O Meio-tom da Iconsciência


Longe destes miasmas mórbidos
Torna-te puro em atmosfera mais alta.
Charles Baudelaire1

Tudo que é bom no mundo vem de dentro e portanto lhe vem de fora, mas só relampeja através.
Novalis2

Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos — a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios-tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos.
Fernando Pessoa3



Thomas Chatterton suicidou-se em seu pequeno sótão. Numa vida sufocada em banalidades nunca descobriu-se mas veio a conhecer a boca da letargia que o engoliu. No momento da morte sua vista falhava. Via tudo incompleto e nas lacunas ele podia expandir-se oceânico. Sonhou ser um ilustre imperador que sob o jugo de seu cetro unificou todos os povos do mundo. A titânica extensão de seu império lhe escapava o entendimento. E súbito seus olhos encurtaram nas paredes do quarto, o frágil corpo trêmulo e a alma escorrendo para outro lugar. E em morte descobriu jamais ter vivido, toda a sua vida um sonho sob portas fechadas. Alienado de si, quase não soube qual dos suspiros foi o último. Morrer foi como acordar.

I

De um ponto solto em meio ao vácuo explodiu o vômito de vida. Inumeráveis feixes de potência consumindo-se num frenesi galático em estágios fazendo emergir o todo. Primeiro o tempo e o espaço, a luz e a gravidade, os átomos e os astros, a geologia e os oceanos, a fauna e flora. A natureza compreende em seu dorso tudo o que há. Por suas veias corre a seiva da existência e em seus meandros coagula-se em vertiginosos seres a vontade de viver, a força surda e inconcebível que previne o universo de sucumbir. E no entanto a própria natureza desconhece-se. Inconsciente de si, necessitou encontrar algum caminho ao auto-conhecimento. Condensando tal desejo ela então atingiu o ápice de sua capacidade criadora: a mente humana.
    Para Friedrich Schelling, filósofo romântico da virada ao século dezoito, a consciência humana é o pináculo existencial da natureza, seu maior produto, sua mais fértil criação. Não à toa batiza a Natureza de pré-história da consciência. Apenas através da mente consegue a natureza observar-se. O humano é criatura limítrofe e solitária na existência pois dotada não só de corpo mas de espírito. Afasta-se do todo e volta-se à ele para de fora testemunhá-lo. Faz-se sujeito a observar a natureza, o objeto. Segundo Schelling, somos nós a autoconsciência planetária. “A Natureza deve ser o Espírito feito visível, o Espírito a Natureza Invisível”.4 De certa maneira Schelling visa superar Kant pois emancipa a natureza do estatuto de representação humano, imbuindo-a de concretude real.
    Mas não basta abrir os olhos e testemunhar os arredores. É preciso conjurar experiência de ordem mais profunda. Há um monismo na filosofia romântica que entende a existência física como fragmentária. Tudo o que há são lascas de uma dimensão anterior, superior, onde tudo é uno e não há nem contornos nem vazio pois tudo partilha da infinitude. O Absoluto. A natureza que não tarda em manifestar-se múltipla quer apenas regressar à unidade. O humano é filho da natureza portanto em seu espírito lateja o mesmo passado e o mesmo anseio. Há essa simbiose pois em ambos há o Absoluto, permitindo ao Eu voltar a si e ali fechar o ciclo de desunião e redimir a existência. “A história como um todo”, escreve Schelling, “é uma revelação progressiva e auto-revelatória do Absoluto”.5 É preciso traçar nessa estranha topologia duplo curso, em simultâneo externo e interno: lança-se ao mundo ao passo que mergulha em si, sintetizando ambos os campos da criação, ascendendo tudo ao infinito. Tal íntima vereda abre-se mediante não à lógica, mas à Intuição Estética. Influenciada por Kant, essa Metafísica Estética é o tônus do Romantismo. E aquele versado na sutil arte de fechar os olhos pode quase escutar os fiapos da tessitura planetária correndo-lhe o íntimo. Somos nós os olhos da natureza e no entanto vemos melhor de olhos fechados.
