mostrar todos os tons do habitar que existem entre essas aparentes contradições.
 
Na construção dos dois tanques, aproveita-se a topografia do terreno, não só por razões econômicas, como para evitar um corte violento da paisagem.13

    Norberg Schulz, em sua leitura de Heidegger, diz que a geometrização é uma das etapas do entendimento da paisagem. Uma forma de desenhar, replicar e entender a ordem que permeia todas as coisas, o fio invisível que costura tudo. Siza se usa dessa geometrização, através do uso de linhas fortes que interligam as pedras. Essa geometrização também confronta e faz revelar por oposição as rochas, a sua textura e organicidade.
    Ao entrar na piscina, percebo que não consigo ver o mar. Pelo menos, não totalmente. Grandes rochas me separam dele. E as mesmas grandes rochas me separam do edifício também. Sinto estar longe de tudo. Um oásis em meio a um deserto de rochas. Mas ainda consigo o escutar. O Atlântico adensa, dialoga com a sua presença sonora azul, mas não é o fim em si. Para os albatrozes que voam acima de mim, a piscina está praticamente dentro do mar. Ainda assim, a minha percepção é uma de distanciamento. Estou perto, mas me sinto longe. Estou longe, mas me sinto perto. Um espaço entre, como uma latência articuladora.
 
Alguém pensou em proteger uma depressão desse maciço, utilizando-a como piscina das marés. Mas o Atlântico não é Mediterrâneo, nem é simples construir uma piscina onde poucas se fazem.14

    Definitivamente não estou em uma piscina infinita, daquelas que existem para alcançar o horizonte, metaforizando aos seus orgulhosos e desejosos banhistas que tudo está ao alcance, se ao menos esses fossem tão gananciosos. Não, o clímax da piscina das marés não parece ser o mar, a natureza distante que se condensa na linha do horizonte. Mas, sim, a natureza que surge dentro de mim. Nesse lugar, onde as rochas me parecem tão estáticas quanto a superfície da piscina, tudo parece estar em movimento.
    Após vestir minhas roupas, procuro explorar o lado do projeto que havia escolhido não ir. Volto à bifurcação inicial dos descalços e calçados, no fim da rampa de acesso. Dessa vez, deixo meus sapatos me guiarem. Viro à direita.
    Passo embaixo de um beiral maciço de betão que se prolonga para fora do muro à minha direita, e cobre a passagem. Estou agora imerso nessa estratificação de muros paralelos, operação que se torna mais visível nessa parte do circuito. Aqui, espaços não são marcados com limites fortes e rupturas, mas através de operações mais diluídas, com elementos mais gentis. Beirais, sombras, som,corredores estreitos. Siza se usa da luz intensa portuguesa para criar esses pequenos espaços que abrigam sombras que acabam guiando o andar dos visitantes. Meu olhar é conduzido pela linearidade do corredor, me revelando uma inclinação em 45 graus do muro. Acima dele consigo avistar uma vegetação, e mais além, o farol. Siza está sempre guiando a minha percepção, me enraizando na paisagem que estou desvendando. Ou seria ela que me desvenda? Meus passos ecoam. Aqui, uma sinfonia de pés, carros, vento e mar se relegamao segundo plano, e enchem a atmosfera de textura.
    Continuo andando para frente, e assim chego à flexão de 45 graus, que me conduz à esquerda. A praia se apresenta a mim. Vejo de novo o mar e piscina, as rochas, o horizonte e os albatrozes. A maresia do Atlântico vem de encontro, com toda a sua força. Antes, no entre-muros, eu não o sentia. No meu lado direito, o muro continua, como quem enquadra uma vista apenas por um dos lados ao invés dos quatro.
    Subo a rampa do começo, e ando mais um pouco à frente. Dou uma última olhada para o horizonte, e me viro à cidade. Não posso dizer que sei para onde estou indo, mas sei que carrego comigo a minha boca, meus olhos e ouvidos, minha pele e meu nariz. As minhas brechas. Os albatrozes cantam e a brisa do Atlântico me empurra para a cidade. Tenho também meus pensamentos. Sentimentos brotam e florescem nos campos verdes dentro de mim. Idéias vêm e vão como ondas, e limpam das minhas praias abstratas o que não é necessário. A natureza também vem de dentro. Gosto de pensar que Siza entende isso: a minha ida à piscina das marés foi mais um revelar da minha paisagem do que do litoral de Matosinhos.
    Antes de trilhar meus passos crocantes na areia rala da orla, reparo em algo que não havia aparecido para mim antes: pescadores se sentam em um banco próximo, e preparam seus anzóis. Eles não sabem que segredos o mar guarda para essa tarde de pescaria, mas vão lançar suas linhas mesmo assim. Quem sabe o que se revelará em meio à toda aquela ausência? Receoso, dou um primeiro passo em direção ao meu mar.

