O Peso da Luz


Arquitetura Gótica pode ser descrita como uma mania por construção sem rumo; pois nela não há objeto direto, não há objetivo prático: ela é meramente subserviente ao desejo de expressão artístico. E sabemos qual é o seu objetivo: é o anseio pela absorção numa atividade não-sensual, mecânica da maior potência.
Wilhelm Worringer1

É difícil para a mente do homem quando a obra de seu irmão é tão sublime que ele pode apenas curvar a cabeça em adoração.
J. W. Goethe2

A contemplação da beleza ou do terrível. Temos sede de ambos.
John Ruskin3



O abade queria mais luz. No hálito áureo do Deus eu hei de perder-me, dizia. Para sustentar o sopro divino ele e seus construtores ergueram um altíssimo templo todo suspenso em inovadora estrutura em geometria divina. Como se o próprio Deus empunhando um compasso o tivesse feito. Tudo para escorrer o peso da luz. Ou seria, pontuou o mestre pedreiro, a luz acima que levanta a estrutura? E mesmo após erigido o templo, o abade nunca teve a certeza de sentir na luz o sabor divino.

I

Primeiro ele vê. Da poeira do chão ergue-se a catedral como os altos muros da cidade prometida de Nova Jerusalém. “E eu, João, vi a santa cidade, que de Deus descia do céu”.4 Eis aqui o tabernáculo onde Deus e humanos habitarão. Assim como a santa cidade, a fachada da catedral abriga os “doze apóstolos do Cordeiro”,5 e as três portas do sol poente.6 E o muro da cidade estava adornado com todo tipo de “pedra preciosa”.7 São quase esculturas abstratas, tais pedras. Como luz petrificada, por vezes translúcida. Então talvez João não tenha visto a Nova Jerusalém, mas a entreviu em intuição. Pois olhos apreendem apenas contornos e o que é divino não limita-se. No livro do Apocalipse os adoradores de imagens chama-se idólatras e são irmãos de feiticeiros e mentirosos e como tais arderão no “lago de fogo e enxofre, que é a segunda morte”.8
    E no entanto nas fachadas das catedrais Góticas não há pedras preciosas mas um imenso arranjo de figuras esculpidas. Toda uma paisagem iconográfica de santos de corpos esguios e monstros em estranhas combinações e folhagens florescendo em pináculos. “Ela lembra a folha caída das nuvens ao santo apóstolo, repleta de bestas limpas e sujas”, escreve Goethe.9 Séculos atrás tais ídolos seriam inconcebíveis à teologia cristã, nascida na penumbra iconoclasta das catacumbas até no século quatro ser prestigiada como religião oficial do poderoso império romano. Extraídos das sombras e enfim venerados à luz, era necessário aos cristãos um novo espaço de culto. Escolheram a tímida basílica romana. De fato sua austeridade é estranha para quem acostumou-se a ver catedrais Góticas. Mas em seus primórdios a teologia cristã louvava apenas o vazio e a ausência. O Deus judaico-cristão é uno, infinito e indivisível. Condensá-lo em pedra é incorrer na heresia de limitá-lo num contorno espacial e expô-lo à entropia. E Deus é o dono do tempo, não seu súdito. Ele é não o contingente, mas o eterno atrás. Ao humano não é dado duplicar a criação e roubar a alma das coisas através de cópias, como feiticeiros e ilusionistas.
    E ainda assim sempre haverá os que anseiam expressar a devoção ao impossível. Que pode o frágil humano fazer frente ao Absoluto senão dar forma à sua angústia e deslumbre? Como poderia o devoto permitir-se tal tentativa sem incorrer no erro da idolatria? Sim, a escultura é corpo no mundo, mas ainda há artes que limitam-se às superfícies, sem nunca adentrar o espaço. Se trabalhada de forma propícia, a imagem pintada ou talhada pode cultivar uma estética irreal, esquemática, alegórica: não copia a criação ou concretiza deuses, mas alude à eles, nas alturas. E também há a necessidade de educar analfabetos nas palavras do senhor. Foram eternizadas as palavras do Papa Gregório Magno, século seis: “As pinturas podem fazer pelo analfabeto o que a escrita faz pelos leitores”. Foi dado o primeiro passo artístico de um povo que aprendera a ser asceta.
    No século cinco talhou-se nas portas da Basílica de Santa Sabina, Roma, todo tipo de motivo bíblico, comum à arte do outro lado do Mediterrâneo que viria a ser conhecida como Bizantina. Seu aspecto é inverossímil. Não trata-se de forma, mas de conteúdo. É preciso vê-las através, como portas. Representam as cenas não como teriam acontecido mas enquanto eventos divinos fora do nosso imperfeito real. Pois a história bíblica é composta de milagres em si inesgotáveis, ecoando na paisagem difusa do espírito humano, longe do decadente real. São como palavras na Bíblia, coisas em si desimportantes que aludem a algo inexprimível. Não há cores nos relevos das portas mas caso houvessem é provável que seu fundo fosse dourado, aludindo à luz divina, como as paredes das Igrejas Bizantinas. Heresia pintar o espaço, copiar os talhos de luz. A cor é lembrança da iluminação que deita sobre os que crêem.
    Os quinhentos anos da primeira era cristã provaram-se tempo o bastante para que, nos mosteiros e conventos e também nos artesãos, o apreço à arte ganhasse fôlego e prestígio. De ascetas à estetas, então. Portanto agora voltamos ao século doze e na fachada da Catedral de Chartres vemos todo tipo de escultura cujo grau de expressão inexistia na arte Bizantina. Se séculos antes os antigos gregos e romanos foram tidos como idólatras pois louvavam o corpo de suas perfeitas esculturas ao invés dos deuses invisíveis, eles agora inspiravam as obras cristãs. Na fachada é possível perceber-lhes a solene castidade intocada por detrás da erosão. Mas o corpo dessas esculturas é esbelto demais. Sua anatomia alongada não é similar à nossa pois pauta-se no fluxo de forças vertical dos pilares onde ancoram-se. Em seu vir-a-ser há mais do que o desejo de imitar. Há também o anseio de expressar algo intangível. E de fato o estado de espírito das catedrais Góticas é o da ascensão. Um alongar-se acima para em torres e pináculos arranhar o arco cósmico. As esculturas do apogeu Gótico equilibram-se entre o alegórico da arte Bizantina e o mimético da arte Clássica. Nem abstração conceitual nem concreto naturalismo.