    Esse culto romântico à interioridade foi herdado sobretudo de Jean-Jacques Rousseau. À Gerd Bornheim em seu Filosofia do Romantismo, “essa interiorização da natureza permite, segundo Rousseau, um mergulho na própria interioridade humana, um alargamento da humanidade do homem” levando-o a uma espécie de volúpia cósmica.6 Numa das cartas enviadas à seu confidant Malesherbes, Rousseau relata-lhe uma experiência similar à abordada por Schelling. “Da superfície da terra elevava as minhas ideias a todos os seres da natureza, ao sistema universal das coisas, ao ser incompreensível que abarca tudo. Então, perdido no espírito dessa imensidão, não pensava, não raciocinava; não filosofava, Sentia-me — sentia-me com uma espécie de voluptuosidade; oprimido com o peso deste universo, abandonava-me com arrebato à construção dessas grandes ideias. Amava perder-me com a imaginação no espaço. Sufocava-me com o universo e gostaria de lançar-me ao infinito”.7
    E então o romântico fecha os olhos. Seu corpo é casa onde dorme o Absoluto. O todo há enfim de conhecer-se. Todas as voltas da vida desde os primórdios ensaiando esse momento.
    E nada ele vê.
    Em seu interior há uma grande fenda impedindo-o de se conhecer, rompendo sua natureza interior e inibindo sua ascensão ao Absoluto. Foi a cidade e sua mentalidade burguesa que o cindiram. Entre brutas arquiteturas orvalhadas pelo suor da mecânica perfomance dos trabalhadores, foi-lhe usurpado o sentido existencial de uma vida autêntica, furtado foi o convívio com a natureza. Alienado de si e sentindo sua fissura alargar, o romântico sufoca. De sua janela ele vê covardes caminhando as ruas com suas mentes saturadas de banalidades numa auto-hipnose de não ver, cavando lapsos na outrora farta memória do hominídeo, agora esquecido de facear o céu e ponderar sua pequenez. Ao romântico a vida comum é farsesca. Seus dogmas não são verdades mas convenções que educam-nos em mentiras para manter os alicerces da ilusão. O Romantismo surge na Alemanha em fins do século dezoito como reação aos ideais clássicos do Iluminismo francês: a revolução industrial e a lógica científica, mas sobretudo a crença no poder da Verdade, à ordem racional dela derivada e do progresso aos que dela acercam-se. À época a Alemanha era região dilacerada por Napoleão e desprovida de grandes centros. Seu passado luterano deu luz ao pietismo, que estimulava o recolhimento íntimo e a meditação espiritual.
    “O caráter dos moradores da cidade se volta tantas vezes para mesquinharias, definhando e murchando, enquanto o sentido dos nômades permanece aberto e livre, como o firmamento sob o qual ele se encontra”.8 Creio ter sido Friedrich Schiller quem deu urgência e contorno ao pessimismo romântico com a cultura moderna que, “longe de nos por em liberdade, apenas desenvolve uma nova carência a cada força que forma em nós”.9 A Utilidade e o entendimento a tudo segmentam. “Rompeu-se a unidade interior da natureza humana e uma luta funesta separou as suas forças harmoniosas”.10 Voltados à matéria externa e não aos fluxos internos, expurgamos o encanto da existência. A mente fragmenta e o cansaço domina os humanos, agora incapazes sequer de sonhar. “Eternamente acorrentado a um pequeno fragmento do todo, o homem só pode formar-se enquanto fragmento”.11 E assim apaga-se a singularidade do indivíduo, impedindo-o de expressar o que há dentro. O romântico sentia-se como a borboleta de Goethe, que quando jovem via nas práticas científicas dos entomologistas o culto ao cadáver. Em redes removiam as borboletas do milagre da vida para piná-las no laboratório, tornando um lindo animal em carcaça inócua, desconhecendo-a. Pois quem não vê os golpes da luz sobre as asas da borboleta em vôo jamais conhecerá a sutil singularidade de sua existência num mundo onde é possível partilhar do êxtase de se estar vivo. Sob o pino de uma cultura rasa, o romântico sente sua vitalidade desvanecer e sua identidade rompendo.    
