A Sombra da Torre Invisível


E disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre com seu topo nos céus, que nos dará um nome, para que não estejamos dispersos por toda a face da terra.
Gênesis1

Houvesse a trombeta do julgamento soado, eles não poderiam ter tremido mais; ainda assim não sentiram temor, mas prazer.
Herman Melville2

Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo.
Heráclito3



Após incontáveis dias de caminhada o viajante adentrou-lhe a sombra. Mais alguns dias e enfim a avistou. Em anéis concêntricos ela ascendia, suspensa em mais arcos do que era possível contar. O viajante estranhou-lhe a forma. Era circular. Quando criança mostraram-lhe uma imagem da Torre retangular, à qual acostumou-se. Depois veio a entender. Os que sobem a Torre dão-lhe voltas pois também em seus espíritos a moção é de subida ao infinito e de queda ao abismo para ao fim a mente retornar ao início, transformada. A alma é um círculo.



Eis a nossa nulidade. Destronados do esquema cósmico, inibidos no descontrole existencial. O desamparo do absurdo, enigmático abismo. Agora sentimos o cosmos refletido nas costas do sol e ruminamos o que nos resta. Que papel exercerei em meio ao imponderável? Talvez a imensidão e o caos guardem a potência de nossa condição. Talvez haja força na fragilidade.
    O Sublime. Vejo-o como o temor reverencial do grandioso, do hostil. Diz-se que seu nome foi primeiro usado por Longinus, esteta da antiguidade romana. Sublimis. Sua etimologia sugere o ato de elevar-se ao lintel — a porta a guardar o limite do impossível. Não nos é dado atravessá-la mas já ao acercar-nos sentimos a gravidade de tudo o que é amplo em demasia. Longinus fala do êxtase de confrontar o desconhecido. “Pois tem muita razão aquele que declarou termos alguma coisa semelhante aos deuses”.4 Mas tal dignidade traz também a decepção de descobrir-nos os mais baixos visitantes das alturas. Pois há um desalinho entre a escassez de nossa cognição e a abundância da realidade. Nas margens da experiência tudo é oculto e incógnito. A vastidão entorpece a mente humana, que “tão inteiramente preenchida por seu objeto”, nem ao menos é capaz de “entreter qualquer outro nem, por consequência, raciocinar sobre o objeto que a ocupa”, escreve Edmund Burke, talvez o primeiro grande teórico do Sublime na modernidade.5 Os olhos das bestas. Um mar em fúria. A infinidade cósmica. O Caos. A falta de sentido. A angústia. A exaustão. Amortecemos raquíticos à imponência de tais gigantes. Em nós há o colapso. Mas também o florir. Em meio ao desespero algo em nós desperta e alarga-nos a espessura do espírito. A real natureza desse câmbio espiritual é inexprimível pois profunda. Mas caímos em nós. E no silêncio do Eu inaugura-se outro tipo de existência.  
    “Nenhuma outra paixão rouba tão efetiva a mente de todos os seus poderes de ação e de raciocínio como o medo”. Para Burke, notável iluminista, o medo da morte é ansiedade superior à vontade de viver. O Sublime é “a emoção mais forte que a mente é capaz de sentir”, pois “as ideias de dor são muito mais poderosas do que as introduzidas pelo prazer”.6 A profundidade analítica de Burke leva-o a empreender “um exame diligente das paixões que habitam nossos próprios corações, que deveria ser efetuado a partir de um exame cuidadoso das propriedades das coisas”.7 À ele o Sublime inicia-se através de aspectos físico-objetivos dos fenômenos naturais “que longe de serem produzidos por nossos raciocínios, ocorrem antes deles e passam por nós com uma força irresistível”.8 A penumbra, o silêncio, a vastidão, a extrema luz, dentre outras. Tais propriedades então estimulam paixões subjetivas e desprazerosas em nossas mentes, como a dor, o perigo, o medo, o terror. “Certas afeições na mente acarretam determinadas alterações no corpo; ou certos poderes e propriedades dos corpos geram uma mudança na mente”.9 Uma causalidade que atua nas margens entre o sensível e o supra-sensível onde estímulos físicos acionam estados de espírito. O Sublime de Burke consiste num silogismo, uma cadeia lógica, pois busca certificar-se de que certas qualidades sempre nos afetarão de certas maneiras.