    Já no século dezenove o romântico John Ruskin escreveu, ao comentar a arte Gótica, que a boa obra emancipa-se do objeto que representa, equilibrando-se na fronteira entre o real e o imaginário, entre abstração e mímesis. O bom artista revela o oculto. Nega-se dogmas artísticos em prol da expressão artística. “O arranjo de cores e linhas”, escreve Ruskin, “é uma arte análoga à composição de música, e totalmente independente da representação factual. Uma boa coloração não transmite necessariamente a imagem de nada além de si mesma...não consiste nessa imitação, mas nas qualidades e relações abstratas”.10 As esculturas na fachada de Chartres possuem as mesmas qualidades liminais da própria arquitetura, Sublime morada formada no desejo de transcender ao supra-sensível através do sensível, equilibrando assim o terreno e o perene. Tais esculturas, escreve Erwin Panofsky cem anos após Ruskin, de “aparência natural embora ainda não-naturalista”, anunciavam que “a alma do homem, embora imortal”, não poderia existir desprovida de um corpo mortal. “Uma planta florescia enquanto planta, não enquanto imagem da ideia de uma planta”.11
    Talvez então seja possível argumentar que a arte Gótica buscou não mais expressar a face do criador, mas o espírito da criatura. Na pedra da catedral o artesão funda uma esfera íntima onde é possível expressar-se. Nela Ruskin viu um antídoto à tirania industrial de seu tempo, que oprimia trabalhadores nas grandes metrópoles. O artesão gótico corre a pedra em cinzel. Ali inventa todo tipo de criatura, pois a “imaginação fantástica”, escreve Ruskin, “é um dos elementos chefe da mente do Gótico Nortenho”.12 Muitas vezes erra. Não há problema. Errar é o caminho do acerto e a arte é o campo do experimento. “Nenhuma arquitetura pode ser verdadeiramente nobre sem ser imperfeita”.13 Quem esculpe à perfeição é o operário industrial, que desperdiça-se “na finura de uma teia…na exatidão de uma linha”.14 Alienado de si, não é capaz de confrontar o insondável no qual o artesão gótico mergulha, onde há angústia e desejo de superação. A arte Gótica é, em essência, o formalizar desse anseio transcendente.
    Wilhelm Worringer escreve, já no século vinte, que “sua natureza essencial é muito mais a do impulso incansável, e em sua busca por repouso pode encontrar nenhuma satisfação que não seja de estupefação”,15 e continua: “a todo tempo ele [o artesão] apenas encontra-se ao perder-se, ao superar-se, e desse dilema brota tanto sua grandeza quanto sua tragédia”.16 Sua arte é rude pois filha do Sublime, que à Ruskin “na medida em que é estreitado e quebrado por inconsistências da capacidade humana, torna-se grotesco”.17 Em Ruskin o temor frente ao inexprimível não raro traduz-se em imagens que denotam nossa incapacidade de contornar o Absoluto. Tal é a alma do Grotesco: “um encurtamento do poder, ou da vontade, da contemplação, e uma conseqüente distorção da terrível imagem”.18 Portanto os grotescos “em parte nos degradam pelo seu terror instintivo e paralisante, em parte nos enobrecem ao levar nossos pensamentos a habitar o mundo eterno”.19
    Para desvendar o enigma da existência, o artesão volta a si. Há nele, segundo Ruskin, uma qualidade oracular. Ele entrevê mais do que os outros são capazes de discernir. À ele o acesso ao além é mais largo. Sob a carne de seu coração espelha-se o que também oculta-se nas costas das nuvens. Em seu espírito há beleza, mas também medo, trauma, terror. Escreve Ruskin: “O bem sucede ao mal como o dia sucede a noite, mas também o mal ao bem. Gerizim e Ebal, nascimento e morte, luz e trevas, céu e inferno, dividem a existência do homem”.20 O humano flutua entre dois abismos e busca aliviar-se na fachada da catedral, onde entre santos e bestas ele expressa todo o drama de sua vida íntima, articulando a angústia existencial que tal amplitude ontológica lhe fadou.  
    Mas como contornar tais sentimentos inefáveis? Imprime-o uma apatia. Sua mente quer vaguear, distrair-se. Ele então arrisca traços, golpeia a pedra, testa formas, mistura espécies, crispa semblantes, molda gestos. Num estado mental lúdico entre o lúcido e o fantástico, o artesão joga com seu imaginar pois somente assim ele conseguirá expurgar as criaturas contra as quais “ele guerreia diariamente”, escreve Ruskin: "Ele não pode deixar de dar-lhes sua parte em seu trabalho”.21 Na fachada jaz o que Worringer chama de “o poderoso mundo da sensibilidade medieval, dilacerado por extremos e capaz de esforços sobrenaturais de energia”.22 A perigosa elasticidade existencial do filho de Deus. O sagrado e o profano convivem na obra mas jamais sintetizam-se. Polarizam-se, como é a dualidade do espírito humano. Os monstros são corpo sem alma. Os Santos, almas em pedra. O Dionisíaco e o Apolíneo. O Grotesco e o Belo. Ambos expressão. Na fachada vemos em simultâneo as duas margens do nosso espírito, ambas as nossas naturezas e suas pulsões. Nos contornamos.
    Lembro-me de Friedrich Schiller e sua crença na estética como síntese das pulsões da carne e do espírito. É em preciso nessa experiência metafísica que os românticos apostam como o libertar de sua angústia existencial. Há os que vêem na composição do estatuário as qualidades de um drama, personagens no palco a encenar contos preventivos. Nesse teatro ritualiza-se o pecado: através das esculturas os fiéis são levados a contemplar as criaturas ocultas ao além dos limites conhecidos, sejam sob a pele ou nas margens de um mundo cuja lógica é inapreensível à mente humana. Há aqui uma ponte à outra teoria de Schiller, seu Sublime Patético, onde não apenas revela-se a hostilidade mas encena-se seu poderio. Ao espectador é possível sublimar o sentimento, doar-se à catarse. Pois excluída a ameaça real, potencializamos a contemplação. Ruskin, assim como Schiller, reitera a arte como caminho possível na modulação da distância segura necessária ao Sublime. Talvez o melhor dos caminhos. Ele escreve: “Nada parece-me mais notável do que o leque de magnificência cênica pela qual a imaginação assusta-se, em miríades de instantes, quando o perigo real é comparativamente pequeno; de modo que a máxima impressão de admiração seja produzida na mente de todos”.23
    A catedral Gótica não exprime a face de Deus, mas a tentativa humana de tocá-la. Para isso é preciso sintetizar toda a fachada num pináculo de potência. Não se trata de destruir os monstros em nós, e sim de sublimá-los. Mas para que o sensível toque o supra-sensível é preciso mais do que uma arte figurativa, que pode apenas encaixar o insondável em nossa pequenez. De certa forma, havia verdade no veto bizantino: a figura nunca pode exprimir o Absoluto. Haveria então outra forma de buscar o Sublime na catedral?