    Mas a cultura moderna não rompeu o humano. Sempre estivemos cindidos. Schiller ecoa Kant. Abrigamos no íntimo duas díspares condições: a sensível e a espiritual, que à Schiller formalizam-se em nosso íntimo como forças antagônicas: o Impulso Sensível é a força da sensibilidade e o Impulso Formal a força espiritual. O Impulso Sensível nos impele à concretude do mundo externo, onde vivemos seu tempo sucessivo. “Atuando somente por mero desejo, ele nada mais é que mundo…o mero conteúdo informe do tempo”.12 Somos finitos, singulares, passivos, presentes. Ele “acorrenta ao mundo sensível o espírito que se empenha mais alto, e faz voltar aos limites do presente a abstração que marcha livremente para o infinito”.13 Já o Impulso Formal nos impele à abstração do mundo interno, onde vivemos o tempo suspenso de nossas ideias. As marés do mundo não mais nos influenciam. O “Impulso Formal parte da existência absoluta do homem ou de sua natureza racional, e está empenhado em pô-lo em liberdade…afirmar sua pessoa em detrimento de toda alternância do estado”.14 Somos infinitos, ativos, eternos. O Impulso Sensível deixa-se atravessar pelo momento e na sua fugidia dimensão abriga-se, o Formal apanha o momento e espreme dele a eternidade. O Sensível internaliza no Eu o mundo, o Formal exterioriza o Eu ao mundo. O Sensível é necessidade fora de nós, o Formal é necessidade em nós. O Sensível está “demasiado baixo para o todo”, o Formal “demasiado alto para o individual”.15
    Ambos revezam-se na repressão do sujeito que deseja libertar-se. Ao estimulá-las a pólos opostos, a cultura moderna faz apenas alargar a ferida do Eu que se desconhece. Não à toa no Romantismo o inconsciente emerge. É preciso conhecê-lo. Johann Georg Hamann foi um dos primeiros grandes românticos. Após um despertar espiritual, passou a escrever que para conhecer a existência é preciso vivencia-la. Ao se aprofundar nas singularidades ao redor o humano cai também em si. A ciência e a lógica impõe suas categorias gerais à vida, abstraindo as coisas, equalizando o antes diverso e singular e portanto especial, e afastando o humano do mundo. E assim também o humano afasta-se de si e se aliena de seu destino, pois “só o conhecimento de nós mesmos, essa descida aos infernos, nos abre o caminho da divinação”, ele escreve.16 Um estranho ser somos nós. Limítrofe criatura, híbrido entre deuses e bichos, sem casa salvo a que deve, de alguma forma, construir para si. Como, pergunta Schiller, “reconstituiremos a unidade da natureza humana, suprimida por esta oposição originária e radical?”.17 Schiller não é asceta nem hedonista. Não acredita em reprimir impulsos. O humano é ente duplo e é em ambos os seus corações que bate o segredo de sua solitária existência. “Sem forma não há matéria, sem matéria não há forma”.18 Devemos procurar o ser absoluto pelo determinado e o determinado pelo absoluto. É através do corpo, não apesar dele, que o outrora cindido Eu alcança o espírito e unifica-se.    Assim como Schelling, para Schiller é na Experiência Estética que o Eu encontra tal estímulo, pois apenas nela o sujeito é estimulado por completo. “Todos os outros exercícios dão à mente uma aptidão particular, somente a estética o conduz ao ilimitado…nossa humanidade manifesta-se com pureza e integridade, como se não houvera sofrido ainda ruptura alguma pelas forças exteriores”.19 A experiência estética, mediante o que Schiller chama de Beleza, surgiria quando um determinado fenômeno estimula-nos a uma espécie de jogo na veloz “variação entre os dois princípios, em que ora domine a forma ora a realidade”.20 O câmbio é tamanho que leva-os a transbordarem entre si, tornando possível vislumbrar, na sincronia das camadas, lapsos de infinitude. Vemos o além na carne das coisas e a carne das coisas no além. Tal experiência não é linha ascensional mas círculo a girar, espiral em nosso espírito dissolvendo limites, fusionando naturezas, conjugando “ao impulso pela forma e pelo absoluto o impulso pela matéria e pelos limites”.21 E agora abre-se à nós uma janela de liberdade pois os dois senhores que se revezavam em nosso controle passam a suprimirem-se numa “disposição intermediária, em que a mente não é constrangida nem física nem moralmente, embora seja ativa dos dois modos”.22