    Mas não só de dor faz-se o Sublime, caso contrário seria Tragédia.10 O Sublime é paradoxal. Floresce em contrastes. No seio da morte palpita a alma da vida. Ao sujeito atônito de terror é ofertada uma saída, vereda ao maior dos prazeres, que não é prazer em si mas o alívio da remoção da dor. Burke chama-o Deleite. É preciso esquivar-se do fenômeno para sentir a sugestão do perigo sem de fato sofrê-lo. A Distância Segura de Burke. Aquele cujo corpo é açoitado no mar em fúria luta contra a morte no furor da adrenalina. Não há o hiato contemplativo que propicia o Sublime. Apenas quem em terra firme contempla as ondas conseguirá ruminar suas emoções e penetrar nos meandros da reflexão estético-existencial. O Sublime não lhe escapará. Pois imagina o tormento e se alivia por não amargá-lo. Nasce uma serenidade sombreada de terror. “Quando o perigo ou a dor estão muito próximos de nós, eles são incapazes de oferecer qualquer deleite e são simplesmente terríveis”, mas “a certas distâncias e com certas modificações, eles podem ser, e são, deleitosos”.11 Mas talvez Burke seja demasiado fisiológico. Em seu Sublime o humano não supera-se. Sua Distância Segura é o deleite das presas afoitas, felizes ao escaparem às garras do predador.
    Tal é a opinião de Immanuel Kant, que ainda no século dezoito debruça-se sobre o Sublime. Kant aceita o esboço geral de Burke: eventos temerosos que mediante Distância Segura antes desamparam em desprazer e depois aliviam. Mas através da teoria cognitiva de sua filosofia transcendental, Kant banha o Sublime em espiritualidade. O Sublime Kantiano é emoção subjetiva, experiência fora dos limites da experiência e, creio, o ápice de sua teoria estética. Para entendê-lo será preciso abordar antes o que Kant entende por transcendental.
    Kant distingue o transcendental do transcendente. A abordagem metafísica não lhe interessa pois transcendente: ocupa-se do que jaz ao além, inacessível à experiência. Do que os nossos estreitos sentidos não apreendem nem nossa escassa cognição compreende. Todas as coisas ocultas que envolvem-nos invisíveis. No verso da vida, incontáveis dimensões desconhecidas. Não nos é dado explorá-las. Kant assume a ignorância e fragilidade humanas. E assim cinde a natureza em duas: aquela à qual não temos acesso, o mundo Supra-sensível ou As Coisas Nelas Mesmas, e a que conhecemos, o mundo Sensível ou as Aparências. “Não podemos ter cognição de qualquer objeto como algo em si mesmo”, ele escreve, “mas apenas enquanto um objeto de intuição sensível, ou seja, uma aparência”.12
    À Kant o mundo conhecido não nos é dado completo, mas moldado por nós. Em processo instantâneo, nossa mente recebe estímulos do mundo supra-sensível e manipula-os para compor o mundo sensível. É apenas capaz de tal feito pois possui mecanismos cognitivos exclusivos à ela, separados do mundo supra-sensível e anteriores à nossa experiência do mundo. “Antes que eu vá à experiência, eu já possuo todas as condições para meu julgamento em conceito”.13 À esses mecanismos cognitivos Kant batizou de Transcendentais. Neles concentrou sua filosofia. “Eu chamo transcendental à toda cognição que está ocupada não tanto com objetos, mas sim com nosso modo de cognição de objetos na medida em que isso seja possível a priori”.14 A realidade em Kant, creio, assemelha-se a um diagrama de Venn15 onde o espaço exclusivo do primeiro círculo é o mundo supra-sensível e o segundo é a mente transcendental. O lócus intersecto é o mundo sensível como o conhecemos. É no toque entre um mundo esfíngico e a mente emancipada que estruturam-se nossas condições de existência. À conta-gotas sorvemos a matéria crua da vida e a formalizamos mediante nossa atividade mental. Tudo o que vemos ao redor é representação, o produto final de um processo que nasce antes num real oculto e depois atravessa nossa mente para enfim ser formado à nossa volta. “Objetos externos (corpos) são meras aparências, portanto nada mais do que uma espécie de minhas representações”.16 A representação não é singular ao indivíduo mas partilha de toda a espécie, pois idealmente somos todos dotados dos mesmos sentidos e aparato mental.