II

Eu apenas elevei a vastidão arbitrária em proporções harmônicas.
J. W. Goethe24  

Os sentidos exultam ante coisas bem proporcionadas, já que estas se lhes assemelham; pois também o sentidos são uma espécie de razão, assim como qualquer força cognitiva.
Tomás de Aquino25

Não só de figuras fazem-se as catedrais Góticas. Há todo um vocabulário arquitetônico ordenado sob trama geométrica. Sendo Gótica, tal harmonia busca manifestar a transcendência mas não mais a partir de figuras e sim da matemática. Há muito a geometria era vista como ponte ao sagrado pois sua abstração é propícia à tudo que é inexprimível. O sagrado esconde-se nos números pois são intangíveis e nas figuras geométricas pois são harmônicas. À arquitetura foi dado o privilégio de convocar o Deus, pois seus planos e volumes não visam interpretá-lo mas abrir um espaço onde ele pode habitar. A matemática, quando metafísica, torna-se abrigo propício ao divino. Há um anseio transcendente na geometria Gótica, que usando-se de círculos, quadrados e triângulos angula o corpo arquitetônico à ascendência, segundo Worringer “direcionando mil energias ao mesmo objetivo”: o infinito.26 “Quão mais a alma desenvolve um sentimento por proporção…cuja harmonia fundamental podemos explicar mas cujos mistérios podemos apenas sentir, aonde o divino gênio dança em beatas melodias”, escreve Goethe, “mais essa beleza penetra a mente para que ambos pareçam terem originado como um”.27 E dali o jovem romântico extraía não um culto nostálgico à fé católica mas o apreço à angústia da transcendência e a ânsia do Absoluto.
    No século doze esse grande gesto de rigor mecânico está presente não só na arquitetura. É típico de outro campo do pensamento: a filosofia Escolástica. A “heróica tentativa de solucionar o conflito entre a fé e a razão”, segundo Panofsky.28 Mas em sua tentativa de aplicar argumentos lógicos à explicação divina em essência supra-lógicos, a Escolástica nunca seria capaz de “produzir provas diretas para as questões da fé”, mas apenas “ilustrar e explicar” tais questões através de similitudes — analogias.29 Estando os milagres da fé fora da trama causal do mundo, não é possível ao intelecto humano prová-los. A Escolástica pode no máximo deduzir a existência de uma lacuna ontológica sem a qual seria impossível ao humano conceber a existência de nosso universo.   
    Há um esquematismo nos textos escolásticos que interpreta a obra como um sistema de partes a serem articuladas para melhor proveito e claridade. Surge uma noção mais sofisticada de composição. O que é proporcional e harmônico é agradável ao olhar, fixando-se mais fundo na mente humana. “Se falta proporção”, escreve Goethe, “nenhuma quantidade de ornamentação externa compensará”.30 E assim como os cânticos medievais compunham-se num intervalar de tempos musicais, “as artes plásticas foram articuladas por meio de uma divisão sistemática e exata do espaço”, o que segundo Panofsky “conduziu a uma ‘clareza em nome da clareza’ no conceito funcional da arquitetura”.31 Edifícios eram o harmonizar de elementos principais e detalhes secundários. Os grupos de figuras nas fachadas Góticas são compostos “segundo um esquema rígido e bastante uniforme, que explicita o conteúdo narrativo”.32 O comum é o tímpano Gótico segmentar-se em três níveis cada qual ocupado por estatuário de modo que os condenados, os eleitos e ressurrectos separem-se. Os apóstolos situam-se nos painéis laterais do portal, acima das doze virtudes e dos doze vícios”.33 O princípio de transparência escolástico transfere-se também às fachadas que revelam o espaço interno do templo. A fachada oeste da catedral é tripartida: representa o corte transversal da nave interna, composta de espaço central e duas galerias. Pela composição imagética da catedral vê-se que “todo o conjunto do conhecimento cristão” é ordenado, onde à cada coisa é dado o devido lugar.34 A própria estrutura arquitetônica respeita tal anseio de síntese, pois foi-se desnudando de elementos desviantes, como o excessivo número de torres, muitas vezes até sete, e a galeria interna, comum no período românico. “Portanto olhamos com prazer as seções das estruturas Góticas cuja beleza parece derivar da simetria e proporção do todo em relação às suas partes e das partes entre elas”, escreve Goethe.35
    Também toda a construção dá-se numa lógica fractal de repetição progressiva dos mesmos elementos, desde as menores unidades até os amplos espaços. Segundo Panofsky “a estrutura de todo o sistema” devia ser inferida “a partir de um único pilar”.36 Arcos ogivais formam abóbadas nervuradas onde as nervuras de quatro pilares cruzam-se, criando triângulos de lados comuns às abóbadas vizinhas, no que Panofsky chama de homologia. Sua variação é “no máximo igual à que a natureza reserva aos indivíduos da mesma espécie”.37 Pois no mundo não há estranhos e cada humano carrega em si a lembrança de seu irmão e assim por diante numa gaguejante progressão cuja potência é de uma complexidade infinita. Todos possuímos em nós a capacidade de sermos qualquer outro, seja por genética ou influência e no entanto somos apenas quem somos. O finito dentro do infinito, contornado. Mas do contorno nasce a autenticidade de ser quem se é e por isso os elementos da arquitetura devem “realçar sua identidade”.38 Participam do todo mas jamais camuflam-se nele. É possível divisá-los. No Gótico são as partes que compõe o todo. Ali, como diz Goethe, os trabalhos individuais de artistas conformam partes que, mediante a alma do arquiteto, “emergem e crescem em conjunto num todo eterno”.39 E no frescor matinal o jovem Goethe estendeu os braços frente à Catedral de Estrasburgo e ali sentiu “as vastas, harmônicas massas animadas por incontáveis componentes. Como nos labores da eterna natureza, até a última fibra, tudo é forma. Quão leve o imenso edifício voa ao ar, tudo é como filigrana feito à eternidade”.40
