The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intentto be lost that their loss is no disaster.
Elizabeth Bishop1

A linguagem fez-nos perceber, de for-ma inconfundível, como a memória não é um instrumento, mas um meio, para a exploração do passado. É o meio através do qual chegamos ao vivido, do mesmo modo que a terra é o meio no qual estão soterradas as cidades an-tigas. Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de se comportar como um homem que escava. Fundamental é que ele não receie regressar repetidas vezes à mesma matéria– espalhá-la, tal como se espa-lha terra, revolvê-la, tal como se revol-ve o solo. Porque essas “matérias” mais não são do que estratos dos quais só a mais cuidadosa investigação consegue extrair aquelas coisas que justificam o esforço da escavação. Falo das imagens que, arrancadas de todos os seus contextos anteriores, estão agora expostas, como preciosidades, nos aposentos só-brios da nossa visão posterior – como torsos na galeria do colecionador.
Walter Benjamin2

In dearth or in excess
Both the slave and the empress
Will return to the dirt, I guess
Naked as when they came.

Fleet Foxes3


a. nasce/morre um gigante

Das coisas jogadas ao acaso, a mais bela, o cosmo.
Heráclito4

E o silêncio se rompeu. Pás e picaretas costuravam o solo, e arados reviravam em linhas a terra. Uma série de carriolas levava e trazia rochas de todos os tipos e tamanhos para aquele caos pré-industrial. Igrejas não são de simples construção, e, por isso, invenções engenhosas e arcaicas - como rodas grandes o bastante para abrigarem um homem - giravam através dos cuidadosos passos de um espanhol qualquer, levantando assim grandes quantidades de rochas para alturas antes fora do alcance de um ser humano comum. Não muito longe dali, fornalhas também compunham a paisagem, com seus massivos e pesados corpos. Esses seres estáticos criavam toda sorte de estruturas e vidros, que combinados com metais como cobalto, cobre e selênio, davam vida à tons coloridos, que mais tarde orquestrariam desenhos que contam histórias católicas a uma população essencialmente analfabeta. Pessoas cobertas de sujeira se movimentavam agilmente em meio àquele dinâmico e confuso não-lugar, o que fez aquelas máquinas pesadas parecerem ainda mais brutas do que já eram. No pó que subia do mover das ferramentas e dos pés apressados que raspavam o chão residia a promessa de acontecimentos que ainda estavam por vir. Ou, talvez, esse mesmo pó carregasse consigo a memória destrutiva de acontecimentos passados, que com o passar dos anos se transformariam em poeira, deitariam no solo, seriam cobertos e permaneceriam esquecidos.
    Paisagens confusas - ou não-paisagens? - como essa possuem um fim: o que agora é apenas um punhado de rochas sobrepostas em paredes solitárias se tornará, enfim, um gigante. Um gigante com presença absoluta na paisagem, com salas e corredores, escadas e jardins. Verdadeiras entranhas por onde se anda e habita o ser humano, eterno parasita criador de sua casa. Risos e choros ecoarão pelas paredes e cânticos vibrarão o piso que se estica para dar suporte. Crianças desavisadas romperão mais de uma vez os silêncios mais densos e tropeçarão nos degraus das escadas, ainda muito altos para suas pequenas pernas. Esse lugar será um leito fértil para a vida humana - ou será que já foi? Talvez, o que esse terreno espera, depois de máquinas e operários, seja décadas do mais completo e incorruptível vazio, um silêncio onde uma vez habitou uma casa e o seu povo.
    Seres humanos são criaturas dinâmicas. Quando eu era criança, pensava como criança e agia como criança. Meu corpo era pequeno e desengonçado. Hoje, me vejo no espelho e não reconheço mais a face da criança que uma vez fui - pelo menos não imediatamente. Sou uma metamorfose constante, dinâmica e ágil. Em algumas décadas, meu corpo estará imerso no chão que agora toca apenas os meus pés e alimentarei a terra que hoje me alimenta. O indivíduo humano é apenas um sopro breve e curto na temporalidade do mundo. Somos fugazes. A natureza não parece ter mudado desde o começo da minha existência. Nossos corpos não nos deixam viver o bastante para percebermos os movimentos do mundo - tudo parece sempre estar imerso em uma latência perpétua.
    Mas igrejas são diferentes de pessoas. Enquanto nossos corpos são compostos de carne e sangue, os corpos da arquitetura se materializam mais brutalmente: rochas, madeiras, metais de todo o tipo. Alvenaria e vidros, terra e plásticos. Materiais mais estáticos, que suportam melhor do que nós a chuva, a insolação, os ventos; o tempo. A sedimentação do corpo-arquitetura é mais lenta do que a sedimentação do corpo-humano. Seres como as casas, as árvores, os rios, o relevo e as montanhas, o mundo, o sol e as estrelas estão em constante movimentação, em eterna sedimentação. A estaticidade não faz parte da natureza. 
    Corpos diferentes possuem durações diferentes: vivenciam a passagem do tempo de maneiras e em ritmos divergentes entre si. E, talvez, quanto mais dinâmico for o metabolismo do ser em questão, mais curta será a sua existência. A natureza possui maneiras engenhosas de se preservar através de um estado constante de não-ação, e sincronicidade. A gigante montanha, por exemplo, não exerce, por si, nenhum tipo de movimento. Todas as suas movimentações são impostas através dos fenômenos intangíveis da natureza, como o vento, a luz, a chuva. A sua essência é da ordem da passividade, e é assim que ela encontra um meio para fazer perpetuar o seu corpo no tempo longo do mundo. A chave para uma vida longa. Tão longa que o seus movimentos se tornam imperceptíveis para uma existência tão efêmera quanto a de uma pessoa. Ao se olhar a montanha, a percepção humana a entende como estática, o que não condiz com a realidade.Corpos diferentes possuem durações diferentes: vivenciam a passagem do tempo de maneiras e em ritmos divergentes entre si. E, talvez, quanto mais dinâmico for o metabolismo do ser em questão, mais curta será a sua existência. A natureza possui maneiras engenhosas de se preservar através de um estado constante de não-ação, e sincronicidade. A gigante montanha, por exemplo, não exerce, por si, nenhum tipo de movimento. Todas as suas movimentações são impostas através dos fenômenos intangíveis da natureza, como o vento, a luz, a chuva. A sua essência é da ordem da passividade, e é assim que ela encontra um meio para fazer perpetuar o seu corpo no tempo longo do mundo. A chave para uma vida longa. Tão longa que o seus movimentos se tornam imperceptíveis para uma existência tão efêmera quanto a de uma pessoa. Ao se olhar a montanha, a percepção humana a entende como estática, o que não condiz com a realidade.
    O corpo-Catedral Metropolitana possui uma duração temporal muito maior do que a dos espanhóis que a construíram. Ainda assim, continuamos a medir o tempo tendo como base a sedimentação da nossa própria existência, a duração do corpo humano.