    A Filosofia Transcendental torna-se não a ascensão ao além, transcendente metafísico, mas o mergulho em nossos próprios mecanismos mentais que possibilitam a experiência do mundo sensível. Em Kant mais importante que a natureza das coisas é como nós as percebemos. Sua teoria é revolução em nosso vínculo com o mundo. “Até agora foi assumido que toda a nossa cognição deve estar em conformidade com os objetos, mas todas as tentativas de descobrir algo sobre eles a priori…em nada deram”. São os objetos que “devem estar em conformidade com a nossa cognição”, não o contrário.17 E como Copérnico inverteu a ordem cósmica, Kant inverte os alicerces da realidade, posicionando a mente humana no centro de seu próprio cosmos. Não mais entidade passiva a receber um mundo pronto, ela agora molda-o à seu sabor. Kant é força na fragilidade. Não nos é dado conhecer a existência em toda sua profundeza mas ao menos certificamo-nos de sua superfície. Por debaixo corre o imenso silêncio de uma dimensão que nos escapa aos olhos. Tal ideia amedronta pois reforça a imagem do real enquanto salão penumbroso repleto de coisas ao além do reles humano que de joelhos e tremulante ilumina uma aresta qualquer. Mas a aresta não encerra o salão e quem sabe o que espera na escuridão ao lado?
    Há momentos em que a dimensão fantasmal rebenta a fina película de nosso dócil real e sua aspereza não é bem-vinda aos fracos de espírito. O processo de formalização do mundo sensível nem sempre é suave. O supra-sensível é besta bravia, grande demais à nossa cognição, hostil demais à nossa carne. Em Kant é esse o momento Sublime: quando o humano percebe-se nos limites de sua capacidade representativa. Sentimos a fricção em nosso aparato mental. Longe de ser qualidade de algum objeto, o Sublime seria um afeto subjetivo, uma “disposição mental”.18 Sofremos o ponto de colapso. Nos limites da experiência há o hálito de tudo que está depois. Mas seu sabor não é apenas medonho. Há algo ali que nos atrai. Surge um desejo de segurar o inexprimível, de desfazer-se de nossa condição finita e sorver o inacessível. A experiência do Sublime: o lintel ao além. Por que entretemos sonhos impossíveis? Seria a nossa essência o negar-se para se buscar no que jaz ao longe? Que delírio nos habita?