    Tudo isso faz da construção um todo coeso e indivisível, como devem ser os argumentos lógicos que visam vislumbrar o milagre divino, expressando por meio da razão o inefável mistério da existência. Tudo o que não é imprescindível é descartado. Isso é realmente racionalismo, escreve Panofsky.41 No Gótico tudo exerce uma função no conjunto de forças que exprimem o anseio humano de transcender. Sua austeridade racional não é só utilitária ou econômica, mas serve a um ideal estético-espiritual. “Não trata-se nem de ‘racionalismo’ no sentido puramente funcionalista, nem de ‘ilusão’ no sentido da moderna estética da arte pela arte. Trata-se de algo que poderíamos chamar de ‘lógica visual’”, diz Panofsky.42 Tal lógica pretende manifestar o espírito Gótico nutrido na angústia das tarefas impossíveis para não apenas tensionar-se acima mas também inaugurar um espaço que expresse seu estado de espírito. Para Panofsky “o escolástico exigia um máximo de expressividade”.43 E assim como a fachada com suas criaturas dantescas exprimia o cindido espírito humano, também os elementos da arquitetura deveriam ser uma “auto-análise” que revelava seu vir-a-ser.   
    Ruskin alude à Milton e Dante, cuja poesia inicia-se sob normas como simetria, harmonia, proporção, ritmo. Mas de dentro da estrutura matemática irrompe a potência artística. Suas palavras trabalham a tensão de em simultâneo aceitar e negar a estrutra. Há também esse equilíbrio assimétrico no Gótico, que respeita a composição geométrica mas não esgota-se nela, antes floresce de dentro dela também para negá-la. “A grande arte”, escreve Ruskin, “seja expressando-se em palavras, cores, ou pedras não diz a mesma coisa vez e vez de novo; que o mérito da arquitetura, como em qualquer outra arte, consiste em dizer coisas novas e diferentes”. Pois à Ruskin a monotonia repetitiva torna-se virtude apenas quando palco para a variação. “Monotonia em certa medida, usada para valorizar a mudança...é tão essencial na arquitetura quanto em todas as outras composições”.44
    “A tendência de deleitar-se em fantásticas e ridículas, assim como Sublimes imagens, é um instinto universal da imaginação Gótica”, escreve Ruskin.45 E assim como o artesão que dedica-se a inventar grotescos acaba por deslumbrar-se com o processo artístico da expressão, incorrendo no que alguns chamariam de idolatria, também no fundo o escolástico apaixona-se por seus próprios malabarismos intelectuais. Sua prática torna-se um deleitar-se na própria moção do pensar bestialógico que, segundo Worringer, “ultrapassa a ocasião de sua atividade, tornando-se a revelação autônoma de um movimento do pensar abstrato, isente de propósito”.46 Tão delicada é a trama dedutiva, seus ornamentos poéticos e estrutura lógica. O humano acaba admirando-se não só com o mistério divino mas também consigo mesmo, sua natureza carnal estupefata frente à potência do espírito. O processo torna-se uma reza, um mantra cíclico elevando-se em seu perpétuo vir-a-ser. O humano não transcende pois à ele é negado o supra-sensível, mas ao menos ele transcende-se. Sua energia vital dissolve-o numa outra e melhor existência. É esse o jogo perpétuo da besta angelical que cultiva sua própria autonomia de buscar, em desmedida ambição, o impossível. “Ela aspira a um mundo acima do atual, acima do sensual”, escreve Worringer. “Ela usa esse tumulto de sensações para erguer-se fora de si. É apenas nessa intoxicação que ela experiencia o êxtase da eternidade. É essa exaltada histeria que, acima de tudo, é a marca distinta do fenômeno Gótico”.47
    Na catedral há para Worringer essa mesma “loucura metódica, o mesmo caos deliberado”.48 Toda sua arquitetura é costurada numa tapeçaria de linhas qual sistema venoso costurando elementos entre si. Capilares de pedra nascem do chão e fasciculam colunas e flexionam-se em arcos ogivais e cruzam-se em abóbadas e rendilham-se nas janelas para sustentar os vãos e as vidraças. Há um êxtase em sua trama. “O transcendentalismo gótico, que, nascido de um vago, confuso dualismo”, escreve Worringer, “pode apenas encontrar apaziguamento e libertação em estados de histeria, em excitação convulsiva, em pathos esgotado”.49 E assim a catedral Gótica torna-se lócus do Sublime. Segundo Goethe foi o próprio gênio que desceu ao arquiteto Gótico e lhe disse: “Erga-a aos céus para que voe como uma imponente e ampla árvore do Senhor. Com seus milhares de galhos e milhões de ramos e tantas folhas quanto areia à beira-mar, ela há de proclamar à terra a glória do Senhor, seu mestre”.50
    Tudo condensa nas torres, talvez o grande símbolo humano da transcendência. Nelas sintetizam-se todas as “energias individuais que jogam e cansam-se no exterior”, escreve Worringer, e continua: “Como uma apoteose transfigurada da transcendência gótica, as torres põe o toque final à todo o edifício. Em lugar algum a ‘auto-intoxicação por formalismo lógico’ do gótico é mais puramente expressa do que aqui, mas também em lugar algum está o sobre-lógico, transcendente efeito desse labor lógico de multiplicação estampado com tal caráter monumental e convincente”.51 Todos os fluxos vitais da fachada juntam-se sob o delgado corpo da agulha e daí são expelidos ao infinito firmamento.