b. o templo

Um homem olha o calendário. Um disco de pedra, com todo o tipo de desenhos e símbolos esculpidos em si. Ele massageia o seu relevo com as pontas dos dedos. O calendário asteca não era linear como o dos europeus. A cada 52 anos, uma grande celebração ritualística marcava o fim de um ciclo e o começo de outro. Essa forma cíclica de se perceber o tempo transbordava para fora dos limites do calendário e envolvia uma série de práticas culturais desse povo. E o tlatoani - o “governante” do império asteca - Montezuma sabia disso como poucos. A sua festa de posse se aproximava, e um novo templo seria construído para a ocasião. Era uma prática comum aos governantes astecas construir novos templos que significassem a ampliação do seu próspero império - centralizado na cidade de Tenochtitlán -, e que mantivessem uma boa relação com os deuses. Mas não apenas isso: sabendo que a duração do corpo-arquitetura no tempo é muito superior à do seu próprio, Montezuma procurava esticar a vida do seu espírito para além da sua própria finitude, através de um grande e belo artefato construído.
    O Templo Mayor de Montezuma seria construído, assim como todos os outros seis que o antecederam, ao redor do antigo Templo Mayor - idealizado pelo tlatoani Ahuizotl. Nenhum dos novos templos ousava destruir o anterior. Ao invés disso, simplesmente se construía ao redor do antigo. Isso fazia com que cada novo templo fosse maior do que seus antecessores, ao mesmo tempo em que se mantinha uma memória física do passado, e se garantia a eterna ocupação do território sagrado. Como bonecas russas, os templos se sobrepunham. Os astecas possuíam uma estranha e latente maneira de entender o passado, uma que habitava a linha tênue entre conservação e ocultação. Uma antropofagia cíclica da preservação. Pode-se dizer que desde a inauguração do primeiro Templo Mayor, em 1325, ele estava apenas crescendo e trocando de peles, assim como fazem todas as coisas vivas do mundo. Talvez, ao encontrar um ponto ótimo entre a flexibilidade e a perpetuação na mesma estrutura, os astecas tenham sido os inventores da forma aberta tão idealizada pelos metabolistas japoneses, engajados na investigação de formas expansivas e dinâmicas pautadas na indústria.
    Possuía uma forma piramidal e media, aproximadamente, 100 por 80 metros. Era dedicado tanto ao Deus da guerra e do sol, Huitzilopochtli, quanto a Tlaloc, o Deus da chuva e da agricultura. Cada um se tornava presente no recinto através de dois santuários pousados um ao lado do outro, no topo da pirâmide. Ambos os Deuses se resguardavam do exterior através de cortinas que cobriam seus acessos. Anualmente, o ídolo de Huitzilopochtli era modelado com sementes de amaranto, mel e sangue humano. Dentro de seu corpo eram colocados sacos contendo jade, ossos e amuletos, para que assim ganhasse vida. Essa figura era construída e, após um mês ritualístico, era destruída e dada de comer à população. O povo asteca realmente possuía uma relação cultural muito próxima da morte, da destruição - e da renovação que elas abrigavam.
    Era, naturalmente, o maior já construído. Era, para os astecas, um lugar de sacrifícios humanos. E o reinado de Montezuma apenas reforçaria essa percepção. No ano de 1502, na sua festa de coroação, estima-se que perto de 5.000 pessoas tenham sido sacrificadas nos degraus do templo. A cada corpo frágil cujo coração era retirado pelos sacerdotes para então rolar por suas escadas densas e estáveis, que se tornavam uma lembrança e um atestado da fortaleza do templo e, ao mesmo tempo, da força de Montezuma. Quanto mais sangue fizesse das escadas cachoeira, mais a sua resiliência temporal crescia, por comparação.
   Ele marcava o centro do Precinto Sagrado, que por sua vez articulava a malha da cidade de Tenochtitlán. Esse sítio era o ponto de apoio material não só da cidade, mas também de toda a civilização asteca. Na época, ele continha 78 templos e o Templo Mayor era o mais imponente de todos. A localização do Precinto Sagrado não foi decidida baseado em uma leitura de defesa do território ou através da qualidade do seu solo, nem para compor um skyline de progresso econômico de distritos comerciais. Ele foi decidido espiritualmente.
    A história de Tenochtitlán começa com 3 personagens: um Deus, uma águia e um cactos. O povo asteca havia fugido do norte do território que hoje é conhecido como o México, e a sua diáspora apenas cessaria com a ajuda de um sinal. Segundo a lenda, Huitzilopochtli previu que, quando os astecas avistassem uma águia pousar em um cactos, o chão que estivesse sob seus pés seria a terra prometida. Eventualmente, no local onde agora habitava o Templo Mayor, a lenda se revelou verdadeira. O seu chão é místico. Aqui, a articulação do habitar respeitava ordens intangíveis.
    Ao meu ver o Templo Mayor é um exemplo preciso das percepções do cosmos dos Mexica, consistindo em montanhas sagradas que constituem o centro simbólico fundamental do cosmos vertical e horizontal do universo Asteca. Os templos gêmeos de Tlaloc e Huitzilopochtli situados no topo da base piramidal são réplicas dessa ordem cósmica.5

