A Mente das Mãos


A ciência, que força os membros inanimados da máquina a agirem como autômatos por sua construção, não existe na consciência do trabalhador, mas atua sobre ele através da máquina como poder estranho.
Karl Marx1

Ruskin e Morris na Inglaterra, van de Velde na Bélgica, Olbrich, Behrens e outros na Alemanha, e enfim a Deutscher Werkbund, todos buscaram e enfim encontraram a base da reunião entre artistas criativos e o mundo industrial.
Walter Gropius2



Após certo tempo ele veio a apreciar a máquina. As voltas lustrosas em seus membros de ferro a tudo indiferentes salvo a perpétua moção. Mas jamais chegou a saber o que era a pequena peça que tantas vezes com o seu auxílio produziu. E na Grande Exposição contemplou toda a abundância de coisas e não soube qual delas havia feito. Tantos estímulos e tudo parecia remoto, assim como remotas eram as pessoas ao redor, assim como remoto era o seu semblante no espelho de moldura chinesa. À noite sonhou uma exposição onde os objetos admiravam e manuseavam as pessoas das estantes, todas similares pois haviam-nas produzido em série nas fábricas.  

I

Talhos de luz irradiam o Palácio de Cristal. A Grande Exposição de 1851 foi a aurora industrial. Crisálida do mundo moderno, no palácio mais de seis milhões de visitantes partilharam de uma fartura circense que prometia à humanidade uma vida de maravilhas: máquinas de fax e móveis chineses, daguerreótipos e barômetros de sanguessugas, instrumentos musicais e carruagens de elefantes, borrachas e prensas hidráulicas, dentes de cerâmica e pernas de madeira. Ali pareciam convergir as novas forças criativas do planeta. Era como se um motim houvesse despido a arquitetura de seus ornamentos para depois vendê-los como utensílios. Pois o corpo do Palácio de Cristal resume-se a uma estrutura padronizada de um módulo de arco em semicírculo compondo finas arcadas de ferro e um grande domo romano acima, como a metade de uma rosácea desprovida de simbolismo. Também as catedrais possuíam um rígido sistema estrutural mas sobre seu corpo fixava-se todo tipo de ornamento, dando vida e variando a outrora árida estrutura. Em seus vitrais havia um êxtase de cor. Já no palácio as luzes parecem-me pálidas. No Palácio de Cristal não há ornamentos nem vitrais pois quem construiu-lhe não foi uma guilda de artesãos livres mas o monótono marchar da indústria. E no entanto antes fosse sua aridez apenas filha da máquina. Pior: também mãos humanas moldaram o ferro. Mãos que aprenderam a imitar não os anseios da mente mas a mecânica da máquina. Se a catedral Gótica foi pioneira no uso de inovações estruturais para ampliar o banho de luz, então o Palácio de Cristal guarda-lhe o ímpeto tecnológico mas não a essência.  
    Pois a indústria é o lar do consumismo superficial, dos objetos de péssima qualidade e da servidão do homem à máquina. Assim pensou William Morris, que quando criança foi levado pelos pais à Grande Exposição porém, diz-se, optou por não entrar. Dentro de alguns anos, inspirado pelas teorias de Augustus Pugin, John Ruskin e Karl Marx, Morris criará o movimento Arts and Crafts. Seu objetivo é a humanização do trabalhador fabril. Ao aliar teoria estética a ativismo social, Morris busca unificar o campo das artes rompido entre as Belas Artes e as Artes Decorativas. As Belas Artes eram filhas da vida contemplativa. Não cultivavam “utilidade” pois seu intuito era o livre jogo estético como formador do intelecto. Lembro-me de Lorde Henry Wotton:3 o burguês perspicaz desviado do mundo, alienado em sua própria riqueza, ocioso a contemplar as coisas ao redor, pequenas flores sob o sol e faces de meninos bonitos. Aqui, artistas pensam. Já as Artes Decorativas eram filhas da vida ativa. Ao operário não é dado educar-se, seu labor sufoca o devaneio. As fábricas mecanizam-lhe o corpo na produção incessante de objetos banais embora úteis à vida comum. Aqui, artesãos trabalham. A divisão das artes estimula a desigualdade.
    É preciso fusionar pensamento e ação. Como Ruskin, Morris deseja unir estética e utilidade e dar luz a um novo personagem. À partir dele florescerá nova sociedade. O artista-artesão, ou designer. Os papéis de parede de Morris evocam a composição de fauna e flora Góticas, e também a linha Nórdica, mas há nelas uma vagarosa moção, como flores na água. Poucas décadas depois arquitetos como Victor Horta, Henry Van de Velde e Charles Rennie Mackintosh, expoentes do Art Nouveau, desenhavam edifícios em austeras fachadas mas com delicados aposentos de ornamentos em ferro moldado, vidro colorido, planos em cerâmica e concreto curvo. A qualidade sinuosa de suas obras permeava o cotidiano num tipo de moção sutil, jovial, dissolvendo o Fugere Urbem romântico nas residências cosmopolitas. “Van de Velde, um entusiasta das idéias de Morris, visa a transformar o arabesco em ‘linha expressiva’, verticais e horizontais ainda conservam o estilo simbólico de ascensão espiritual e de efusão naturalística”, escreve Giulio Carlo Argan.4