    Mas não só na Escolástica é possível encontrar o ventre do desejo histérico e deleite ornamental Gótico. O Gótico é a abundante convergência de uma série de culturas, como a árabe. A arte Nórdica é uma dessas influentes culturas, pois filha milenar dos povos escandinavos do mar Báltico, incluso os germânicos do norte, a dita Pomerânia. Nas paredes da Igreja nórdica de Urnes, século onze, há ornatos talhados onde uma grande besta, uma cobra e uma fita costuram-se em sofisticada tapeçaria cuja trama fractal induz ao infinito. Em seu início a arte Nórdica não passava de um entrelaçar abstrato de linhas em simples padrões. À Worringer já havia ali um “modo de expressão sobre-orgânico”, uma “vitalidade, uma busca, um tumulto incansável”52 cujo caráter metafísico virá a ser potencializado no século sete a partir da inclusão de motivos mais complexos e semi-figurativos onde feras e faixas em estranhas mutações entrelaçam-se e confundem seus contornos. Nas hastes dos seus navios, nos seus pratos de prata, nas esporas de ouro, nos cálices, lâminas, baús, cata-ventos, sepulturas. Em todos os objetos da vida cotidiana nórdica havia uma geometria entrelaçada de anatomias cambiantes, criaturas zoomórficas, feras cômicas e temíveis, arranjos florais, figuras humanas. “O pathos de movimento presente nessa geometria vitalizada” escreve Worringer, é “um prelúdio à matemática da arquitetura Gótica — força nossa sensibilidade a um esforço anormal”.53
    Anormal pois no Gótico há essa inquietude espiritual, um desamparo no mundo que alimenta o anseio ao supra-sensível. Primeiro na arte Nórdica e depois na Gótica supera-se o padrão geométrico para gerar uma volúpia sinuosa, incansável, transmutando linhas em animais espasmódicos que, como as esculturas góticas, são semi-naturais, dinâmicos, e logo serão absorvidos pelo todo para depois transformarem-se em outra coisa. Sob o desenho de nós e enlaces a linha abstrata inebria as formas das coisas, deformando-as no limiar de uma existência intangível. “Tudo torna-se estranho e fantástico”, escreve Worringer. Ele continua: “Por detrás da aparência de algo espreita sua caricatura…uma estranha-familiar, espectral existência, e portanto todas as coisas tornam-se grotescas”.54 Não à toa os grotescos góticos são retratos de figuras em metamorfose. Há um pensamento mágico que tece semelhanças entre coisas antes díspares. Mas é preciso que o fluxo do ornamento mantenha-se entre a concretude e a abstração, às vezes formando criaturas, às vezes dissolvendo-as em linhas. É o pensar humano encontrando caminhos entre as coisas do mundo. Tal manuseio acerca-se do que virá a ser, no século dezenove, o pensamento monista Romântico, crente na supra-dimensão do Absoluto, onde tudo é uno. Escreve Novalis: “Posso mostrar todas as imagens, posso conjurar com a mágica da fantasia a afinidade química das coisas mais díspares”.55
    As revoluções da linha Nórdica condensam uma energia que podem libertar ao mundo ou volvê-la a si, continuando o ciclo, expandindo-o ao infinitum, assim como no Gótico pode-se coagular a energia nas torres e depois lançá-la acima ou revolvê-la num ciclo de eterna moção. Ambas são fractais. Multiplicam-se os módulos para imbuir a obra de um teor tautológico ilimitado, e portanto Sublime. “Seu movimento dissolve-se no infinito”, escreve Worringer.56 Na arte Nórdica “as formas animais estão fundidas a um movimento de linha independente”, já no Gótico “as estátuas estão fusionadas a um movimento arquitetônico independente, do maior poder expressivo”.57 Não há início ou fim, centro ou rumo ou ponto de descanso. Há apenas o inabalável ímpeto no “anseio de resolver-se numa intensa atividade de um tipo não-sensual, espiritual e, em sua direta exaltação, libertar-se do sentimento de servidão à realidade”, escreve Worringer.58 Lembro-me de um dos ensaios de Goethe sobre arquitetura Gótica: “se ele parece rapsódico e errante, é talvez desculpável quando tenta-se expressar o inexprimível”.59 Na arte Nórdica estão presentes muitas das qualidades que Ruskin viu no espírito Gótico: a selvageria na força das linhas, a variedade de padrões e figuras, o naturalismo presente na fauna e flora, o grotesco das criaturas deformadas pela moção da fita, a redundância fractal que repete incessante os motivos. A natureza da arte Gótica mantém a catedral em constante fluxo, revolvendo-se sem fim em enlaces e córregos de energia e ali também o romântico encontra, no século dezenove, um leito à sua angústia de movimento, um anseio de exprimir o infinito que todavia é fadado ao fracasso desde o início mas que não pode deixar de acontecer pois a tentativa, a jornada, o movimento são tudo o que temos.
    Nos Celtas do mar Negro a arte Nórdica encontrou notável leito. Há uma página dos Evangelhos de Lindsfarne, século sete, que parece prever grande parte da futura alma Gótica. Aqui a arte Nórdica emprega sua Sublime expressividade a um tema católico. Há uma grande cruz e tanto dentro quanto fora de sua figura há uma intrincada tapeçaria de dragões e serpentes e faixas costurando-se num padrão variável. Um grande gesto cristão estrutura a tessitura mas também seduzimo-nos a contemplar as minúcias dos nós nórdicos, assim como nas catedrais há o corpo edificado e seu sistema venoso-escolástico mas também nos demoramos nos santos e grotescos, folhagens e rendilhados. Como diz Worringer, no Gótico “não apenas nos perdemos na infinidade do grande, mas também na infinidade do pequeno. A infinidade do movimento que é expressado macrocósmico na estrutura do todo expressa-se também no microcosmos dos menores detalhes do edifício”.60 Uma imponência não tanto pela escala mas pela exuberância de detalhes. Na Catedral de Estrasburgo Goethe partilhou de tal sensação. “Minha alma inundou-se num sentimento de imensa grandeza que, porque consistia de milhares de detalhes em harmonia, eu pude saborear e desfrutar, mas de forma alguma entender e explicar. Dizem ser assim com as alegrias do céu…minha alma foi tocada pela calma divina do espírito”.61