    Kant chama-o Razão. O ápice de nossa transcendentalidade e ponto nodal do desamparo ao qual o humano empenha-se, qual bicho nômade cujo coração não cabe em si e quer conhecer o que tantas vezes é o fruto de sua ruína e quem sabe redenção. É ela o âmago da experiência do Sublime. A Razão é a última das faculdades mentais Kantianas, que subdividem a mente em três: Sensibilidade, Entendimento e Razão. Pela Sensibilidade, “objetos nos são dados”.19 Empírica e passiva, ela recebe os estímulos supra-sensíveis, que são sintetizados pela sub-faculdade da Imaginação em imagens compreensíveis, particulares e imediatas: as intuições. As intuições são levadas ao Entendimento, onde “são pensadas”.20 Racional e ativo, ele compõe conceitos que usa para discriminar as intuições, dando-lhes sentido. Assim transforma a “matéria crua das impressões sensíveis”21 em "conhecimento empírico”.22 Kant resume: “Nossa cognição surge de duas fontes fundamentais na mente, a primeira é a recepção das representações, a segunda a faculdade de cognizar um objeto através dessas representações…Sem a sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem o entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”.23
    E qual seria o papel da Razão? Na vida cotidiana, a Razão submete-se à Sensibilidade e ao Entendimento, que imersos na concretude existencial governam o nosso juízo rotineiro do mundo, chamado por Kant de Juízo Lógico-Determinante. Sob o mando do Entendimento, tal Juízo “pensa o particular como contido sob o universal”. Tudo que vemos é catalogado pelos conceitos prévios do Entendimento. Ele “apenas subsume”, pois “não precisa conceber uma lei por si mesmo”.24 As coisas encaixam-se no humano, que a tudo determina. Há aqui a ânsia de conhecer, de extrair da existência informações e lições de conduta e no Entendimento compará-las.
    Mas a Razão não aprecia tais restrições. Alienada da concretude planetária, volta-se às terras últimas do além. Sonha então Ideias que ultrapassam nossas possibilidades de experiência. Abstrações de impossível comprovação: Deus, o Infinito, a Eternidade, a Causalidade, o Universo, o Mundo. As chamadas Totalidades Absolutas. “As ideias transcendentais serão nada exceto categorias estendidas ao incondicionado”.25 Mas a Razão não possui acesso ao Supra-sensível. Ela apenas supõe. Suas Ideias são fruto não de seu avanço ao além mas de sua descida em si. É preciso ter cuidado com suas pretensões, Kant diz. Ela possui “percepção apenas do que ela mesma produz de acordo com seu próprio desígnio”.26 Kant batiza-a de “lógica de ilusão”:27 ao tentar “estender a cognição para além dos limites da experiência possível”,28 ela gera um conhecimento que “não pertence à lógica da verdade”.29 Aqueles que seguem-na sem questionar fadam-se à uma “contradição que não pode ser evitada por mais que se tente”, colhendo apenas “teoremas sofísticos, pelos quais não pode-se esperar nem confirmação nem refutação”.30 A Razão. Vejo-a trágica a pendular entre a potência e a ruína. O horizonte em nosso coração. Por ela ansiamos deitar os olhos nas faces do além e o que encontramos é apenas a dimensão do nosso pesar. “Quão pouca causa temos de confiar na Razão, se numa das mais importantes partes de nosso desejo por conhecimento ela não apenas nos abandona mas até nos seduz com desilusões e ao fim nos trai!”.31
    Kant assemelha-a à Torre de Babel, arquitetura erguida pela “soma total de todas as cognições da razão” na cobiça de construir uma escada ao além. Reuniu-se toda a gente, separou-se os tijolos, empunhou-se as ferramentas. Todos os olhos fixados ao céu cogitando quais “altura e força” bastariam para transpor a película da experiência possível. Durante a construção a Torre tornou-se tamanha que, imagino, podia-se caminhar dias sob sua sombra. Diz a Bíblia que ali todos os povos convergiram e não mais estavam dispersos pois também aprenderam a partilhar a mesma língua. Entendiam-se e nisso iniciou-se a síntese de todas as culturas e todas as angústias numa única estrutura, grande fonte de orgulho à humanidade que decerto tocaria os céus. Mas à Kant “descobriu-se, é claro, que…o suprimento de materiais bastava apenas para uma habitação que satisfazia em espaço nossos negócios no plano da experiência e alta o suficiente para inspecioná-la”. O além estava alto demais. E logo o Deus desceu em disfarce e rompeu a língua comum e as pessoas pensavam mas as palavras na boca eram outras. Não mais entendiam-se. Desejávamos tocar o dedo do Deus porém deixamos “cada um construir por conta própria segundo seu projeto”.32 E como que golpeados pela desunião, os reles mortais foram incapazes de salvar a estrutura da ruína. Daí seu nome, Babel. No hebraico, bavél, raiz de bal’lál: confundir.