NOTAS


1. MOURA, Souto de. 2013, p.299.
2. SIZA, Álvaro. 2013, 2m53s.
3. SIZA, Álvaro. 2011, s.p.
4. SIZA, Álvaro. 2009, p.9.
5. SIZA, Álvaro. 2012, p.25.
6. SIZA, Álvaro. 2012, p.21.
7. SIZA, Álvaro. 2016, p.9.
8. NORBERG-SCHULZ, Christian. 1976, P.4.
9. HEIDEGGER, Martin. 2001, p.41.
10. NORBERG-SCHULZ, Christian. 1983, P.63.
11. KAHN, Louis. 1979, p.32.
12. KAHN, Louis. 1979, p.32.
13. SIZA, Álvaro. 2016, p.8.
14. SIZA, Álvaro. 2016, p.9.

BIBLIOGRAFIA


ARQUITETURA, Casa da. Uma piscina na praia deLeça. Lisboa: a+a, 2016.
BENJAMIN, Walter. Imagens de Pensamento.Sobre o haxixe e outras drogas. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
ESPOSITO, Antonio; LEONI, Giovanni. Eduardo Soutode Moura. Londres: Phaidon Press, 2013.
HEIDEGGER, Martin. Poetry, language, thought. Nova Iorque: Harper Perennial, 2001.
KAHN, Louis. Essential Texts. Nova Iorque: w. w. Norton& Company, 2003.
______. Oppositions 18/ Kahn, Heidegger and the Language of Architecture. Cambridge, Massachusetts: mit Press, 1979.
MOURA, Eduardo Souto de. Eduardo Souto de Moura. Londres: Phaidon Press, 2013.
NESBITT, Kate. Uma Nova Agenda para a Arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
NORBERG-SCHULZ, Christian. Architecture Association Quarterly Volume 8n4. Londres: The Architecture Association. 1976.
______.Opposition 18. Massachusetts: mit Press, 1979.
______. Perspecta 20. Massachusetts: mit Press, 1983.
SCULLY, Vincent. Caltech Magazine: e&s, 56(2). Pasadena, ca: Caltech Press, 1993.
______. Modern Architecture and other essays. Princeton, nj: Princeton University Press, 2005.
SIZA, Álvaro. Álvaro Siza. Fundación Caja de Arquitectos, 2013. (2min 53s). Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=un1jglld23w>. Acesso em: 15 set. 2017.
______.Imaginar a evidência. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
______. Siza UnBuilt. Matosinhos: Arteditores, 2011.
______. Uma piscina na praia de Leça. Lisboa: A+A Books, 2016.
SMITHSON, Robert. Robert Smithson: The Collected Writings. Los Angeles, ca: University of California Press, 1996.
Mark

FICÇÃO

    CONTOS
        O Subsolo
        A Casa de Nero
        De Lábios Fechados
        Coluna de Ashoka


    VIGNETTES


    AS VIDAS DOS FILÓSOFOS


NÃO-FICÇÃO

    NO ETERNO INSTANTE:
    ESTUDOS DO        
    SUBLIME

        I. A Solidão de Netuno
        II. A Sombra da Torre Invisível
        III. O Meio-tom da Inconsciência
        IV. O Peso da Luz
        V. A Mente das Mãos
        VI. O Templo sem Deus


    ENSAIOS
        Prole de Ícaro

        Zócalo
        o muro como habitar


    FRAGMENTOS


    CRÍTICA

TRADUÇÕES


    Do Not Go Gentle Into That
Goodnight, Dylan Thomas


CURSOS
SERVIÇOS
INFO/SOBRE

Mark