    O templo realmente reunia para si, como diria o filósofo alemão Martin Heidegger, a “quaternidade” do céu, a terra, os humanos e os deuses. Ele era o destino e a desolação, os desejos e aspirações, o amor e ódio daquele povo, e fazia aparecer através da sua construção toda uma nova percepção da paisagem. Um novo batismo territorial.
 
A evidente velocidade diferente que opõe um território rápido - rápido nas velocidades dos fluxos que nele se verificam, rápido na velocidade de substituição dos sinais, de perda de significados de outros sinais - a um território lento implica durações diferentes para os sinais, vidas mais ou menos perenes em termos físicos e em termos do significado que esses sinais têm para as populações, mas implica também pulsações diferentes, ritmos de vida diferentes.6

No seu ensaio Duas Linhas, o paisagista português João Nunes nos apresenta o seu conceito de que lugares diferentes possuem velocidades diferentes. As pegadas do existir humano deixam marcas físicas na paisagem, cicatrizes que com o passar dos anos começam a se sobrepor, gerando assim não apenas uma maior espessura paisagística, como uma marcação material da passagem do tempo. Para João Nunes, a quantidade de vestígios deixados pelos povos que ali habitaram por um período de tempo - ou seja, o ritmo das intervenções - representa o conceito de velocidade, batiza um território como rápido ou devagar. Quão mais ativo fosse um povo, mais rápido seria o seu território.
    As grandes e dinâmicas metrópoles e as pequenas e pacatas cidades rurais possuiriam, portanto, metabolismos diferentes, ritmos distintos.
    É natural ao ser humano construir, imaginar, intervir na paisagem em que habita. Um dos campos mais primitivos da condição humana é o desejo de expressar, de marcar o mundo em conceitos inventados como paisagem e território.

A fronteira não é aquilo em que uma coisa termina, mas, como já sabiam os gregos, a fronteira é aquilo de onde algo começa a se fazer presente.7


O mundo é um fenômeno heterogêneo e limitado. Ele não é expansível, como as páginas de um livro. Livros têm o tamanho que eles precisam ter. Já as paisagens têm o tamanho que elas têm. Esse processo de marcação no solo é extremamente predatório, tendo em vista que novos artefatos muitas vezes têm que se sobrepor, destruir, estrangular outros pré-existentes para, enfim, encontrar o seu lugar sob o céu. O tempo é uma senhora implacável, e o seu sopro faz desaparecer os vestígios que são mais frágeis, mais superficiais. Sinais ganham e perdem significados. São esquecidos e apenas às vezes relembrados. Alguns perduram, outros não. Cada destruição representa a perda de uma história, de uma memória, de uma maneira de se ver o mundo e de se habitar um território. Evapora-se um caminho para o passado.
    Quão mais cicatrizado é o chão que se pisa, mais história há para se escavar. Pode-se dizer que o Templo Mayor é um artefato que possui em si vestígios que nos afirmam que o território marcado pelo Precinto Sagrado era, de fato, um território rápido. Um território que revela o dinamismo do ser asteca e as fortes relações que aquele povo cultivava com destruição e morte. Em menos de 200 anos, o Templo Mayor foi reconstruído nada menos que sete vezes, enquanto solitárias catedrais góticas européias - e contemporâneas ao templo - teriam exigido séculos para a sua completude.

c. a catedral

Você sente aquela qualidade maravilhosa de ter sido “construído”; ele expressa peso e compressão. Os lintéis pesam intensamente nos pilares; a junta é carregada no seu ponto, estática, Grega, silenciosa. E o concreto é lindo como mármore.... o silêncio e a luz que Kahn amava tanto.8

A Catedral Metropolitana da Cidade do México é uma presença ubíqua na paisagem do centro histórico. Localizada na Praça da Constituição - conhecida pelos mexicanos como Zócalo -, o seu peso parece suspender a atmosfera ao seu redor, para fazer dela um vazio latente. Atrai para si um estranho silêncio. A maior catedral das Américas parece ter erigido do chão, e a sua solidez rochosa faz aparecer, por oposição, a forte luminosidade mexicana - em dias especialmente ensolarados, sua sombra negra como a noite se projeta acima dos carros e vendedores ambulantes, turistas e pombos que povoam o piso quadriculado de Zócalo. Se não fosse a sua natureza excessiva em elementos, em intervenções e anexos, talvez Louis Kahn a chamasse de monumental.