III

E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus…E nela não vi templo, porque o seu templo é o Senhor Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro.
Livro do Apocalipse62

Qual ser vivo, dotado de sensibilidade, não ama, mais do que a todas as manifestações prodigiosas do amplo mundo que o circunda, a Luz plena?
Novalis63

No corpo da catedral há exuberância imagética, há abundância matemática. No entanto ambas podem somente aludir ao que não está ali. A ausência essencial chamada Deus. Mediante sua sagácia o humano busca enlaçar o divino ao longe. Mas no espaço interno da catedral há uma atitude de outro tipo. A arquitetura Gótica não se dá apenas na tectônica dos elementos físicos mas sobretudo no espaço ali manifesto. Uma expressiva vitalidade como um impulso afluente no esforço de tocar o infinito. “Os sentidos humanos intoxicam-se numa mística que não é desse mundo”, escreve Worringer.64 E talvez na catedral não hajam grandes arestas pois a fluidez energética lhe poliu o corpo. Como pedra em rio. “O espaço Gótico é desenfreada atividade. Sua nota não é da solenidade ou repouso; é incontestável. Ensurdecer-se dessa maneira pelo fortissimo da música espacial atende por inteiro a necessidade gótica em sua luta por libertação”.65
    Se é possível estudar o corpo da catedral pela Escolástica, também pode-se entender seu espaço interno a partir de outro campo teológico: o Misticismo. “Ao invés da exaltação intelectual na qual o sentimento religioso da escolástica buscou salvação”, escreve Worringer, “vemos no misticismo um êxtase emocional tornando-se a medida da experiência religiosa”.66 O Misticismo não visa alcançar o Deus fora, mas encontrá-lo dentro. “Misticismo é nada mais que a divindade da alma humana, pois é pelo fato da alma ser divina que consegue ver Deus”.67 Pois ao Misticismo o Deus é inalcançável pela razão, incontornável por figuras, insondável pela matemática. “O veículo do divino conhecimento” torna-se a experiência direta pessoal, não mais a ser buscada em “abstrações intangíveis”, mas no “foco do próprio ego, no espelho da contemplação íntima”.68 Segundo Panofsky a mística remete “o individuo à percepção individual dos seus sentidos e de suas experiências psíquicas”, tendendo a “expansão de seu ego ao infinito, já que crê na entrega da alma humana a Deus”, anulando a “linha divisória entre o finito e o infinito”.69 Um elogio à subjetividade mediante a negação da existência das coisas universais em prol das individuais.
    No íntimo da catedral inverte-se o fluxo: Deus não é aludido, mas convocado à atmosfera imediata do espectador, agora protagonista no drama de sua própria vida. Ele sente na própria pele a amplitude cósmica, o esplendor de tudo aquilo que não se explica. Pois o templo é a morada do Deus e Ele habita-o em Luz. E a luz não possui contorno nem corrói, é o ápice do etéreo e insondável que ainda conseguimos sentir e portanto a portadora do divino. Ela caminha pelo cosmos e enfim habita o espaço erigido em seu louvor, inebriando o ambiente e dando início à experiência estética. Nós a sentimos, a inspiramos, ela ilumina os abismos de dentro e afina nossa pele e logo sentimo-nos dissolvendo no hálito divino, como as linhas abstratas fazem às figuras na arte Nórdica. “Pois o que chamamos de espiritual é apenas a intensificação e refino do sentimento sensível até ele atingir a esfera do supra-sensível”.70 Dentro do templo o solitário Eu sente em si o Sublime. Nas fachadas ele viu a partilha coletiva da vida íntima de todos nós, mas no espaço de dentro ele sentiu o drama em seu íntimo. Não há figura nem palavra que traduza tal momento. “Receba-a”, escreve Goethe, “beleza celeste, mediadora entre deuses e humanos”.71
    Foi o pródigo abade Suger quem talvez tenha vislumbrado primeiro a tamanha potência da luz. Em Paris no início do século doze, Suger dedicou-se à construção do que é considerada a primeira catedral Gótica. A Basílica de Saint-Denis. O abade sonhava com uma experiência estética até então inexistente, mas não de todo alheia à vivida pelo apóstolo João nos cristais da Santa Cidade de Jerusalém, cuja luz do templo era “semelhante a uma pedra preciosíssima, como a pedra de jaspe, como o cristal resplandecente”.72 O abade lia seu relato no livro bíblico do Apocalipse, apokálypsis: a revelação das coisas antes ocultas. Passou também a questionar os viajantes que visitaram a imponente igreja de Agia Sophia, no coração de Bizâncio. Logo viu que sua luz não era o banho extasiado que também tomou João mas ambiente pintado em dourado, mera alusão simbólica à luz que lá não havia. Construída em grandes abóbadas suspensas em arcos romanos sobre massivos pilares, desprovia-se de amplas janelas para receber a luz. Na catedral de Suger não haveria alusões, mas a própria luz manifesta no espaço. Não mais apontaria de baixo o além, mas convocaria-o ao chão.
    Há séculos já havia não longe dali imensas igrejas de pedra construídas no estilo Românico. Assim como Agia Sophia, espessos pilares sustentavam arcos em semi-círculo, conferindo à estrutura uma aparência robusta e desprovida de grandes janelas. Mas nelas havia algo inexistente em Agia Sophia: seus construtores. Os normandos eram povos nórdicos assentados no litoral francês próximo à Paris e, como na página dos Evangelhos de Lindsfarne, suas igrejas fusionavam o espírito nórdico com temas e tipologia cristãos. O ímpeto transcendente da arte Nórdica talvez tenha levado a igreja Românica a uma série de inovações técnicas que legaram-lhe altura e leveza, favorecendo o advento Gótico. Não mais colunas maciças, capitéis, arcos romanos e abóbadas de berço, mas esbeltos pilares, arcos ogivais de desenho islâmico, abóbadas nervuradas. No lado externo, os contrafortes antes apoiados no corpo do edifício afastaram-se e à ele se conectaram por arcobotantes. Todos esses elementos estruturais já existiam em construções de outros estilos, épocas e lugares. Mas foi a tenacidade de Suger, aliado aos “mais experientes artistas de diversas partes”73 por ele contratados que na Basílica de Saint-Denis convergiu-se um todo coeso hoje tido como o estilo Gótico onde, nas palavras de Suger, a beleza magnânima da igreja não é obscurecida.74
    E o sóbrio templo Românico tornou-se esqueleto em pedra desprovido de epiderme, segundo Worringer “livre de toda toda massa supérflua”.75 Enfim capaz de sustentar o enorme peso da luz. Pois se já não haviam paredes mas pilares podia-se cobrir as lacunas com uma majestosa película de vitrais coloridos, tingindo a atmosfera de luz divina.“Toda a perspicaz produção lógica exercida pelos construtores góticos”, segundo Worringer, “no final serve apenas a objetivos sobre-lógicos”.76
    O abade possuía suas influências filosóficas. Talvez a maior fosse Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que chamava Deus de “a luz super-essencial”, “o Sol invisível”, “o Pai das luzes”, e seu filho o Cristo de “o primeiro esplendor”, pois revelou seu Pai ao mundo. Não à toa o altar da catedral faceava o leste para banhar-se à primeira luz, símbolo do Cristo e seu Segundo Advento. Segundo o Areopagita, a luz divina banha todas as coisas do mundo, conferindo-lhes forma e cor. E se tudo partilha da essência do Deus é através das coisas que o conhecemos. Suger, decerto, não é asceta. É antes um esteta. O humano “não precisa envergonhar-se de depender de sua percepção sensória e imaginação sensivelmente controlada”, escreve Panofsky. “Ao invés de virar as costas ao mundo material, ele pode esperar transcendê-lo ao absorvê-lo”. E assim todas as coisas “tornam-se símbolos do imperceptível, um trampolim no caminho aos céus”.77 Também escreve Worringer que “o que chamamos de espiritual é senão a intensificação e refino do sentimento sensível até ele alcançar a esfera do supra-sensível”.78 A experiência estética como ascensão espiritual. Diz Goethe: “o frágil esteta para sempre sentirá a vertigem na presença de seu colosso, robustas sensibilidades te entenderão sem intérprete”.79