    A vida íntima ondulava lenta e graciosa ao lado de ninfas e insetos, folhas e flores, unicórnios e aves, como nas obras de artesãos Góticos, cuja alma já precipita-se ao reinado da máquina, permeando o estrato social de imaginação artística. Mulheres de pele luzidia sob as jóias de René Lalique compunham arranjos florais nos vasos de Émille Gallé. O valor dessas obras “não mais é dado pelo seu tamanho ou qualidade do diamante”, escreve Jacques Ranciére, mas pelo “gênio artístico que as compôs”.5 Muito espera-se de suas mente fabulesca e hábeis mãos. Ele pode usar máquinas, contanto que seja o soberano a conduzir o processo do início ao fim. Se no Romantismo a arte não era um fim em si mas um meio de expressão do artista angustiado, aqui essa tradição estabelecia-se não apenas “para decorar os salões de moças elegantes”, segundo Ranciére, mas para serem “incorporados em sua vida, e acompanhá-las em seus eventos”.6
    De todas as artes era a arquitetura a mais propícia à Regeneração Estética. O culto à Gesamtkunstwerk, a Obra de Arte Total do romântico Wagner, viria a impregnar os sonhos dos arquitetos. Uma obra que, como as catedrais Góticas, não só ampara mas expressa, arranjando em sua estrutura todos os campos da arte, condensando em seu corpo todos os meios de expressão disponíveis ao nosso espírito. Inúmeros artistas-artesãos convergindo seus inventos numa singularidade espacial que é o umbral a um mundo onde o tecido do coração humano é costurado num coletivo de indivíduos autênticos.
    A tradição de Ruskin e Morris convergiu na Deutscher Werbund, instituição fundada por Hermann Muthesius em 1907 para reunir artistas e produtores industriais, aguçando o tônus da indústria alemã no cenário global. Dela participaram arquitetos como Van de Velde, Bruno Taut, Hans Poelzig, Walter Gropius, Peter Behrens e Mies Van der Rohe. Muthesius escreve: “mais alto que a matéria é o espírito; mais alto que função, material e técnica, está a Forma. Esses três aspectos materiais podem ser impecavelmente manuseados, mas se a Forma não o for, ainda viveríamos num mundo bruto”.7 Muthesius buscava aliar-se à indústria mas não confundia-se quanto à hierarquia da relação. Máquinas são instrumentos do espírito humano. É a arte quem deve conduzir o processo fabril. A Forma é uma “brilhante conquista da arte humana, como o templo grego, as termas romanas, a catedral gótica e o salão principesco do século dezoito”.8
    A Forma de Muthesius era o desabrochar histórico de um sonho em comum. A geometria enquanto ordenadora de uma arquitetura-tipo, uniforme. Não à toa escreveu que “mais do que em qualquer outra arte, a arquitetura anseia o típico…nós admiramos as obras de tempos passados que marcharam na estrada da homogeneidade”.9 E portanto na exposição de 1914, Muthesius e Van de Velde protagonizaram, segundo o historiador Kenneth Frampton, “uma cisão ideológica”, onde o primeiro defendia a forma normativa, Typisierung, e o segundo o “desejo de forma, Kunstwollen, expressivo e afirmado individualmente”.10
    Mas depressa demais as trincheiras da Guerra cortaram os campos e por quatro anos a Europa sequer suspirou. Em 1919 Gropius e Taut estreitam relações no grupo Abeitsrat für Kunst. Gropius reitera seu compromisso com o que chamou, numa clara alusão à catedral Gótica, de Zukunftskathedrale: a Catedral do Futuro. Ali arquitetura, escultura e pintura se unirão. O Palácio de Cristal foi capaz de criar um edifício cuja tecnologia, com sua estrutura em ferro e cortina de vidro, foi o avanço natural do Gótico. Porém carecia de seu espírito. Os arquitetos modernos ainda haveriam de conciliar indústria e expressão: uma nova Gesamtkunstwerk. Poucos meses após, Taut funda a Die Gläserne Kette — a Cadeia de Cristal. Meia dúzia de arquitetos correspondendo-se em cartas desenhadas ou escritas “a breves intervalos de tempo, informalmente e à medida que seu espírito o leve a fazê-lo”. Por escrito confessam seu anseio a uma arquitetura subjetiva e “não-repressiva”,11 onde haveria uma estima à imaginação autoral e à expressão plástica da forma. Hans Scharoun escreve: precisamos criar do mesmo modo que o sangue de nossos ancestrais levantou ondas de criatividade. Nas correspondências Taut chama-se Glas, Gropius Mass, Finsterlin Prometh. Taut, o Vidro: à época o demiurgo das Cidades de Cristal, templos de vidro nos Alpes. Gropius, a Massa: incansável defensor de uma arquitetura da contingência, para do mundo o artista colher sua autenticidade. Finsterlin, o Prometeu: o que oferta fogo para fazer de macacos, homens. Independem as divergências entre eles. Há em todos esse didatismo. É a arte quem desperta e conduz o espírito humano.
    Pois no pós-guerra a sociedade alemã, em especial a burguesia, torna-se enferma, insalubre, letárgica e melancólica. Antes julgava-se predestinada, segundo Argan, “às grandes tarefas históricas, ao renascimento da ‘alma alemã’” e agora via-se humilhada pelo desvelar da guerra perdida.12 Dissociada de si, abalava-se num “abandono inerte àquele ritmo oscilante de desespero e exaltação que caracteriza a obra de seus prediletos: a música de Wagner tanto quanto o pensamento de Nietzsche e a poesia de Hofmannsthal”.13 Pendular entre os pólos do espírito humano decerto serve tanto ao Sublime quanto ao Romantismo latente na fala de Argan. A aflição existencial alemã desse período assemelha-se ao tedium vitae e à paranóia do romântico que, em seu pequeno sótão de ar abafado, acredita-se exaurido por um mundo repleto de rivais invejosos de sua omissa potência. A cada arquiteto restava decidir. Sua prática mergulharia nos meandros assombrados do estado de espírito alemão para nas sombras facear seus fantasmas ou buscaria espantá-los num bramido salubre?