Monumentalidade em arquitetura pode ser definida como uma qualidade, uma qualidade espiritual inerente em uma estrutura que transmite o sentimento de eternidade, que não pode ser adicionado ou mudado. Nós sentimos essa qualidade no Parthenon, o símbolo arquitetônico reconhecido da civilização Grega.9

Tamanha presença não se forma da noite para o dia: as obras se iniciaram em 1573, e só cessaram no ano de 1813. Foram 240 anos de construção. O simples vir a ser da Catedral já foi o bastante para se estender para além - e muito - da duração de uma vida humana. Inúmeras gerações passaram antes que a última pedra fosse cuidadosamente colocada na Catedral. Bisavós e avôs e pais e suas filhas nasceram e morreram sem ver o seu corpo rochoso completo.
    Em um momento no qual o pensamento arquitetônico contemporâneo parece cada vez mais preocupado com a flexibilidade estrutural, me parece no mínimo curioso conceber um edifício cuja construção exija algumas centenas de anos. Talvez, os construtores desses artefatos não possuíssem uma percepção tão grande do passado nem uma idealização tão intensa do futuro. É possível imaginar que o seu modo de se ver no mundo fosse mais coletivo e menos enraizado em uma cultura individualista. Seus arquitetos certamente nunca se mostraram interessados na rapidez da construção de suas catedrais. Os maiores projetos de arquitetura talvez não fossem pautados por um funcionalismo raso interessado em quantos anos uma necessidade programática qualquer se tornaria obsoleta. As grandes catedrais eram projetadas para o espírito, e também - por que não? - para pessoas que ainda não existiam. No século XXI, moldados pelo medo do aquecimento global, pelo alcance da globalização e pelo dinamismo tecnológico e social, projetos que não sejam tão flexíveis ou fugazes quanto a nossa natureza individualista correm o risco de serem considerados incompatíveis com o nosso habitar.
    É interessante ver como a aceleração da nossa temporalidade afetou a maneira como percebemos e produzimos os nossos edifícios. Inovações tecnológicas têm tornado possível construir e destruir edifícios de maneiras cada vez mais rápidas e baratas - já existem edifícios que são projetados com datas de demolição, por exemplo. Desde a primeira revolução industrial, o conhecimento arquitetônico têm tentado esticar os limites do campo da construção, seja no uso de novos materiais, seja na performance dos que já conhecemos. Projetos como o Crystal Palace, e a torre Eiffel, ou movimentos como o modernismo, o brutalismo e o metabolismo vêm em mente.
    Já o metafísico é eterno, atemporal, ubíquo, e o espiritual, paciente.
    Essa diferença de percepção acerca da duração da “vida útil” de um projeto é um vestígio interessante, que pode nos ajudar a entender melhor que tipo de relação esses povos tinham não só com a passagem do tempo, como também com a entidade arquitetura - pelo menos em relação aos seus mais importantes projetos. Para povos com uma estrutura social extremamente rígida que habitam territórios de baixa velocidade, pode parecer mais fácil entender a quantidade de tempo necessária para se construir um marco arquitetônico: um edifício que funcione como um símbolo de tudo o que esse povo representa, que capture a essência das pessoas que uma vez habitaram essa terra.
    A nossa percepção de tempo parece ser mais linear e curta do que a dos idealizadores das estruturas sólidas e perseverantes das catedrais góticas.
    As densas paredes de pedras da Catedral Metropolitana ainda resistem, mas já não são mais as mesmas. E não são apenas as suas paredes que sentem o passar das estações. Os caminhos do tempo parecem carregar a todos. Os raios de sol amarelo que horas atrás se tornavam sombra negra nas fachadas das casas agora dão lugar à energia lunar, orgulhosas estruturas são agora ruínas derrotadas, e grandes e impiedosas montanhas de calcário que já foram grandes recifes de corais eventualmente se tornam macias camadas de areia branca. Onde começam as montanhas e termina o mar?
    E como todo edifício que se estende no tempo, ela possui marcados no seu corpo cicatrizes de uma longa história.
   
d. um choque de civilizações 
   
    No ano de 1519, os pés de Hernán Cortés tocaram, pela primeira vez, as praias do que hoje é conhecido como o porto de Veracruz. Cortés não se encontrava sozinho. O conquistador espanhol estava acompanhado de um exército de 500 homens, e uma pequena cavalaria com 16 cavalos - que ainda seriam vistos pelos astecas como seres demoníacos, dotados de um poder imensurável. Ainda viriam a se passar cinco anos e uma série de batalhas e confrontos estratégicos com Montezuma até que Cortés, enfim, conseguisse atingir a cidade de Tenochtitlán, movido pela sua cobiça por ouro e - como qualquer católico fervoroso do século XVI, de catequização dos selvagens.
   
E quando nós vimos todas aquelas cidades e vilas construídas na água, e outras grandes metrópoles em terra firme, e aquela retilínea e nivelada calçada levando ao México, nós ficamos espantados. Aquelas grandes cidades e templos e edifícios ascendendo da água, todos feitos de pedras, pareciam uma visão encantada de um conto de Amadis. Realmente, alguns dos nossos soldados se perguntaram se tudo aquilo não passava de um sonho. Não é surpreendente, portanto, que eu escreva com essa paixão. Tudo era tão maravilhoso que eu não sei como descrever o primeiro vislumbre de coisas nunca antes conhecidas, vistas ou sonhadas... Mas agora tudo o que eu antes vi está derrubado e destruído; nada foi deixado de pé.10