    Uma janela apenas pois enquanto seres também físicos não nos é dado acessar a Beleza em toda a sua exuberância e imaterialidade, a Beleza Ideal, à Schiller o produto mais puro. Qualidade nem sensível nem formal, nem corpo nem ideia, nem objeto nem sujeito, ela apoia-se no “equilíbrio mais perfeito de realidade e forma. Este equilíbrio, contudo, permanece apenas uma Ideia, que jamais pode ser plenamente alcançada pela realidade”.23 Flutua nas etéreas dimensões do Absoluto. Podemos vivencia-la somente quando materializada na carne do mundo, apreensível pelos sentidos: a Beleza na Experiência. Em tudo o que acessamos há concretude, contorno a expulsar o infinito. Fadados à marginal existência entre o físico e o espiritual, sempre insurgiremos contra os impulsos através das fissuras libertárias que a experiência estética nos abre. O Eu luta contra o que julgava ser seu para em lapsos vislumbrar o oculto coração de sua pessoa. Dentro dele pulsam paisagens não de todo distintas das que envolvem seu corpo. Não será capaz de caminha-las. O Absoluto é o infinito por excelência, inesgotável. A síntese final é diligência nobre porém impossível. Essa inviabilidade lhe suscitará uma aguda nostalgia, uma letárgica melancolia de entender-se inacessível, de abrigar ausências. Mas ao menos sua breve experiência despertou-lhe para outras formas de viver, agora para sempre marcadas nas sinapses da memória.
    “É pela beleza que se vai à liberdade”, diz Schiller.24 É ela nossa “segunda criadora”.25 Voltamos ao estágio de mórula, de zero, pré-nascimento, pura potência, pois a “sensibilidade e razão são simultaneamente ativas e por isso mesmo suprimem mutuamente seu poder de determinação, alcançando uma negação mediante uma oposição. Essa disposição intermediária, em que a mente não é constrangida nem física nem moralmente, embora ativa em ambos os modos, merece o privilégio de ser chamada uma disposição livre”.26 E dessa disposição livre nasce um terceiro estágio, chamado por Schiller de Impulso Lúdico, síntese da união dialética entre ambos os impulsos primários e que inebria o espírito de uma ambiência anárquica. Num ensaio de liberdade, o Eu ergue-se coeso, autêntico, espontâneo. “Não consiste na exclusão de certas realidades, mas na inclusão absoluta de todas, não é limitação, mas infinitude”.27 Desnudo de dogmas sociais, da mentalidade burguesa, dos impulsos de sua carne, dos desejos de seu espírito, ele usufrui o néctar de uma nova existência onde, em simultâneo "no estado de repouso e movimento máximos”, surge "aquela maravilhosa comoção para a qual o entendimento não tem conceito e a linguagem não tem nome”.28
    Para Schiller a experiência estética pode ser suavizante ou enérgica. Creio serem as categorias do Belo e do Sublime. O Belo acalma o homem tenso desprovido de dedução abstrata. O Sublime energiza o homem apático de mente reflexiva. A experiência estética “assim reconduz, segundo sua natureza, o estado limitado ao absoluto, tornando o homem um todo perfeito em si mesmo”.29
    É a experiência do Sublime, espectro formador de seu tempo, que buscavam os letárgicos românticos. Cindidos pela modernidade, sofriam o mal du siécle: a desilusão do tedium vitae. Recolhidos em pequenos sótãos sonhavam em quebrar o relógio e respirar a doçura de um tempo em suspenso, onde pode-se cerrar os olhos, sorver o bálsamo de uma vida caída em si e sonhar. Às metrópoles é impedido o acesso a tais reinos de encanto mas não à arte. Através do Sublime ele há de explorar-se sob outra ordem de estímulos estéticos.