    O cinema expressionista alemão da década de vinte especializou-se em filmes de suspense e terror. Histórias como O Gabinete do Dr. Caligari onde um psiquiatra hipnotiza um paciente sonâmbulo a cometer assassinatos, ou Metrópolis que retrata operários explorados por máquinas buscavam entender a psicosfera alemã através de alegorias. Como contos de fadas. Já no século dezessete havia-se desenvolvido a lanterna mágica, que à luz de uma vela sobre placas de vidro projetava amplas imagens no ambiente. Tal ferramenta foi descrita no mesmo século por Athanasius Kircher como sórdido encantamento capaz de induzir pessoas que, estupefatas frente ao poderio da figura de um demônio, cometeriam crimes. Desde o início a lanterna mágica cultivou na mente humana o apreço pelo terror. Na virada ao século dezenove os salões europeus recebiam espetáculos de fantasmagoria onde ilusionistas de renome como Étienne-Gaspard Robert e Phylidor assombravam espectadores. Em ambiente escuro o uso de imagens monstruosas, sons, odores, fastio e até drogas instituía experiência estética capaz de turvar as margens entre o real e o fictício, tecnologia e magia, o mundano e o sobrenatural. Testavam talvez os limites da Distância Segura na experiência Sublime pois toda nova tecnologia possui o poder de espantar a psiquê e expandir os limites do real que ela havia estipulado para si.
    Nada disso perdeu-se na tecnologia moderna do cinema e a fita celulóide, há os que dizem, é a Gesamtkunstwerk por excelência. Nela reúnem-se espaço, tempo e som. Seus cenários eram campo perfeito para testar o alcance da arquitetura enquanto arte à parte do estatuto do real. Sob o encanto da ficção podia-se compor mundos com a audácia dos que exploram o espírito humano desnudos do dever de também amparar-lhe o corpo. Decerto foi Hans Poelzig seu mais prolífico arquiteto. Dentre outras coisas Poelzig compôs o cenário do filme Der Golem, uma história sobre um rabino que para salvar o ameaçado povo judeu de Praga cria um enorme monstro de pedra. Poelzig construiu nada menos do que toda uma vila de arquitetura contorcida, disforme, como se a angústia social esculpisse a pedra em espirais de um Gótico torturado, labiríntico, angular. Ao longo do filme há um local recorrente e ao seu fundo é possível ver o assombroso vulto de uma catedral Gótica. A arquitetura como símbolo ao que não se vê. Há aqui um profundo teor Romântico e é preciso apenas pensar em histórias como A Queda da Casa de Usher de Edgar Allan Poe para invocá-lo.
    Sua obra mais emblemática, o enorme teatro Grosses Schauspielhaus, não pertence ao cinema. Mas guarda muitas das qualidades do Der Golem. Seus espaços cavernosos assemelham-se às grutas rugosas do filme. Atravessando-os, milhares de pessoas chegariam ao átrio central, seus assentos ao redor do palco. Acima, uma vertiginosa cúpula. Sua vasta superfície revestida de ornamentos alveolares em chapas de metal evocando muqarnas islâmicas, como uma “Caverna das Estalactites”. E embora seus ornamentos invoquem o mesmo zodíaco de influências e atmosfera das catedrais Góticas, seu desenho afasta-se de seu ilimitado fluxo ascensional. Lembra antes o esculpir do espaço clássico, sempre em repouso, estável. O desenho da cúpula é quase um Panteão. E quando acesa, a abóbada de Poelzig brilhava nos padrões de constelações cósmicas. Estrelas eternas como o céu Ouranos das esferas cósmicas de Aristóteles. Abaixo do arco celestial, nossa fugaz existência sub-lunar converge-se no palco onde encenam histórias de reis e heróis e ladrões, todos eles nada mais que pó chispando no sopro insano de nossa breve existência. Também Nietzsche acreditava num cosmos fechado. Sua teoria do Eterno Retorno supunha um embaralhar contínuo da matéria, fadando todos os eventos à eterna repetição. Mas no cosmos de Poelzig há respiro. Como no Panteão, ele perfura-o no zênite. Uma grande clarabóia no topo da cúpula, porta ao além, abismo invertido. Talvez a obra esteja a nos dizer. Há espaço para desviar-se do destino.
    Imagino-me entregue ao desamparo da cúpula. Em minha pele o peso de uma amplitude umbrosa que parece retratar a agonia existencial alemã. Como se os fantasmas sociais esculpissem em gritos o espaço teatral onde a arte buscará assimilar o momento em alegorias. Wassili Luckhardt, ao comentar a obra de Poelzig, disse que “sobretudo quando se lançavam luz contra os pequenos projetores em cada extremidade, o resultado é a impressão de uma certa dissolução e de infinito”.14 Lembra o Cenotáfio de Boullée. Também Frampton descreve sua obra como uma “luminosa e cintilante dissolução da forma e do espaço”.15 Um sentimento Sublime, portanto. O naturalismo do Arts and Crafts e Art Nouveau era pitoresco, belo. Sua ternura silvestre compunha as paisagens bucólicas da vida íntima. Mas o desvelar da guerra modulou o otimismo de verdes campos em um penhasco de desalentos. E agora adentramos os Sublimes espaços de uma arquitetura ofegante. Mantém-se o apreço à expressão artística mas sob tons melancólicos, trágicos. Não ninfas e flores, mas monstros e vertigem.  