Após finalmente conseguir sequestrar Montezuma, Cortés rapidamente ordenou a inserção de uma cruz católica no topo do Templo Mayor. Certamente, um começo simbólico para a dominação predatória e sobreposição simbólica que viriam a acontecer ali, dentro de poucos meses. Dias depois, um grupo de soldados espanhóis invadiu o Precinto Sagrado durante um grande ritual espiritual, e estima-se que perto de 10.000 astecas tenham morrido, desarmados e presos dentro dos muros do Precinto. Esse episódio foi representativo da vitória incontestável dos espanhóis, que depois destruíram tudo que lá estava para tornar possível o seu sonho de construir uma cidade estilo mediterrâneo em cima das ruínas da antiga Tenochtitlán. 
    O Templo Mayor foi destruído pelos espanhóis em 1521, logo após a tomada da cidade, para dar lugar à nova catedral. Inicialmente, uma primeira e pequena Igreja foi construída, usando as pedras provindas da destruição do Templo Mayor de Montezuma. O quanto da energia do povo asteca se manteve conservada nessas rochas para assim permear as paredes dessa pequena Igreja é, hoje, um mistério de impossível investigação - o arquiteto chinês Wang Shu, por exemplo, construiu o seu famoso Museu de Ningbo com os materiais de uma vila pré-existente que havia sido demolida para dar espaço ao seu projeto, alegando a preservação das energias e memórias daquelas pessoas no corpo do “novo” museu.
    Mesmo possuindo um vasto território disponível para a construção de sua Igreja, ainda assim os espanhóis decidiram construí-la justamente sobre as ruínas do Templo Mayor. Aparentemente, não eram apenas os astecas que entendiam a potência presente na sobreposição física. No entanto, enquanto os meso-americanos possuíam uma forma extremamente complexa de sobreposição e preservação, os espanhóis praticaram o canibalismo simbólico do seu ponto de apoio existencial. Eles queriam - e conseguiram - quebrar o seu espírito. Com o andar dos anos, o Templo Mayor acabou encoberto por novas camadas de cidade e construções européias e por fim caiu em esquecimento.
    Até que, no século XIX, um grupo pequeno e fragmentado de arqueólogos mexicanos começou a escavar o território da cidade em busca de vestígios de um passado até então perdido. Tudo que eles possuíam era uma vaga idéia de onde eles poderiam estar: bem abaixo da Catedral Metropolitana.

e. o descobrir do tempo

O ano é 1978, e a companhia elétrica faz a sua ronda habitual em uma parte da cidade conhecida como “la isla de los perros”. Essa área foi assim batizada por ser um pouco elevada, o que faz com que todos os cachorros da região busquem abrigo em suas calçadas durante dias e noites de alagamentos - que são comuns na Cidade do México. Alguns dos trabalhadores posicionam a escavadeira em um ponto qualquer da rua e assim começam a penetrar o solo. Após apenas dois metros de escavação, a pá parece atingir algo sólido. Uma grande rocha que se mostrou ser nada menos do que o famosíssimo disco de Coyolxauhqui. Coyolxauhqui era, segundo a mitologia meso-americana, irmã e antagonista do patriarca do povo asteca, Huitzilopochtli. Após um longo confronto no cume de uma montanha, Huitzilopochtli venceu, e jogou seu corpo esquartejado relevo abaixo. O famoso disco era o local onde os corpos dos inimigos sacrificados finalmente caíam depois de terem rolado pelas longas escadas do Templo Mayor. Todo sacrifício seria, então, uma reencenação dessa batalha mística.
    Caso não fosse esse sopro do destino, talvez as ruínas do Precinto Sagrado estivessem até hoje submersas, dominadas e esquecidas, cobertas por rodas de carros e fezes de vira-latas.
    A última fronteira da destruição é o esquecimento.
    Por um capricho temporal - ou talvez um pequeno vestígio das características cíclicas do tempo -, as escavações acabaram lideradas pelo arqueólogo mexicano Eduardo Matos Montezuma. Seria possível que o arqueólogo fosse de fato o grande imperador Montezuma que, transfigurado em um corpo de um homem contemporâneo branco, careca e com uma longa e negra barba, buscasse descobrir o seu próprio corpo, dessa vez transformado em arquitetura?
    Para que as escavações se tornassem possíveis, 13 edifícios da região foram destruídos, dos quais nove eram contemporâneos e quatro do século XVIII e preservavam elementos coloniais em si. É a morte que dá espaço à vida. Todos os artefatos encontrados desde então são guardados e expostos em um edifício contemporâneo colado às ruínas, construído em 1987 pelo famoso arquiteto mexicano Pedro Ramírez Vázquez.
    Vázquez talvez tenha sido o arquiteto mexicano de maior relevância do século XX, tendo sido o responsável por projetos como o Museu de Antropologia e o Estádio Asteca. Embora não seja um de seus projetos mais conhecidos, o Museu do Templo Mayor possui uma certa imponência tímida, em uma atmosfera marcada pelos escombros do Templo Mayor asteca. Seus dois geométricos e brancos monolitos possuem uma personalidade calma, mas segura. Têm aquela qualidade de terem sido construídos, como o próprio templo parece ter sido certa vez. Como uma sólida fortaleza que brota do caos, ele torna mais aparente a fragilidade das ruínas ao seu lado. Parece oferecer força a elas, um lugar seguro onde se possa guardar os artefatos que durante tanto tempo permaneceram escondidos em seus destroços. No espaço entre os dois grandes cubos de tijolos de concreto, uma entrada de vidro - um material desconhecido aos meso-americanos. Apesar do seu projeto contextualista, o Museu claramente se apresenta como um edifício do século XX, sobrepondo portanto mais uma camada temporal nessa composição - fazendo do Templo Mayor mais antigo ainda.