Qualquer a sua missão, a brisa suave pode vir
a nenhum mais grato que eu; escapado
da vasta cidade, onde eu há muito sofri
um peregrino descontente: agora livre,
livre qual um pássaro para assentar-me onde quiser.
William Wordsworth30

II

Caso se fique muito perto, o olho necessita de algum tempo para completar a apreensão, desde a base até o topo; e as primeiras partes sempre desaparecem parcialmente antes que a imaginação tenha captado as últimas, de modo que a compreensão nunca é completa. O mesmo pode servir para explicar a estupefação, ou um certo tipo de embaraço, que, segundo se conta, abate o espectador quando ele entra pela primeira vez na Igreja de São Pedro em Roma.
Immanuel Kant31

Filho do homem,
Não podes dizer, ou supor, pois sabes apenas
Uma pilha de imagens partidas
T. S. Eliot32

Os que anseiam vislumbrar o infinito podem apenas colher lascas. Não à toa há uma qualidade lacunar em muitas obras de arte românticas. O gênio romântico “não se prende às aparências, mas através delas atinge as coisas em si, as Ideias presentes na mente divina [da Natureza], revelando-as na obra de arte como testemunho do Absoluto”, escreve Bornheim.33 Tal arte transcende o dualismo sujeito-objeto pois visa acessar o que há de comum a ambos: o Absoluto. Segundo John Ruskin, romântico vitoriano, tais artistas seriam gênios clarividentes de técnica precisa, de “imaginação vigorosa e entusiasmo fiel”, capazes de invocar o infinito.34 "Treinado à perfeição, sua mente calma, consistente e poderosa, a visão que vem à ele é vista em espelho perfeito, sereno, e em consistência com os poderes racionais”.35 Domina sua arte e não deixa-se levar pela deriva de “humores repentinos e ataques de fantasia errática”.36 Ao dormir, flutua em “sonhos divinos…o profundo, vivo sonho que Deus envia, com uma sacralidade nele, como na morte, a reveladora de segredos”.37 Tal artista, filho digno de Hermes morador das margens, pautará muito do que Ruskin considera ser a grande arte capaz da Contemplação Sombria. Lembro-me do furor de Michelangelo: o artista orvalhado pelo sopro divino, impelido ao labor. Não à toa Ruskin menciona-o como artista do Sublime, nomeador do inominável. Não trata-se de invenção: a imaginação, grande faculdade do gênio, não é sinônimo de criatividade para Ruskin, mas sim prática de apreender e representar a “profunda verdade”.38
    Nas pinturas do romântico alemão Caspar David Friedrich costuma haver uma amplitude insondável contemplada por figura solitária. Por detrás da atmosfera turva pode-se entrever trechos de edifícios, estruturas de silhueta lacunar cuja imagem total não é possível reter. Por vezes ruínas cujas ausências tornam seu tamanho incontornável senão pela potência da imaginação. “O valor estético da ruína combina a desarmonia, o eterno devir da alma em luta consigo, com a satisfação da forma, a firme circunscrição da obra de arte”, escreve Georg Simmel.39 Quando não ruínas, talvez enormes catedrais Góticas, monstros fantasmais flutuando na neblina. Como em sua Paisagem Invernal com Igreja, onde há uma analogia formal entre um pinheiro e as brumosas torres da catedral, quem sabe aludindo à relação metafísico-estética entre as coisas do mundo, a expressão humana e o divino.“A pintura de Friedrich corresponde”, escreve Robert Rosenblum já no século vinte, “de súbito a uma experiência familiar ao espectador do mundo moderno na qual o indivíduo é confrontado pela imensidão esmagadora e incompreensível do universo, como se os mistérios da religião tivessem deixado os rituais da igreja e sinagoga e fossem realocados no mundo natural. Há quase a qualidade de uma confissão, onde o artista…explora sua relação com os grandes desconhecidos, transmitido através das humilhantes infinitudes da natureza”.40
    Em suas obras, assim como em J.M.W Turner, há uma busca à abstração pois apenas ela é capaz de aludir o infinito ao invés de contorná-lo em figuras ou símbolos. “Mestres como Friedrich e Turner podiam projetar uma aura de mistério que começava a caminhar em reinos sobrenaturais”, escreve Rosenblum.41 O Sublime alinha-se à iconoclastia. A Razão Kantiana maneja o pincel. Tensiona-se as faculdades mentais, pois a abstração nega ao Entendimento a aplicação de seus conceitos, levando a mente ao Julgamento Estético-Reflexivo e portanto à Imaginação Produtiva. Mas que não pode ser expressado não impede o gesto expressivo. Estimula-o. O mesmo anseio de expressar o inexprimível domina