II

Embora loucura, há método aqui.
Shakespeare16

Sem dúvida, nós vivemos o espaço infinito na medida em que participamos do Todo, mas só podemos dar forma ao espaço com meios limitados. Percebemos o espaço com todo o nosso indizível Eu, com a alma, com a inteligência, com o corpo, e lhe damos forma com todos os nossos órgãos corporais. Através da intuição e da energia metafísica que absorve do Todo, o homem descobre o espaço imaterial da aparência e da visão interna, dos fenômenos e das criações ideais; intui as relações entre seus meios representativos, entre as cores, as formas, os sons e, com eles, dá forma concreta a leis, números, medidas. Mas esse espaço da intuição exige realizar-se no mundo material; a matéria é dominada pelo cérebro e pela mão…No espaço artístico, todas as leis do mundo real, espiritual e intelectual encontram uma solução simultânea.
Walter Gropius17

No ano em que Poelzig conclui seu teatro, Walter Gropius funda a Bauhaus. Gropius almeja sanar a crise psíquica alemã através de uma arte que supere a alienação ao reafirmar um estar no mundo. Contra a bílis negra de um Romantismo letárgico, Gropius emprega uma teoria que parece-me aludir a um tipo mais ativo de Romantismo: a Vontade Incarnada. Não impressiona. O Romantismo alemão sempre guardou em si contradições o bastante para alimentar lados opositores, afinal ele próprio sempre esteve cindido.
    “Ruskin e Morris já haviam proposto a matéria como dado original da experiência, em contraposição ao conceito clássico de natureza” que pautava-se na contemplação, escreve Argan.18 Pois à ele quem contempla aliena-se do mundo, reforçando a primazia não só da consciência do sujeito sobre a matéria do objeto como também da mente que pensa sobre as mãos que fazem. Os que presumem “haver superado e transcendido a própria matéria”,19 ele escreve, absorvem as coisas e sob sua poética pessoal, seu peculiar estado de espírito ou convenções seguidas, as deformam, desnudando-as de suas singularidades. Típico à aristocracia e sua fixação pelo decadente ancien régime. E portanto Gropius, sucessor de Ruskin e Morris, oporia-se à contemplação.
    Gropius escreve: “o espírito dominante de nossa época é já reconhecível embora sua forma não esteja definida. A antiga cosmovisão que previa o ego em oposição ao universo perde prestígio. Em seu lugar nasce uma idéia de uma unidade universal na qual forças em oposição existem num estado de equilíbrio absoluto”.20 Sua fala alude a um Romantismo que vê na oposição entre ego e universo abismo a ser superado através do poder da consciência em encontrar semelhanças entre as coisas, superando obstáculos e sintetizando o que antes era tido como outro. Lembro-me de Schelling, filósofo romântico que entendia a consciência não como entidade à parte mas como filha da natureza e sua eventual redentora pois haveria de, cedo ou tarde, sintetizar a tudo mediante a experiência estética.
    À Gropius não há diferenças entre a mente e o mundo. Tanto nossas ideias quanto as coisas ao redor partilham da mesma matéria, da mesma origem. Ideias possuem forma, cor, som pois se dão não após a experiência mas dentro dela, já no profundo perceber das coisas ao redor. Gropius escreve que “formas e cores ganham sentido apenas quando relacionam-se com nosso Eu interior”.21 Quem mergulha na contingência estará em simbiose com a realidade, numa existência onde os fatos da mente e os fatos do mundo misturam-se. É no jogo entre ambos que o artista compõe suas obras. Ele adquire uma tal intimidade com o mundo que já não é possível separar suas ideias das coisas. E sabe que os deslizes de seus dedos na cerâmica e as voltas dos fios no tear costuram também a forma de seus pensamentos. “O artífice convive com a matéria, aprende a conhecê-la trabalhando-a, transforma-a, torna-a sensível ao seu mundo afetivo e imaginário”, escreve Argan.22 Não mais ele depende de uma epifania divina. O artista não é um personagem na história de Deus mas ele próprio faz da vida a matéria prima de seu destino. Não trata-se mais de desejo da forma ou forma normativa pois agora tudo resume-se a um método, um modo de fazer. Gropius não pretende construir sobre a realidade. Quer antes construir a própria realidade. Sua arte não supera o real mas intensifica-o. Suas obras, nódulos de vida onde propõe-se novas hipóteses existenciais, aflorando consciências. “O artista não domina nem interpreta a realidade” escreve Argan, “mas organiza-a e a revela inserindo-se nela com a racionalidade que é característica do seu ser enquanto humano”.23 E continua: “Trata-se agora de um espaço que se constrói com a própria vida”.24
    Em suas obras o artista busca dar forma à infinitude primeva, onde tudo sintetiza-se. Mas ele só pode moldar o “exíguo fragmento de realidade no qual cada um de seus atos se cumpre”, escreve Argan.25 Ele está sempre no aqui e agora e conhece nada além de suas próprias experiências. Suas obras tornam-se o manifestar de sua finitude e de seu anseio de buscar o infinito. E embora ele esteja limitado ao próprio corpo, na vida os instantes distinguem-se e as coisas mudam e o Eu transforma-se, pois se muda o mundo muda também seu pensar. De obra em obra o artista constrói-se, em objetos expandindo a fronteira da existência. O acúmulo de experiências possíveis. O foco já não é o produto mas “o processo pelo qual a consciência constitui o real em formas sempre novas, resultantes de uma rede cada vez mais ampla de inter-relações e de um acervo de experiências cada vez maior”, escreve Argan.26 Nesse eterno vir-a-ser o artista faz-se argila e todos os derradeiros momentos de sua vida ele transforma em obra pois apenas assim realiza-se. É através do finito que induz-se o infinito: a ilimitada exuberância da vida que nunca cessa de mudar. As diferenças entre as suas obras em sucessão sugerem uma progressão capaz de manter-se ao infinito.
    Penso nos detalhes das catedrais Góticas, onde havia a profusão dos mesmos elementos variados em minúcias para sugerir o infinito divino através da progressão das diferenças. Também nelas a angústia romântica encontrou símbolo. O mortal que anseia expressar o Absoluto mas pode fazê-lo apenas mediante coisas efêmeras. É labor inviável e o romântico o sabe mas ele não abandona-o pois não há nada ao humano senão dedicar-se a empreitadas impossíveis. Mas em Gropius não há só angústia, também resolução. Não só sacrifício, também prazer. Pois o romântico ansiava a transcendência então atentava-se ao intransponível vazio entre ele e o infinito. Já Gropius busca a imanência das coisas e caminha de costas, atento ao acúmulo de experiências nas sucessivas obras. Nesse eterno galopar dos instantes o artista vive e faz de suas obras degraus a nenhum lugar em específico pois o objetivo é a altura vencida e não a chegada. Tal é a arte por excelência dos mortais pois apenas eles entendem o peso de um instante. E como cada mortal limita-se ao seu fragmento de realidade, é preciso imbuir à arte uma atmosfera de coletividade onde unem-se as experiências para potencializar a construção da consciência.