O passado nunca está morto. Ele nem passou ainda.11

    Caso estivesse inteiro até hoje, a fachada frontal do Templo Mayor estaria voltada para a Catedral Metropolitana. As suas ruínas não parecem se voltar a lugar algum, e fazem da Catedral um corpo mais vitorioso, por simples comparação. O tempo não foi gentil com o seu corpo, como o foi com o da Catedral. Suas paredes hoje se encontram incompletas, e apenas anunciam uma subida piramidal, em um grande vazio que parece sustentado pelas pedras que hoje se encerram alguns poucos metros acima do nível do chão. Essa condição faz com que se torne possível ver de uma maneira surpreendentemente clara todas as sobreposições - ou ampliações - pelas quais passou o Templo. O único que não sobreviveu à passagem do tempo foi o primeiro Templo Mayor, construído principalmente com terra e madeira. Ao se caminhar pelas passarelas de aço que hoje se entranham por entre as ruínas, pode-se ver claramente não só as fundações dos templos, como também os vazios que as separam. Os novos templos nunca tocavam os antigos e nos espaços entre eram deixados uma série de artefatos e tesouros, homenageando as antigas construções e suas memórias.

Queima-se o barro para fazer o pote.
A utilidade do pote vem do vazio.12

    As ruínas do Templo Mayor - como qualquer outra ruína - guardam em si os vestígios materiais de todo um lento e denso processo de sedimentação que ocorreu ao longo do tempo. Elas tornam aparente a passagem do tempo. Como se elas próprias se encarregassem de incorporar essa memória. A terra como próprio documento. É o revelar de um constante ciclo onde tudo que é construído eventualmente volta a se tornar matéria prima, onde o vazio aos poucos engloba o edifício e assalta seu corpo. Ruínas podem ser vistas como latência, como o retrato do enfrentamento entre o imensurável e o mensurável, o tangível e o intangível, a presença e a ausência. 
    São como esqueletos de dinossauros. A escavação arqueológica das nossas cidades por vezes nos leva a perguntas sem respostas. Corredores escuros onde apenas a imaginação humana é capaz de nos alçar para fora desse espaço claustrofóbico. As lacunas misteriosas do passado são poucas vezes preenchidas através de estudos minuciosos, e se encontram mais no campo da suposição criativa, pedindo à imaginação humana para completar o seu corpo, agora dominado por um vazio que, sem o olhar humano, não possui identidade alguma.
   
Roma em ruínas teve mais influência em arquitetura do que ela jamais teria nova em folha. O que você não consegue ver, pode imaginar.13

    Ainda assim, não é sábio olhá-las através de lentes românticas ou idealizadas. É perigoso procurar no passado uma legitimação do presente. Talvez, ele possa ser visto mais como um instrumento do presente do que o seu validador. E as ruínas abrem em si - através da sua essência de incompletude - esse espaço interpretativo. Quem se vê olhando ruínas, geralmente se encontra em uma indagação imaginativa, uma busca pessoal do que esse conjunto de pedras e paredes e vazios significam, ou uma vez significaram. A busca pelas instituições do homem é, como dizia Kahn, um mergulho na nossa própria natureza.

Uma obra de arte não é o produto de “necessidades” e “recursos”. É um produto da inspiração e o desejo de expressar que sempre esteve ali. Isso não significa que a história fica parada. Não apenas as circunstâncias mudam, mas em alguns pontos as instituições humanas que até então estavam escondidas podem ser descobertas... instituições são, assim, descobertas e re-descobertas, mas assim sendo são baseadas em e provêm da estrutura eterna do mundo.14