tanto o artista quanto o espectador, que esforça-se para contornar a vastidão quase abstrata de suas pinturas. A tensão ao tentar tocar a face do infinito através da finitude, ao invocar o tempo eterno através de instantes. Pois aos românticos a natureza não segue lógica inteligível. É antes entidade fluida e imprevisível. Como pode o sujeito reter algo que não cessa de alterar-se e cujos ciclos são demasiado amplos para as elipses de sua mente? Tudo é mero vislumbre ao escorrer-nos os dedos. Pois nada é. Tudo está sendo. Incluso os cursos de nosso íntimo. E o que será é insondável pois os caminhos do universo são ilegíveis à nós, analfabetos existenciais. Tal angústia romântica simboliza-se na Rosa Azul de Novalis. Flor quimérica cujas pétalas, quando tocadas, nos dispersam no Absoluto. Momento impossível. Mas o que resta-nos senão as diligências absurdas? E o artista segue a busca. A esfinge em seu espírito é invencível mas é preciso tentar expressá-la. O que resta é mais um passo. A virtude de seguir quando tudo ao redor é inviável, sem vitória, sem chegada, sem alívio. Apenas assim ele conseguirá, quem sabe, segurar lascas de sua própria existência. O calmo contemplar é à eles sinônimo da morte pois somente ao alinhar-se à volúpia pode o artista buscar expressá-la. Sobretudo Turner acentua esse elusivo instante do presente liquidado entre passado e futuro.
    Ao contrário de Schiller, Kant não creditava à arte acesso à experiência do Sublime. Via-o presente no contato com a natureza. Mas na arquitetura, creio, é possível explorar ambos em seus próprios termos: tanto o Sublime Artístico de Schiller quanto o Sublime Matemático-Natural de Kant.
    De todas as artes a arquitetura é a que mais atua na carne do planeta. Ela modula a relação do sujeito com a existência ao redor, engajando seu corpo e fazendo do outrora mero espectador um habitante. Envolto nos cômodos onde se passa grande parte da epopéia humana, ele notará que a estética dos ambientes inebria seu espírito, despertando-lhe certos afetos. Amparo e desamparo em simultâneo, talvez. Pois o artefato construído atua no limiar entre o espaço interno e o mundo aberto de uma forma não de todo alheia às relações entre o íntimo do indivíduo e as externalidades afora. Pode portanto conduzir o sujeito, como diria Hamann, ao auto-conhecimento. Na arquitetura manipula-se as intempéries, os elementos. Seja no lugar onde suas obras situam-se ou nas vistas enquadradas de suas aberturas — talvez grandes fenômenos à distância segura — seja no manuseio não só de pedra, barro, madeira, ferro, vidro mas também de luz, espaço, silêncio, vento, umidade, temperatura, criando assim uma ambiência propícia aos grandes sentimentos. Mas no Sublime é preciso mais: a presença de uma ausência, de algo que é intangível e capaz de acionar o que é intangível em nós.
    Schiller aborda as obras de Virgílio, Homero, Ossian, Shakespeare, Tácito. Através do uso de artifícios como o silêncio, o vazio, a solidão, tais autores conjuram entidades que “despertam um sentimento de terror ou ao menos intensificam tal impressão”42 sem perder-lhes a potência pois indefinidas sob a névoa do mistério e do oculto. A boa arte do Sublime sabe habitar o meio termo entre o concreto e o abstrato. Ao invés de apenas aludir ao imensurável em palavras, na arquitetura é possível invoca-lo como qualidade ambiental e no entanto mantê-lo ausência. Alarga-se o limite entre o mensurável e o imensurável, tornando-o espessura passível de habitar. Entre o corpóreo o abstrato, entre mortais e deuses, entre arte e natureza, entre ficção e realidade, entre amparo e desamparo. O ambiente colhe o que lhe convir de ambos, sintetizando-os em amálgama semelhante ao jogo estético de Schiller. Vejo na arquitetura o veículo exemplar da educação estética, da ascensão espiritual do sujeito.
    A arquitetura do Sublime simula transcender os limites físicos, como fazem os fenômenos incompletos do Sublime Matemático de Kant. Nessa imensidão Sublime há medo. A mente, no desejo de preencher as lacunas, “entrega-se ao voluntário jogo da fantasia”. O indefinido “fornece à faculdade da imaginação um espaço livre de jogo e tensiona a expectativa de algo temível que está por vir”.43 Se o Sublime Contemplativo de Schiller é a auto-ficção estimulada, então ao moldar a atmosfera da vida humana a arquitetura atinge-lhe o ápice: conduz afetos para expandir a consciência de seus habitantes.