    Não à toa o nome Bauhaus foi concebido, segundo Frampton, evocando as Bauhütte: oficinas de artesãos medievais. “Criemos uma nova guilda de artesãos, sem as distinções de classe entre artesão e artista”, disse Gropius.27 Pois os artesãos Góticos esculpiam suas ideias através dos golpes do cinzel na pedra. A mente e as mãos em simultâneo. “Não há diferença essencial entre o artista e o artesão”, escreve Gropius. “O artista é o artesão elevado a um poder maior. Em raros momentos de iluminação, liberto pela vontade consciente, a Graça do Céu pode florescer seu artesanato em arte. Uma base em manufatura é essencial a todo artista”.28 Juntos, os artesãos faziam da catedral a cosmovisão de toda a gente que nela acreditava. Ali sobre as tímidas casas todas as artes uniam-se como o ápice das potências humanas. Para curar uma sociedade alienada é preciso de força central e a catedral Gótica costumava condensa-la. A Obra de Arte Total, a Gesamtkunstwerk de Wagner, o mesmo que Argan julgou como uma das fontes do “abandono inerte” alemão. “Juntos, vamos conceber e criar o novo edifício do futuro” escreve Gropius, “que um dia se erguerá para o céu a partir das mãos de um milhão de operários, como o símbolo cristalino de uma nova fé”.29 Mas onde a catedral coagulava em si a potência humana, Gropius quer capilarizar o fluxo vital, tornando a arte uma experiência ubíqua na vida citadina. Do outrora estupefato banho de luz nascem raios solares que iluminam os pequenos e constantes instantes da existência, fazendo dos singelos fatos da vida potentes experiências estéticas. Desde os talheres até a estrutura da casa e depois aos desenhos das vias públicas e o traçado de continentes.  
    “A primeira proclamação da Weimar Bauhaus”, escreve Reyner Banham, “possui em sua capa uma xilogravura de Lyonel Feininger mostrando…uma catedral Gótica encimada por luzes em farol”.30 No manifesto Gropius escreve que “o edifício completo é o objetivo final das artes visuais…Arquitetos, pintores e escultores precisam reconhecer mais uma vez a natureza de edifícios como entidades compostas. Apenas então suas obras serão permeadas com aquele sentimento arquitetônico que perdeu-se”.31 A arquitetura volta a ser a maior das artes. Sua estrutura é o próprio erigir do espírito humano pois somente ela “intervém em todos os momentos e atos da existência; intermedeia e condiciona as relações vitais do homem com a realidade”, conduzindo-o a um estado mental desnudo de convenções ou preconceitos, ensinando-o os novos hábitos da lúcida existência, sendo assim a “síntese das experiências da realidade e o fim último de todas as artes”, escreve Argan.32 O espaço que ela abre é pura potência, o fecundo portal a outras formas de existir.
    Tal crença teve em seu primeiro sacerdote o professor Johannes Itten. “As perdas terríveis e os acontecimentos horríveis da primeira Guerra Mundial” escreveu, “levaram-me a concluir que havíamos chegado a um ponto crucial de nossa civilização científico-tecnológica. Precisamos contrabalançar nossa pesquisa científica e nossa especulação tecnológica, ambas voltadas para o exterior, com um pensamento e uma prática voltados para nosso interior”.33 Se a ciência e tecnologia anulam o humano em prol de um conhecimento objetivo, é dever do artista afirmar o elã vital do espírito e equilibrar ambas as forças. A guerra é o êxtase da externalidade. Cabe à arte harmonizar a vida. Itten compôs o curso introdutório da escola, ou Vorkurs, talvez a essência do método Bauhaus. “Todo novo estudante sobrecarrega-se numa massa de informação acumulada que ele deve abandonar antes de conquistar uma percepção e conhecimento que são seus”, escreveu.34 O estudante desnuda-se dos dogmas sociais para conquistar um estado de mórula, pura potência. Esse apreço a uma pureza existencial é típica do Romantismo. A criança é seu símbolo. Desatenta às normas sociais, intocada por normas, pura vontade, sempre imersa na concretude do instante. No romance Lucinde, prestigiado no século dezenove, o escritor Friedrich Schlegel usa como o exemplo de vida livre o personagem de um bebê chamado Wilhelmine.
    “O curso pretende libertar o poder criativo do estudante, imbui-lo de um entendimento dos materiais da Natureza”.35 Itten emprega o termo Natureza, que no mesmo século de Lucinde era usado não apenas como menção ao mundo mas também ao espírito das coisas, incluso o humano, criando uma ponte etimológica entre tudo que há. Pois nas coisas palpitam auras que o artista aprenderá a evocar. Itten menciona que o estudante deve possuir um “sentimento” pela madeira. “Ele deve também entender sua relação com outros materiais, combinando e compondo-os para tornar a relação aparente… Essa instrução pretende permitir ao estudante perceber as relações harmônicas e diferentes ritmos e expressar tal harmonia pelo uso de um ou vários materiais”.36 Itten crê na similitude entre todas as coisas, comum também ao pensamento mágico presente no Medievo, na alquimia, e manifesto nas catedrais. O artista exprime o fio invisível que à tudo costura, um tear eterno entre a mente e o mundo, contornando assim a existência humana.
    Paul Klee, outro grande professor da Bauhaus, possui similar interesse: “Para o artista a comunicação com a natureza permanece a condição mais essencial. O artista é humano, ele mesmo natureza; parte da natureza dentro do espaço natural”.37 Em processo contínuo o artista articula os arredores para fazer florescer outra paisagem. Uma história similar ao desenho de Klee, que costumava narrá-lo como primeiro um ponto depois uma linha e ao fim, volumes. Formas surgidas de dentro de um ponto como são as formas das obras que do humano florescem. “É Klee quem adverte que a ‘qualidade’ não é um valor constante, ou uma ‘forma’ perfeita”, escreve Argan, “mas um valor que cresce e amadurece no tempo interno da existência humana: o produto de uma longa meditação sobre a aventura interior, o fruto da mais pessoal, singular e não repetível das experiências humanas”.38