Nas ruínas do Templo Mayor, o que para gerações passadas era visto como um cenário orgulhoso de conquista e vitória de um grupo de conquistadores católicos, agora é geralmente visto como um vestígio de genocídio e opressão que se usou da técnica para não só destruir casas e templos, mas dizimar modos de vida, memórias, formas de se ver o mundo e de se engajar em uma espiritualidade virtualmente perdida.
    Por serem muito suscetíveis a novas percepções, as ruínas acabam habitando um estranho limbo entre marcarem em si os acontecimentos passados e se manterem irresistivelmente relevantes - pelo menos enquanto durarem. De certa forma são mais poderosas em sua flexibilidade do que os edifícios preservados o são em sua força material, que deixa menos espaço para contradições de leitura e reinterpretações. As ruínas sempre nos convidam a reinventar com a nossa imaginação o passado.
    Revisitar o passado é dobrar a flecha do tempo, até transformá-la em uma série de ciclos que se interconectam, onde tudo que já aconteceu continua a acontecer.
    No entanto, esforços em preservação fizeram com que as ruínas do Templo Mayor se encontrassem em uma situação interessante, uma que se torna cada vez mais recorrente na parte ocidental do mundo. Elas são, agora, ruínas preservadas. A sua museificação as transformou em ruínas estáticas, uma vez que que ferramentas humanas procuram deixá-las invioláveis à ação do tempo e, portanto, não condizente com a própria essência do ser-ruína, que é sempre dinâmica, livre do toque do ser humano, largada para se deteriorar em paz.
    Talvez por isso, são frequentemente relacionadas a lugares esquecidos. Resignados ao subconsciente das metrópoles. Uma lembrança esvaída, de difícil acesso, imersa em um abismo de escuridão mental. Omitidas como são as periferias da cidade, fracassadas. O progresso não gosta das ruínas.
    Já a Catedral Metropolitana permanece, até hoje, preservada. Ela continua marcando, assim como havia sido previsto pelos espanhóis, o centro da Cidade do México. Tão quanto os dias passam, as pessoas a preservam, seja em grandes atos administrativos, como o título de patrimônio da humanidade dado pela UNESCO em 1987, seja em pequenas ações cotidianas como varrer a poeira que como brisa atravessa a porta e adentra o recinto, se acumulando nos cantos das paredes.
    É possível analisar algumas formas de preservação como sendo tentativas de impor uma estaticidade não natural a um artefato arquitetônico, de tentar frear a passagem do tempo através de repetidas intervenções. Lugares assépticos são lugares mortos, sem vida. Mortos como hospitais. Limpos como cemitérios. Usamos o dinamismo do nosso metabolismo para afastar, através de pequenas ações banais e cotidianas, a erosão dos nossos edifícios. Com vassouras e panos varremos a poeira que se assenta nos cantos e juntas dos grandes salões, dos pequenos depósitos. Lugares sujos são, geralmente, lugares cheios de vitalidade. Ágeis como uma feira ou como um salão de festas. Territórios rápidos como um banco de parque onde o sempre apressado homem de negócios suja o seu terno, ao sentar onde antes algumas crianças pisavam, com suas botas cheias de lama.
    O arquiteto conservacionista espanhol Jorge Otero-Pailos, na sua série de exposições intitulada The Ethics of Dust conseguiu encontrar uma maneira bastante inventiva de limpar edifícios através de uma prática artística. A exposição - cujo nome conversa com o ensaio escrito por John Ruskin em 1866 sobre como limpar e conservar edifícios históricos - revela como a sujeira desempenha um papel importante na vida dos edifícios. Alguns dias antes do Palácio de Westminster ter sido limpo pela primeira vez em duzentos anos, Otero-Pailos usou uma enorme pele de látex para capturar a sujeira através do toque da pele com as paredes do Palácio. Após algumas horas de contato a pele foi retirada, e nela estavam impressas as marcações que o tempo impôs a esse espaço. Um registro escrito de todos os eventos que ali aconteceram. Todas as vezes que algum ombro ou costas se apoiaram nas paredes, ou que alguma mão a acariciou. Todas as discussões e segredos revelados em sussurros ou banquetes e até mesmo execuções - tudo estava lá, exposto em uma monumental pele de látex.
    É natural que se torne um exercício de imaginação retraçar as ações que, ao longo de centenas de anos deram vida àquela mistura de poeiras. A relevância dessa obra é uma que reside no simbolismo da ação, e na projeção que os visitantes fazem nessa leitura, a partir das suas interpretações do que diz aquela colagem de partículas sujas. Talvez, a questão mais interessante levantada pela exposição de Jorge Otero seja acerca dos valores que damos aos diferentes elementos que compõe os nossos edifícios. O que vale a pena preservar? A totalidade do edifício merece ser preservada, ou apenas uma recriação da experiência que imaginamos que as pessoas tenham tido ali? Em um cotidiano onde a poluição desempenha um papel central nas nossas grandes cidades, a poeira merece ser preservada? Ela merece ter o seu valor histórico reconhecido?

Cada partícula de poeira tem a sua própria história.15

Tanto a Catedral Metropolitana quanto o Templo Mayor - e até certo ponto, o Museu do Templo Mayor - compõe a malha temporal que é a Cidade do México. Nela, diversas temporalidades se sobrepõe e se conectam na mesma paisagem, através de artefatos físicos que carregam em si vestígios de outras épocas.
    Mas o passado não precisa ser visto, necessariamente, como um ente estático.
    Voltemos à idéia de duração dos diferentes seres que compõe o nosso mundo: enquanto os seres humanos conseguem viver, normalmente, algumas décadas - pelo menos até agora -, existem outros corpos que perduram por centenas, milhares, ou até milhões de anos. Esses corpos estiveram presentes tanto em acontecimentos passados quanto presentes. Eles habitam, portanto, várias temporalidades diferentes - e ainda é bastante provável que se estiquem em direção à inquietude do futuro. Não são apenas janelas para o passado, mas também fenômenos que continuam a habitar o mundo, a coexistir conosco.
    Talvez, por isso, respeitar a duração inerente ao corpo arquitetura seja mais interessante do que tentar projetá-lo como a forma aberta de Stan Allen, que aceita futuras intervenções sem se alterar tipologicamente. “A forma importa, mas não tanto as formas das coisas, e sim as formas entre as coisas.”16 Ao invés disso, a intervenção arquitetônica da adição de corpos “estranhos” ao pré-existente - como anexos - poderia ser vista como uma forma de se marcar o tempo, de se marcar diferentes épocas. Projetos como o Louvre de I.M.Pei nos ajudam a entender como alguns projetos de arquitetura conseguem persistir e se manter relevantes em diversas épocas, ao mesmo tempo que nos sinalizam que eles são, de fato, de outra época.
    O passado do ser humano ainda é o presente para seres que são mais resilientes ao tempo do que nós. Os pés do Templo Mayor, onde antes astecas se ajoelhavam em exercícios espirituais, sentem agora sobre si os passos apressados de turistas de toda a parte do mundo - e os flashes de suas câmeras. A Catedral Metropolitana, onde antes temerosos conquistadores rezavam pelo perdão do Espírito Santo, vibra agora com os votos de casamentos gays.
    Esses artefatos reúnem para si, ao mesmo tempo, a vida de um povo que já foi, seus sonhos e pesadelos, suas glórias e catástrofes, seu destino e percepções, e toda sorte de acontecimentos contemporâneos.
    Vivemos em meio a uma supra-temporalidade, uma junção de artefatos que nos leva a um caleidoscópio de tempos. As nossas cidades são um palco dinâmico e receptivo. Algumas personagens sobem antes, outras sobem depois. Algumas permanecem no palco por algumas cenas apenas, outras durante a narrativa inteira. Não importa. O relevante aqui é o momento presente, onde todos os papéis se encontram em convergência, compartilhando o mesmo espaço. Nós devemos, assim como um time de investigadores, desvendar os segredos que as diferentes personagens estão dispostas a nos revelar.
    Ao se desvendar esses artefatos arquitetônicos, pode-se imaginar acontecimentos que não aconteceram. Acontecimentos para os quais a faixa do tempo se provou ser demasiado fina para abrigá-los. É a nossa imaginação - assim como as ruínas - a responsável por dar presença a histórias antes ausentes. O passado, como disse o arquiteto português Álvaro Siza, é um devir.
    Portanto, esse contato físico entre corpos de diferentes épocas nunca é uma ação livre de devaneios imaginativos, ou especulativos. A teia que compõe a malha do passado não é de simples investigação. A nossa percepção desses artefatos muda de acordo com a passagem do tempo e das gerações, porque quem percebe muda também. Elas existem em um contraditório e surpreendente estado de estaticidade material e dinamismo de significados. A sua resiliência material - até certo ponto uma atemporalidade - está estranhamente conectada com as diferentes conotações - algumas mais gentis que outras - dadas pelas interpretações contemporâneas. Assim, o simples ato de andar pela cidade pode se tornar um processo arqueológico.
    Ao se moldar o passado, a história passa a se tornar um eco onde tudo que já foi continua a ser. Um eco cuja existência reside no constante revisitar e descobrir pelo presente, pelo habitar do agora. O lugar do passado é no presente.
   