    Mas há muito mais que medo nessa experiência. Há sobretudo o êxtase de perder-se no infinito. Frente à vastidão e ilimitude ficamos, segundo Burke, “encolhidos à pequenez de nossa própria natureza e somos de certa forma aniquilados”.44 Pois “aos olhos, não sendo capazes de perceber os limites de muitas coisas, elas parecem infinitas e produzem os mesmos efeitos que produziriam se fossem realmente infinitas”. Segundo ele há dois conceitos que “constituem o infinito artificial”: a Sucessão e a Uniformidade.45 Quando combinados, ambos criam um padrão que a mente julga estender-se ininterrupto ao eterno. Muitos dos templos pagãos da antiguidade, com suas formas oblongas e grupos de pilares, assumiam tal atmosfera. “Podemos também derivar o efeito grandioso dos corredores de muitas de nossas antigas catedrais”.46 No entanto a Vastidão deve ser bem trabalhada mediante sua Magnitude. Burke alerta que “os projetos que são vastos apenas por suas dimensões são sempre sinal de uma imaginação comum e medíocre. Nenhuma obra de arte é grande, exceto quando produz ilusões”.47 Há também o que Burke chama de Magnificência, onde a aparente desordem contribui a uma “riqueza e profusão de imagens que deixam a mente tão deslumbrada”.48 A arquitetura pode estimular nossa cognição a apreender o que não está lá, suspendendo o Entendimento e libertando a Imaginação que, sob o desígnio da Razão, assumirá pavorosa e encantadora potência.
    Enquanto Burke escrevia sobre a experiência estética, Étienne-Louis Boullée desenhava seus Cenotáfios. Imensas estruturas que não à toa eram templos fúnebres: espaços liminais entre vida e morte, corpo e espírito, o aqui e o além. Seu Cenotáfio de Newton é espaço escultórico pois imensa esfera fechada aludindo talvez ao espaço clássico do Panteão. Em seu desenho há uma sensação de equilíbrio e repouso, de contorno e completude. O círculo é figura que conduz o olhar de volta ao início. E todavia há nele o emprego da escuridão e amplitude que turvam os limites do ambiente, tornando-o infinito. Não à toa também é uma ode à Isaac Newton, que no século dezessete provou mediante a matemática que os mesmos teoremas explicam o fruto rompido do galho e os arcos planetários. Mortais e deuses abrigados sob o mesmo cosmos e sujeitos às mesmas leis, qual espectadores e estrelas sob o domo de Boullée.
    Nas gravuras de Giovanni Battista Piranesi acentua-se o senso de incompletude. Suas ruínas evocam enormes monumentos de um passado remoto e glorioso porém incapaz de resistir à soberania do tempo. Decerto influenciaram os românticos. “Nada mais resta. Ao redor a decadência do destroço colossal, sem limite e vazio”, haveria de escrever Percy Shelley.49 Já no retrato de edifícios completos Piranesi cortava-lhes o corpo pelo enquadramento ou cobria-lhes certas partes com outras arquiteturas para simular infinitude. Assumimos a posição de um sujeito ao aproximar-se do gigante. Em suas vistas de espaços internos não raro o ambiente prolonga-se eterno seja pelo enquadramento curto ou por uma perspectiva infindável. Em seus carceri d’invenzione escadas, imensos corredores e salões desdobram-se num fluxo incessante ao além margem, compondo um dédalo que o espectador visita não com os olhos mas com a mente. Seu tamanho total torna-se a escala do imaginar. E se a própria faculdade da Imaginação Ativa em Kant, através do Juízo Estético-Reflexivo, compõe novas imagens através de retalhos de memórias, então talvez as gravuras de Piranesi lhe sejam análogas pois compõe cenas fantásticas mediante estruturas existentes de Roma.   
    Mas antes de todos esses houve as catedrais Góticas. Nelas a nostalgia romântica viu o símbolo estético-filosófico de uma outra sorte de existência. Nas catedrais o espaço não é escultórico mas um fluxo ascensional desprovido de contorno sempre em busca do infinito. Ali há a presença latente do intangível, mas como culto não à penumbra e sim à luz. Edmund Burke alude em seu livro à “uma luz que, exatamente por seu excesso, transforma-se numa espécie de escuridão”. Vemos na luz uma delineadora mas o banho de luz é capaz de cegar. Ele turva os limites das coisas, removendo-as da coerção do corpo e dissolvendo a tudo sob o abraço do éter. Em vislumbres, a infinitude. “A extrema luminosidade…destrói todos os objetos, e assim assemelha-se à escuridão em seus efeitos”. E portanto “apesar da natureza oposta de ambas, elas são levadas a coincidir em sua produção do Sublime”.50