    Sob a influência de Itten “estudantes da Bauhaus envolviam-se no estudo de místicos medievais como Eckhart, e disciplinas espirituais do oriente como o Mazdaznan, Tao e Zen”, escreve Banham.39 Não surpreende seu interesse pelo Mestre Eckhart, ilustre místico dominicano do século treze que via Deus não oculto após as nuvens mas em nós. Os leitos, grund, divino e humano são o mesmo, ali tudo é uno e indistinto mas também “acima de nomes e é inefável”.40 Um abismo silencioso, abgrund, guarda a divindade dentro. É preciso explorá-lo. “Quando Deus fala à alma ambos são um, mas logo esse estado de união desaba e segue-se a divisão. Quão mais alto ascendemos em conhecimento, mais nos unificamos à Ele”, escreve o Eckhart.41 Através do labor o humano exprime-se e acerca o divino, pois assim sua “natureza mais baixa é incapaz de compreender a obra que sua natureza mais alta performa em seu poder exaltado. Todas as criaturas anseiam ecoar Deus em suas obras, mas podem apenas revelá-lo um pouco”.42 Sua teologia apofática lembra muito a arte do Sublime e não à toa faz parte da cultura Gótica depois acolhida e secularizada por filósofos românticos como Fichte e Schelling, crentes de encontrar o caminho ao Absoluto no íntimo humano.
    Vejo em Gropius uma relação subversiva com a angústia romântica, similar ao Misticismo, mas se há nele uma proximidade com filosofias medievais ela pende mais ao Nominalismo, creio. Os nominalistas negam “a existência de universais e reconhecem apenas as coisas individuais”, escreve Erwin Panofsky.43 O Nominalismo é teoria irmã do Misticismo de Mestre Eckhart, ambos presentes na filosofia das antigas catedrais. Escreve Panofsky: “Tanto a mística como o nominalismo remetem o indivíduo à percepção individual de seus sentidos e de suas experiências psíquicas; o intuitis é um conceito muito empregado”. O Nominalismo “mira a multiplicidade das coisas individuais e dos processos psicológicos”, levando, como o Misticismo, “à anulação da linha divisória entre finito e infinito”.44 Mas enquanto o místico “tende antes à expansão de seu ego ao infinito…o nominalista tende a entender o mundo das coisas como infinito”. Não pretendo reduzi-los a um debate teológico medieval, mas em 1923 Itten afasta-se da Bauhaus e talvez haja aqui uma verdade quanto à diferença entre ele e Gropius. Enquanto o expressionismo de Itten buscava englobar ao espírito o mundo das coisas para alimentar uma transcendência, Gropius via o artista como articulador de um mundo em sua essência infinito em possibilidades, sendo assim imanente. Itten queria mudar o individuo, Gropius o mundo.
    Também como o século doze e seus contrafortes e arcos ogivais, o século vinte é momento paradigmático à técnica. Avanços industriais prometiam transformar as dinâmicas da vida humana. Ao artista que pensa no mundo, nada mais natural que apropriar-se de novas ferramentas. “A Bauhaus acredita que a máquina é o médium moderno do design e busca acordar-se com ela”, escreve Gropis.45 A diferença entre o artesão medieval e o designer é apenas o estatuto tecnológico de suas épocas. O mestre de obras medieval era polímata versado em todos os aspectos das catedrais e servia-se dos avanços tecnológicos para moldar o mundo de seu tempo. Também o designer domina a cadeia de produção e serve-se da tecnologia para potencializar o processo artístico. Em estúdios de pintura, escultura, vidraçaria, tecelagem, o estudante aprendia a moldar os materiais à mão para somente depois versar-se nos meandros industriais, pois seria “loucura lançar um talentoso aprendiz direto à indústria sem a preparação num ofício”.46 Máquinas ampliam o possível mas também escravizam quando a mão que as manipula não é guiada por mente liberta. “Enquanto a economia e a máquina permanecerem como fins em si mesmas em vez de meios para liberar cada vez mais do peso do trabalho mecânico, as energias do espírito, o indivíduo continua escravo”.47
    No contexto de produção industrial a Bauhaus associa-se ainda mais a linhas puras e formas geométricas. A matemática nunca esteve distante da arte e também a estética das catedrais Góticas articulava-se na geometria das formas essenciais. Círculo, quadrado, triângulo para pautar não apenas sua estrutura mas também a dimensão dos espaços, expressando a harmonia entre o corpo humano e a ordem cósmica. Mas a Bauhaus é imanente e nela a arte abstrata visa não tocar o oculto mas revelar a dinâmica do agora. Como a mente e o mundo constróem-se também a arte abstrata revela seu vir-a-ser através das formas essenciais, tornando-se processo cristalizado.
    A Bauhaus é culto ao dinamismo, à concretude, à síntese. O fugaz agora. Em seu Balé Triádico, o professor Oskar Schlemmer condensa o cenário no vestuário dos dançarinos que em gestos animam o antes estático e remoto. É a moção do artista sintetizando-se à contingência. Não há divisa entre público e platéia, o palco dissolve-se na existência comum. Também os papéis de parede de Schlemmer não mais representam cenas mitológico-idílicas como no Arts and Crafts mas atraem a atenção à si, à sua textura e porosidade — fakturas abstratas, cuja expressividade reúne-se na superfície da obra. A silhueta lateral das cadeiras de Marcel Breuer é linha na tangente da inexistência, adensando-se apenas quando usadas. Até a luz é convocada ao mundo, pois é “quase fisicamente amalgamada às paredes, que a absorvem, refletem-na, difundem-na e a refratam”, escreve Argan: “a luz tende a tornar-se estrutura espacial”.48 Também “o novo espírito arquitetônico tem como bandeira a superação da inércia”, escreve Gropius.49 Não mais vale o “senso de gravidade típico e determinante da antiga forma arquitetônica”. Prefere-se as linhas horizontais pois elas correm o mundo ao invés de fixar corpos no espaço. Ao invés da simetria que acentua o eixo central de um corpo em repouso clássico, uma assimetria formal e rítmica alude a um corpo compondo-se. As paredes não pesam. São películas moldáveis ao mover-se do habitante. Não há aberturas por onde contempla-se o mundo de fora, acentuando a divisão, mas o próprio plano é janela abrindo-se ao jardim. “O ideal formal da nova arquitetura é a grande vidraça”, escreve Argan, “que é ao mesmo tempo vazio e cheio, superfície e profundidade, exterior e interior”.50 Se nas catedrais os vitrais pintavam o espaço sagrado suspendendo-o do mundo humano, na Bauhaus os vidros são transparentes justo para vanescerem os limites.