    Nas portas da Basílica de Saint-Denis há relevos em bronze no tema da Ascensão, quando Jesus foi enfim convocado por Deus a abandonar o reino terrestre e ocupar seu lugar por direito no reino dos céus. Quarenta dias antes Jesus havia amargado a via crucis e a própria cruz e percebera com nitidez a sua incerta natureza. Perdido nalgum ponto entre homem e Deus, não era nenhum. Ali tornou-se o ser mais solitário de toda a criação. Mas foi sua fraqueza que abriu-lhe o caminho da Ascensão, pois quem não caminha a terra não compreende a subida aos céus. Talvez tais reflexões corram a cabeça de quem demora-se nos relevos. Ele pode entretê-las à minúcia mas ainda assim será mero espectador levado a imaginar uma experiência que não é a sua. Preso ao Sublime Contemplativo de Schiller, limita-se à estreiteza de sua inventividade e empatia.
    Caso adentre a arquitetura ele há de virar protagonista, pois o que era antes alusório torna-se experiência vivida. Ele sentirá na pele o êxtase da luz colorindo-se nos vitrais, transmutando suas imagens em algo ilimitado, brilhante como os cristais da Nova Jerusalém prometida, como se o próprio Deus inspirasse aquele mesmo ar que perfuma os pulmões do fiel em sentimentos inexprimíveis. Segundo Worringer, uma “mística intoxicação dos sentidos que não é desse mundo”.80 Um espaço tão largo. Quase não entende-se como a catedral cabe no mundo. Ele sente os veios mais tênues de sua alma estimulados numa filigrana tão sutil que a força de seu entendimento não consegue pinça-la. Nesse Tempo Suspenso o mundo dos homens cessou de urrar, soa só o sussurro inteligível do Deus quem sabe a citar o Apocalipse. “E a cidade não necessita de sol nem de lua, para que nela resplandeçam, porque a glória de Deus a tem iluminado, e o Cordeiro é a sua lâmpada”.81 Quantas vezes, diz Goethe, sob a “luz gentil da manhã, enquanto fundia as incontáveis partes em massas unas, meus olhos suavizaram da busca intensa. Agora estava tudo diante de minha alma, simples e grande, e eu, tomado em êxtase”.82
    O comum é ver na luz o oposto do Sublime. Pois se a escuridão dissolve as coisas no infinito, então a luz as delimita, contornando tudo que à noite não tem fim. Mas a Revelação aqui é sobre vivenciar uma luz tão forte e espectral que ela acaba por turvar o mundo concreto para revelar outro, supra-sensível. Como a luz na alegoria platônica da Caverna, que estonteia os sentidos num jato de lucidez. O Areopagita diz que o universo é “criado, animado e unificado pela perpétua auto-realização” do ser supremo, que a tudo ilumina.83 Então aos sentidos do mortal iluminado na catedral é revelada a inefável lógica da perpétua auto-realização do Deus. "Apenas nesse pathos que elevou-o acima das limitações mundanas”, escreve Worringer, “nessa intensificação em êxtase que culminou na aniquilação do Eu que ele poderia vivenciar o estupor da eternidade. Seu dualismo interno forçou-o…à transcendência”. E continua: “é o mesmo sentimento vertiginoso criado pela complexidade caótica do ornamento nórdico”.84
    Mas tal experiência é sequer sombra. Somos como Goethe, “incapaz de reconciliar as contradições colidindo-se sua alma”.85 O êxtase mantém sua força por menos de instantes. Pois a catedral Gótica não é Nova Jerusalém nem nós o Cristo. Somos a criatura cindida, o bicho divino, cambiante entre ambas as naturezas. Worringer, num surto de otimismo, escreve que nas catedrais a luz dissolve a pedra, transcendendo-a. “Toda a expressão do Gótico foi alcançada apesar da pedra. Sua expressão não derivou do material mas pela sua negação, através de seu desmaterializar”. Mais: “É evidente que a pedra aqui foi em inteiro liberta de seu peso material…Desmaterializar a pedra é espiritualizá-la”.86
    Não creio ser esse o efeito da luz Gótica. A pedra nunca dissolve-se por completo. Sob as lascas iridescentes do elã divino ela adquire outro tom, mais espectral, mas jamais desnuda-se da matéria. Como também o faz a nossa carne. O mortal em júbilo jamais desabita o corpo. Se o pudesse, faria. Ascenderia como o fez Cristo, seguiria a moção da própria arquitetura e nela levitaria num uníssono sem fim, rompendo o telhado, em alturas onde mortal algum chegou. Mas ele não pode. Sem um corpo ele deixa de ser humano, e a transcendência não é o transmutar em outra existência, mas justo o encontro da humanidade dentro. Não à toa há labirintos nos pisos das Catedrais, simbolizando a jornada meditativa que o Eu empreende para dentro de si, onde há luz. O labirinto não é caminho em espiral pois em diversos momentos o sujeito tangencia o dentro e depois afasta-se dele, num fluxo oscilante à semelhança de nossas naturezas que sob a luz divina tremulam no anseio de síntese. Até que ela ocorre, enfim. O sujeito chega ao centro, onde há desenhada uma rosa de seis pétalas, segundo Panofsky uma forma centrípeta “cujas extremidades apontam para dentro”.87 No momento Sublime o Eu cai em si para numa tomada de consciência encontrar o caminho da dissolução ao todo, mas tal esplêndido momento é senão curto hiato logo perdido, e também o sujeito deve retirar-se do labirinto pelo mesmo caminho de ida, e enfim regressar à vida. O espaço da catedral abre corredores em nós e por ali acercamos o infinito. Em simultâneo dentro e fora, a natureza ao redor converge no íntimo do Eu, como também acreditavam românticos como Fichte ou Schelling.
    E assim talvez o fiel entenda que a luz não apenas desce à pedra mas também nasce dela, monstrando-lhe um caminho que ela nunca poderá percorrer. Assim como nós, a catedral mantém-se no tênue limiar. Da cripta à torre, da terra ao céu, da pedra à luz, dos monstros aos santos, da “poeira da terra” ao “alento da vida” há nela uma espessura que aciona mas também contorna a moção do Sublime. Ela busca explodir acima mas apenas alcança certa altura. E quando olhos conseguem, mesmo sob o banho de luz, discernir os contornos da arquitetura, ela é como a Torre de Babel colapsando do alto de seu desejo. Toda catedral Gótica é ruína pois segundo Goethe é sua “incompletude que nos recorda da insuficiência humana na tentativa do colossal”.88 Tudo o que temos são os mais belos fracassos. Filhos de Ícaro, a altura nos é tóxica. Mas é o espaço invencível entre nós e a terra prometida que mantém-nos no Sublime drama de sermos quem somos. É pela falha que a luz adentra e no fundo do Eu descobrimos o que sempre esteve ali, oculto. Não conseguimos transcender o mundo das coisas mas através das coisas conseguimos transcender-nos. Suger entendeu o meio-termo. Em linda passagem escreve o que sente em sua Basílica de Saint-Denis: afasto-me “de todas as preocupações externas, e valiosa meditação me induz a refletir, transferindo aquilo que é material àquilo que é imaterial, à diversidade das virtudes sagradas: e então parece que estou a habitar uma estranha região que nem existe em inteiro no lodo da terra nem em inteiro na pureza do Firmamento”.89 Também nas portas da Basílica o abade escreveu, ao lado da Ascensão de Cristo, um pequeno poema: “a estúpida mente ascende à verdade através daquilo que é tangível e, ao ver tal luz, ressuscita-se de sua antiga asfixia”.  