    No século dezessete o jesuíta Athanasius Kircher julgou-a empreitada impossível. Calculou que, ao tocar a Lua, a estrutura de Babel oscilaria o centro de massa planetário, causando cataclismas ambientais. Em 1563 Pieter Bruegel o Velho pintou-a unindo terra, mar e céu, alçando-a assim à condição de Axis Mundi. Mas o peso de sua imensa estrutura parece demais para o planeta. Sua Torre cresce torta, decadente, deformando o solo como se o chão já falhasse sob os alicerces, e assim justo quando ela toca o céu inicia-se a queda, colapsando no auge da potência. Não surpreendem a esperança e desencanto da Torre de Babel. Parecemos fadados a empreender projetos “arbitrários e cegos” que, à Kant, excedem “nossa capacidade total”.33 Estamos sempre a buscar o que não se vê: o imutável por detrás da fluidez ao redor. Mas não nos é permitido o caminho ao supra-sensível. Por mais que a espécie tente, o ápice de nossos esforços encerra-se à curta esfera do possível. Pois é a Razão a legisladora de nossos desejos. “Para a faculdade de desejar somente a Razão é legisladora a priori”.34 E assim o humano destina-se a desejar o desconhecido. Acreditar que a Razão representa algo que não a si é ruir os alicerces da Torre, fazendo da outrora escada ao além monumento do colapso. Babel é a alegoria de tal ruína. O que nos resta? Abdicar de tudo que esconde-se aos olhos e assumir vida cética e modesta? Censurar a Razão, retornar às esferas de Aristóteles e ao conforto da cegueira? Teriam os construtores de Babel, caídos na poeira do mundo em meio aos escombros de sua húbris, sido vitoriosos?
    Talvez seja possível conceber a Torre não como a Razão, mas como o Entendimento. É dele a tentativa de ordenar a existência numa única estrutura que promete ofertar-nos o domínio da natureza mas que, frente a um poder superior, está fadada ao colapso. E é nessa queda que a Razão introduz-se. Ela entretém ideias absolutas pois quer sentir o próprio poder, segundo Kant é por isso que ansiamos o desconhecido, pois “se só fôssemos determinados a aplicar nossas forças quando estivéssemos seguros da suficiência de nossa faculdade para produzir um objeto, elas ficariam em grande medida inutilizadas. Em geral só conhecemos as nossas forças quando as testamos”.35 Mas no cotidiano a submissão da Razão ao Entendimento não lhe permite aplicá-las. É apenas quando a Torre do Entendimento colapsa que ela pode enfim medir-se. Removidos da ilusão de controle, nos atentamos à dimensão de nossa existência, friccionando as faculdades mentais como atritam-se os alicerces prestes a partir, libertando a Razão. A queda da Torre torna-se o momento Sublime.
    Em Kant há dois tipos de Sublime. O Dinâmico, onde entidades hostis de força superior podem liquidar-nos. Assemelha-se ao de Burke, pois evento nocivo do qual é preciso afastar-se para em segurança contemplar seu poderio. Mas Kant favorece o Matemático: objetos “absolutamente grandiosos” ao além de qualquer paralelo. Fenômenos inertes porém de escala incontornável. Uma cordilheira, o oceano, o Universo. Seus tamanhos nos impedem de intuí-los. Vejo no Sublime Dinâmico o espanto do Eu levando-o a condensar em si, na urgência do momento. Ao temer ser sobreposto por um poder maior, amarga o interminável agora. Já no Matemático vejo o Eu à deriva dispersando-se na amplitude. Seu corpo ventila e teme perder-se no todo. Ao fim ambos levam o indivíduo a si, iniciando um despertar espiritual.