III

Prefiro não, disse lenta e respeitosamente, desaparecendo tranquilo.
Herman Melville51

Uma tal sociedade…não quer e não pode erguer os olhos do próprio trabalho para contemplar o tranquilizante espetáculo da natureza nem conhece outro meio de salvação que não seja um fazer cada vez mais comprometido…Só assim esse ‘fazer’ não mais será expiação de uma culpa original, mas um positivo conhecer e construir, Gestaltung.
Giulio Carlo Argan52

Gropius cultivou o Romantismo mas optou por desnudar-lhe de sua metafísica transcendente. Antes o labor expressivo dotava-se de uma angústia que ansiava expelir-se ao além. Já na Bauhaus o labor é imanente e não à toa em arte abstrata, onde renuncia-se aos símbolos tão caros aos românticos, aos expressionistas. Pois neles se mantém a crença de que o sentido das coisas transcende seus corpos físicos. Em Gropius a arte abstrata não alude ao além mas a si própria, numa auto-reflexão manejando o mundo sensível sob formas geométricas. Pois Gropius é o Mass, o príncipe da matéria, e entre charretes e ruas de terra batida o artista já não sonha com reinos ermos de fadas e monstros. Antes enlaça o real em rédeas conduzidas uma pelas mãos e outra pela mente. Não mais é preciso desviar-se do áspero presente. Se a realidade é pura construção, melhor forja-la. Eis o artista demiurgo da contingência. Ele acelera a vida como antídoto à letargia, fecha as portas a outras dimensões e recusa à tudo que escapa, à toda ficção, todo devaneio. Não há cosmos pois tudo é mundo. Não há fora pois tudo é dentro.
    Mas passados cem anos, o antídoto amargou em veneno. Vem à cabeça a epidemia de dança de 1518 em Estrasburgo. De início a dança poderia ter sido um libertar das convenções do corpo mas todos seguiram dançando por dias a fio até morrerem de exaustão. A atualidade absoluta tornou-se tirania. O mundo de hoje é frenético e mastiga o indivíduo, asfixiando-o na velocidade tecnocrática. Sem autenticidade, o Eu dissocia-se num mundo cuja velocidade é muito superior ao tempo de seu espírito. “Nossos corpos e identidades assimilam uma superabundância de serviços, imagens, procedimentos e produtos químicos em nível tóxico e muitas vezes fatal”, escreve Jonathan Crary. Se o que hoje existisse fosse ainda a aceleração de Gropius então manteria-se o charme do artista visionário mas o que temos é apenas a ilusão do dinamismo. Na Bauhaus o artista compunha obras para em sucessivo acumular experiências. Hoje o próprio real é descartável e nossas experiências são renovadas por outras semelhantes para manter o indivíduo num agora insuperável. “A novidade está na renúncia absoluta à pretensão de que o tempo possa estar acoplado a quaisquer tarefas de longo prazo”.54 A Bauhaus assumiu a imanência e aboliu a transcendência. E assim auxiliou as forças que fizeram do dentro um antro de sufoco ao sujeito.
    E a redenção do fora é ver-se refúgio. Quem contempla isola-se da matéria do mundo e sujeita as mãos à mente, suspeitava Argan que, todo músculos, via em Gropius o êxito do ativo mundo moderno contra a inércia clássica e seu prosaico ancién regime. Mas nem ele nem Gropius previram que nos anos porvir a clausura do mundo objetivista constrangeria o coração humano a inférteis velocidades. E o contemplar enfim torna-se ato vital. Não o tempo ocioso das Beaux-Arts contra o qual insurgiu-se a Regeneração Estética, mas um tempo em suspenso onde a imaginação ativa-se e empreende a maior das ações: molda o mundo a seu sabor no despertar do espírito idiotizado. No contemplar o Eu cai em si e dentro descobre o caminho da transcendência, que nos desvia do contingente. Pois quem transcende não foge de si mas mergulha-se. No vasto mel de nosso íntimo podemos nos embalsamar em tempo mais lento, onde habitam vastidões similares ao fora cósmico. O seio da transcendência, o fora essencial. Tal é a essência do Misticismo, do Romantismo, do Sublime. Dentro jaz o fora, que cava mais o dentro. Nesse ciclo o Eu encontra-se.
    Mas o pensamento de quem ancora-se na matéria das coisas mal alcança as arestas do conhecido. Em seu casulo imanente o Eu respira o próprio hálito. Em sua vida tudo é familiar e apenas lhe palpita a pele. Como gotas de chuva no oceano do espírito. Assim ele jamais vislumbrará as correntes ocultas de seu coração. Por isso em segredo ele anseia um grande raio que rompa o espelho d’agua de sua existência e enterre-o abismo abaixo. Fortuna então haver o terror. O espanto das coisas estranhas, do não-ser, do outro. Alteridades que nos lançam ao desconhecido e cujo contato revela-nos o fora. No abalo Sublime o sujeito virá a conhecer o outro lado de sua própria existência. Nas coisas imensas ele verá a amplitude de seu pensar, o fora externo lhe abrirá o fora interno. E verá a real escala de seu espírito. Em tal solidão o instante não corre. Cristaliza-se em espessura que o sujeito sente pulsar como as próprias veias da eternidade. O tempo suspenso é o ventre de seu renascer.
    O que ele precisa é de um espaço propício. Filho de um mundo fluido, seu coração palpitante anseia a quietude da rocha por onde o tempo escorre lento. A arquitetura articula tal atmosfera. Em seus espaços silentes nossa solidão essencial sobe à pele. Pois criados por alguém dotado de autenticidade e expressão e capaz de manipular a matéria sensível com fins supra-sensíveis, de suscitar na aresta a presença do infinito, de despertar no tempo a sensação de eternidade, de estimular no desamparo da pele o caminho do amparo interior. Por alguém que não limita-se à sua pequena fração de realidade mas que anseia pelas coisas ao além de sua sintonia, imprimindo-as num único ponto do espaço. Por alguém que tenha empreendido a jornada de auto-conhecimento. De um Eu ao outro, uma obra que floresça na esfera da relação inter-pessoal. Como sussurro epifânico. O que ele precisa é o artista do Sublime. Tal artista não guia multidões nem gira a roda do progresso. Quer somente aliviar as próprias angústias. Quem visa desvendar-se há de confrontar o desconhecido. Pouco podem-lhe auxiliar a opinião pública e seus dogmas, que apenas exprimem o exprimível. Mas nas obras selvagens do Sublime há uma força que confronta e desordena pois alveja o inexprimível. Uma arte que não esculpe o coletivo mas invoca o indivíduo ao espanto.