NOTAS


1. BAUDELAIRE, C., Spleen e Ideal, Enlevo. In. As Flores do Mal, p. 37. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Versão Original: Envole-toi bien loin de ces miasmes morbides; / Va te purifier dans l’air supérieur.
2. NOVALIS, Pólen: fragmentos, diálogos, monólogos, fragmento 2.
3. PESSOA, F., Livro do Desassossego, aforismo 196, p. 205.
4. SCHELLING, F., Ideas for a Philosophy of Nature, p. 42.
5. Id., System of Transcendental Idealism, p. 211.
6. BORNHEIM, G., Filosofia do Romantismo, In. O Romantismo, p. 81.
7 .ROUSSEAU, J. J., Terceira carta a Malesherbes, In. Filosofia do Romantismo, p. 81.
8. SCHILLER, F., Sobre o Sublime, In. Do Sublime ao Trágico, p. 66.
9. Id., A Educação Estética do Homem, p. 34.
10. Id., ibid., p. 36.
11. Id., ibid., p. 37.
12. Id., ibid., p. 57.
13. Id., ibid., p. 60.
14. Id., ibid.
15. Id., ibid., p. 39.
16. HAMANN, J. G., In. Filosofia do Romantismo, p. 82.
17. SCHILLER, F., A Educação Estética do Homem, p. 63.
18. Id., ibid., p. 63, nota.
19. Id., ibid., p. 105.
20. Id., ibid., p. 79.
21. Id., ibid., p. 93.
22. Id., ibid., p. 98.
23. Id., ibid., p. 79.
24. Id., ibid., p. 24.
25. Id., ibid., p. 102.
26. Id., ibid., p. 98.
27. Id., ibid., p. 88.
28. Id., ibid., p. 77.
29. Id., ibid., p. 83.
30. WORDSWORTH, W., The Prelude: Book First: Childhood and School-time. Tradução do autor. Versão Original: whate’er its mission, the soft breeze can come / to none more grateful than me; escaped / from the vast city, where i long had pined / a discontented sojourner: now free, / free as a bird to settle where i will.
31. KANT, I., Crítica da Faculdade de Julgar, 252.
32. ELIOT, T. S., O Enterro dos Mortos In. A Terra Devastada. Tradução do Autor. Versão Original: Son of man, / You cannot say, or guess, for you know only / A heap of broken images
33. BORNHEIM, G., Filosofia do Romantismo, In. O Romantismo, p. 104.
34. RUSKIN, J., Renascença Grotesca In. As Pedras de Veneza, §LXIV.
35. Id., ibid., §LX.
36. Id., ibid., §XLIX.
37. Id., ibid., §LX.
38. Id., ibid., §LI.
39. SIMMEL, G., In. Melancolia e Arquitetura, p. 43-4.
40. ROSENBLUM, R., Modern Painting and the Northern Romantic Tradition, p. 14.
41. Id., ibid., p. 20.
42. SCHILLER, F., Do Sublime In. Do Sublime ao Trágico, p. 44.
43. Id., ibid., p. 44.
44. BURKE, E., Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias do Sublime e da Beleza, p. 75.
45. Id., ibid., p. 79-0.
46. Id., ibid., p. 81.
47. Id., ibid., p. 82.
48. Id., ibid., p. 84.
49. SHELLEY, P., Ozymandias, In. The Complete Poetry of Percy Bysshe Shelley: Volume Three, p. 326. Tra- dução do autor. Versão Original: Nothing beside remains. Round the decay / Of that colossal Wreck, boundless and bare.
50. BURKE, E., Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e da Beleza, p. 85-7.





















































































































































































































































































































































Paisagem Invernal com Igreja,
Caspar David Friedrich.







Tempestade de Neve: Barco à Vapor na Boca do Porto,
J. M. W. Turner.












































































































Cenotáfio de Newton,
Étienne-Louis Boullée.












Carceri d’Invenzione,
Piranesi.




Interior da Catedral de Colônia.


Mark

FICÇÃO

    CONTOS
        O Subsolo
        A Casa de Nero
        De Lábios Fechados
        Coluna de Ashoka


    VIGNETTES


    AS VIDAS DOS FILÓSOFOS


NÃO-FICÇÃO

    NO ETERNO INSTANTE:
    ESTUDOS DO        
    SUBLIME

        I. A Solidão de Netuno
        II. A Sombra da Torre Invisível
        III. O Meio-tom da Inconsciência
        IV. O Peso da Luz
        V. A Mente das Mãos
        VI. O Templo sem Deus


    ENSAIOS
        Prole de Ícaro

        Zócalo
        o muro como habitar


    FRAGMENTOS


    CRÍTICA

TRADUÇÕES


    Do Not Go Gentle Into That
Goodnight, Dylan Thomas


CURSOS
SERVIÇOS
INFO/SOBRE

Mark