Na Renascença o pensar e o fazer separam-se e o advento do arquiteto teórico é senão uma na série de mudanças que viriam a apartar o artesão do intelectual. Mas se no humano alarga o conflito entre espírito e corpo, a sociedade da qual faz parte estará também cindida entre operários e burgueses. O apreço e resgate da herança Gótica não é de mais valia somente aos românticos alemães e ingleses mas também à todos por eles influenciados. A filosofia estética de figuras como John Ruskin será guia a artistas da virada ao século vinte. Desde William Morris e seu Arts and Crafts até Gropius e a Bauhaus haverão nítidas alusões às catedrais, sua ânsia espiritual e suas qualidades expressivas. Pois delas tais artistas colherão a força necessária para seguir o confronto com a Revolução Industrial e a opressão do humano. À eles a catedral retornará, assombrosa, magnífica, terrível, sua silhueta por entre a névoa do tempo passado como as brumas de uma mente em oblívio. Mas já não só espaço de fé. Também símbolo secular.

NOTAS


1. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 107.
2. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 6.
3. RUSKIN, J., Renascença Grotesca In. As Pedras de Veneza, §XLIII.
4. A Bíblia, Livro do Apocalipse, 21:2.
5. Id., ibid., 21:14.
6. Id., ibid., 21:13.
7. Id., ibid., 21:19.
8. Id., ibid., 21:8.
9. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 3.
10. RUSKIN, J., A Natureza do Gótico In. As Pedras de Veneza, §XXVII.
11. PANOFSKY, E., Arquitetura Gótica e Escolástica, p. 5.
12. RUSKIN, J., A Natureza do Gótico In. As Pedras de Veneza, § XVI.
13. Id., ibid., §XXII.
14. Id., ibid., §XIII.
15. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 70.
16. Id., ibid., p. 115.
17. RUSKIN, J., A Natureza do Gótico In. As Pedras de Veneza, §LXII.
18. Id., ibid.,§LIX.
19. Id., ibid.,§LXVI.
20. Id., ibid.,§XLII.
21. Id., ibid.,§XLVI.
22. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 167.
23. RUSKIN, J., A Natureza do Gótico In. As Pedras de Veneza, §XLI.
24. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 6.
25. DE AQUINO, T., In. Erwin Panofsky, Arquitetura Gótica e Escolástica, p. 27.
26. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 166.
27. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 9.
28. PANOFSKY, E., Arquitetura Gótica e Escolástica, p. 3.
29. Id., ibid., p. 19.
30. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature. p. 8.
31. PANOFSKY, E., Arquitetura Gótica e Escolástica, p. 28.
32. Id., ibid.
33. Id., ibid., p. 29.
34. Id., ibid., p. 31.
35. GOETHE, J. W., On Gothic Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 10.
36. PANOFSKY, E., Arquitetura Gótica e Escolástica, p. 35.
37. Id., ibid., p.34.
38. Id., ibid.
39. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 4.
40. Id., ibid.
41. PANOFSKY, E., Arquitetura Gótica e Escolástica, p. 37.
42. Id., ibid., p. 42.
43. Id., ibid., p. 43.
44. RUSKIN, J., A Natureza do Gótico In. As Pedras de Veneza, §XXVIII e §XXXVII.
45 Id., ibid., §LXXII.
46. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 170-1.
47. Id., ibid., p. 79.
48. Id., ibid., p. 101.
49. Id., ibid., p. 171.
50. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 5.
51. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 167.
52. Id., ibid., p. 41.
53. Id., ibid., p. 42.
54. Id., ibid., p. 82.
55. NOVALIS In. O Romantismo, p. 287.
56. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 154.
57. Id., ibid., p. 64.
58. Id., ibid., p. 45.
59. GOETHE, J. W., On Gothic Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 14.
60. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 168.
61. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 6.
62. A Bíblia, Livro do Apocalipse, 21:3 e 21:22.
63. NOVALIS, Hinos à Noite, p. 23.
64. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 159.
65. Id., ibid.
66. Id., ibid., p. 173.
67. Id., ibid., p. 175.
68. Id., ibid.
69. PANOFSKY, E., Arquitetura Gótica e Escolástica, p. 10-1.
70. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 173.
71. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 10.
72. A Bíblia, Livro do Apocalipse, 21:11.
73. PANOFSKY, E., Abbot Suger on the Abbey Church of St. Denis and Its Art Treasures, p. 57.
74. Id., ibid., p. 73.
75. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 156.
76. Id., ibid., p.  152.
77. PANOFSKY, E., Abbot Suger on the Abbey Church of St. Denis and Its Art Treasures, p. 127-8.
78. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 173.
79. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 3.
80. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 159.
81. A Bíblia, Livro do Apocalipse, 21:23.
82. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 6.
83. PANOFSKY, E., Abbot Suger on the Abbey Church of St. Denis and Its Art Treasures, p. 126.
84. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 159-60.
85. GOETHE, J. W., On German Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 8.
86. WORRINGER, W., A Arte Gótica, p. 106.
87. PANOFSKY, E., Arquitetura Gótica e Escolástica, p. 52.
88. GOETHE, J. W., On Gothic Architecture In. Collected Works: Essays on Art and Literature, p. 12.
89. PANOFSKY, E., Abbot Suger on the Abbey Church of St. Denis and Its Art Treasures, p. 65.











































Esculturas na fachada da Catedral de Chartres.

Grotesco na fachada de Chartres.


































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