NOTAS


1. MARX, K., Grundrisse, p. 930.
2. GROPIUS, W., In. BANHAM, R., Theory and Design in the First Machine Age, p. 280.
3. Personagem alter ego de Oscar Wilde em seu romance O Retrato de Dorian Gray.
4. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 38.
5. RANCIÉRE, J., Aisthesis: Scenes from the Aesthetic Regime of Art, p. 136.
6. Id., ibid., p. 135.
7. MUTHESIUS, H., In. BANHAM, R., Theory and Design in the First Machine Age, p. 73.
8. Id., ibid.
9. Id., ibid., p. 75.
10. FRAMPTON, K., História Crítica da Arquitetura Moderna, p. 139.
11. Id., ibid., p. 141.
12. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 19.
13. Id., ibid.
14. FRAMPTON, K., História Crítica da Arquitetura Moderna, p. 143.
15. Id., ibid.
16. SHAKESPEARE, W., Hamlet, Ato II Cena II. Tradução do autor. Versão Original: Though this be madness, yet there is method in it.
17. GROPIUS, W., In. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 52-3.
18. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 43.
19. Id., ibid.
20. GROPIUS, W., In. BANHAM, R., Theory and Design in the First Machine Age, p. 279.
21. Id., ibid., p. 281.
22. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 56.
23. ARGAN, G. C., ibid., p. 33.
24. Id., ibid., p. 75.
25. Id., ibid., p. 83-4.
26. Id., ibid., p. 30.
27. GROPIUS, W., In. FRAMPTON, K., História Crítica da Arquitetura Moderna, p. 147.
28. Id., In. BANHAM, R., Theory and Design in the First Machine Age, p. 277.
29. Id., In. FRAMPTON, K., História Crítica da Arquitetura Moderna, p. 147.
30. BANHAM, R., Theory and Design in the First Machine Age, p. 267.
31. GROPIUS, W., In. ibid., p. 277.
32. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 52.
33. ITTEN, J., In FRAMPTON, K., História Crítica da Arquitetura Moderna, p. 150.
34. Id., In. BANHAM, R., Theory and Design in the First Machine Age, p. 278.
35. Id., ibid.
36. Id., ibid.
37. KLEE, P., Paths of the Study of Nature In. Pedagogical Sketchbook, p. 7.
38. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 86.
39. BANHAM, R., Theory and Design in the First Machine Age, p. 279.
40. ECKHART, Selected Writings, Sermão V.
41. Id., ibid., Sermão IV.
42. Id., ibid., Sermão V.
43. PANOFSKY, E., Arquitetura Gótica e Escolástica, p. 9.
44. Id., ibid., p. 10-1.
45. GROPIUS, W., In. BANHAM, R., Theory and Design in the First Machine Age, p. 281.
46. Id., ibid.
47. GROPIUS, W., In. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 17.
48. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 68-9.
49. Id., ibid., p. 76.
50. Id., ibid., p. 83-4.
51. MELVILLE, H., Bartleby o Escrevente, p. 36.
52. ARGAN, G. C., Walter Gropius e a Bauhaus, p. 83-4.
53. CRARY, J., 24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, p. 19.
54. Id., ibid.


















































































































































































































A Fantasmagoria de Robert na Cour des Capucines em 1797,
Étienne-Gaspard Robert.














Der Golem: Como Ele Veio ao Mundo,
Carl Boese e Paul Wegener.






Domo da Grosses Schauspielhaus, 
Hans Poelzig.









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