A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar. 17

    A partir dessa mudança de paradigma, talvez o conceito de pré-topia passe a se encaixar melhor na nossa visão do passado. Se utopia é o ato de imaginar possíveis futuros perfeitos, então a pré-topia pode assumir o cargo de se usar os artefatos que temos disponíveis a nós para imaginar passados perfeitos, passados que façam sentido para nós, que nos ajudem a perceber melhor quem nós queremos ser, e de que forma as ações dos nossos antepassados podem continuar a conviver ao nosso redor, seja para nos inspirar ou para nos alertar sobre caminhos que talvez não devamos tomar.
    Este ensaio tenta narrar uma parte interessante da vida dessas construções - e como as suas histórias e temporalidades agora compõe a malha da Cidade do México. Porém, a duração delas será longa demais para que eu consiga ver o seu futuro e a sua eventual e certa morte. Não, prefiro me prender à pequena janela temporal que me foi aberta na vida desses gigantes e imaginar que, assim como o passado, o futuro sempre estará em aberto. Afinal, juram os mexicanos que, enquanto a Catedral Metropolitana tem voltado a entortar em um dos lados, as ruínas do Templo Mayor voltaram a crescer, sob a energia calma do luar mexicano.


NOTAS


1. BISHOP, Elizabeth. Poemas Escolhidos. s/l: Companhia das Letras, 2012. p. 362.
2. BENJAMIN, Walter. Imagens de pensamento, Sobre o haxixe e outras drogas. Belo Horizonte: Autêntica Edi-tora, 2013. p. 101.
3. FLEET FOXES. Montezuma. Seattle: Sub Pop/Bella Union, 2011. 1 disco sonoro (49m57s).
4.HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. s/l: ODYSSEUS, 2012. p. 135.
5. MOCTEZUMA, Eduardo Matos. Vida y muerte en el Templo Mayor. México: FCE, AATM. 1998.
6.NUNES, João, Duas Linhas. s/l: Pedro Campos Cos-ta e Nuno Louro, 2009. p. 60.
7. HEIDEGGER, Martin. Poetry, language, thought. s/l: Harper Perennial Usa, 2001. p. 152.
8. SCULLY, Vincent, Louis L. Kahn and the Ruins of Rome/ Caltech Magazine: E&S, 56(2). s/l: Caltech Press, 1993. p.12.
9. KAHN, Louis L. Essential Texts. Nova Iorque: W. W. Norton & Company, Inc., 2003. p. 21.
10. DIAZ DEL CASTILLO, Bernal. História verdadei-ra da Conquista da Nova Espanha/The Conquest of New Spain. s/l: Penguin Classics, 1963.
11. FAULKNER, William. Requiem for a nun. s/l: Chatto & Windus, 1919. p. 85.
12. TZU, Lao. Tao Te Ching. s/l: Martins Fontes, 2002. p.11.
13. GREENAWAY, Peter. A Barriga do Arquiteto. Reino Unido/Itália: Tangram Films, 1987. (120 min.), son., color.
14. NORBERG-SCHULZ, Christian. Oppositions 18/Kahn, Heidegger and the Language of Architecture. Cambridge, Massachusetts: MIT Press,1979. p. 32.
15. OTERO-PAILOS, Jorge. Jorge Otero-Pailos for Ar-tAngel on The Art Channel. 2016. (9m30s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VM26s7m-ZxFo>. Acesso em: 14 jul. 2017.
16. ALLEN, Stan. O campo ampliado da arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p.91
17. GALEANO, Eduardo. Eduardo Galeano - El De-recho al Delirio. 2012. (7m32s). Disponível em: <ht-tps://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8>. Acesso em: 23 jul. 2017.

BIBLIOGRAFIA


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DIAZ DEL CASTILLO, Bernal. The Conquest of New Spain. s/l: Penguin Classics, 1963.
FAULKNER, William. Requiem for a nun. s/l: Chatto & Windus, 1919.
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KAHN, Louis L. Essential Texts. Nova Iorque: W. W. Norton & Company, Inc., 2003.
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NESBITT, Kate. Uma Nova Agenda para a Arquitetura. São Paulo: CosacNaify, 2006.
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SMITHSON, Robert. Robert Smithson: The Collected Writings. Berkeley: University of California Press, 1996.
TZU, Lao. Tao Te Ching. s/l: Martins Fontes, 2002.































































































































































































































































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