    É no contato com as margens ásperas da vida que o Eu dimensiona sua pequenez, contornando-se enfim. Sua Imaginação é incapaz de apreender a grandeza. “Aquilo que é excessivo para a imaginação é ao mesmo tempo um abismo em que ela teme perder-se a si mesma”.36 A incompletude do fenômeno é presença sugerindo uma ausência, o não-estar como forma suprema de estar. O Sublime Matemático é abrupto portal a um mundo feito não a nossos olhos. O assombro não é a ausência, pois o que desconhecemos não amedronta, mas a sugestão da existência de algo que somos incapazes de perceber. Nesse limite existencial dissolvem-se ambas as dimensões. Vemos apenas ausência, as lacunas esquecidas do além. O Sublime invoca o infinito. O Entendimento busca contorná-lo como sabe: através de números, em estimação lógico-objetiva. Mas a matemática não encerra o infinito pois o que é absolutamente grande, escreve Kant, está ao além de qualquer medida.37 Apartados do mundo e apartados de nós mesmos, no Entendimento somos sempre mundanos. E “o Sublime, no sentido estrito da palavra, não pode conter-se em nenhuma forma sensual, mas ao invés concerne às ideias da Razão”.38 É o limite de nossas capacidades sensíveis. Da fricção entre as faculdades surge o desprazer. Falham os alicerces da Torre. Há um único refúgio ao sujeito desamparado: recolher-se em si. Do alto de seu pensar a Razão é convocada. Ela pouco importa-se com o tamanho das coisas. Quer sobretudo conhecer-se, percorrer a extensão de suas próprias Ideias Absolutas. Para isso é preciso uma régua. Nasce novo processo. A Razão comanda a vencida Imaginação para, através das coisas do mundo, medir-se. Do homem à árvore, ao rochedo, à montanha, à cordilheira, ao continente, ao planeta, aos arcos celestes, ao sistema solar, à via láctea… A Razão segue seu arremate na direção do desconhecido, tornando o antes grande, pequeno. Conquistamos o prazer de “estimar como pequeno, em comparação com as ideias da razão, tudo aquilo que a natureza, como objeto dos sentidos, contém de grande para nós”.39 No Sublime “a própria incapacidade do sujeito revela a consciência de uma faculdade ilimitada dele, e a mente só pode julgar esteticamente a última através da primeira”.40 Em seu íntimo o sujeito descobre que o desprazer da Imaginação é o prazer da Razão. Pois o que era “repulsivo à mera sensibilidade” é “atraente” à “ideia racional do supra-sensível”.41
    O êxtase da Razão foi enfim se comparar à natureza e entender-se maior. Através da experiência estética o Eu vem a conhecer os fluxos de seu espírito. No Sublime Matemático ele percorre a vastidão e apropria-se de sua escala inebriante para voltar-se a si e contemplar toda a recém descoberta amplitude de seu íntimo. Apenas sabe ver de olhos fechados aquele que entende a dimensão das coisas vistas de olhos abertos. O mundo e o Eu em constante ciclo. Mas não seria a dimensão sensível filha da Sensibilidade e Entendimento, um constructo de nossas faculdades mentais? A Razão mede-se não contra a natureza em si, que ainda mantém-se ao além, supra-sensível, mas contra a capacidade construtiva das outras faculdades. O Sublime não é duelo do humano contra a natureza, mas do humano contra si. Somos criatura em conflito pois um lado nosso ocupa-se da vigília do sensível enquanto o outro anseia o supra-sensível. É o Sublime o auge dessa divergência. Segundo Kant, o Sublime é o conto em que nossa face animal e condicionada “afunda em insignificância frente as Ideias da Razão”,42 nossa face inventiva e irrestrita. “Trata-se, com efeito, do sentimento de que possuímos uma razão pura auto-suficiente, cuja superioridade não pode ser tornada intuível senão pela insuficiência daquela faculdade mesma (a Imaginação) que é ilimitada na exposição das grandezas (objetos sensíveis)”.43 Somos um ser em conflito, um bicho de corpo frágil mas que guarda em si a grande força de seu espírito. Nos momentos grandes demais para o nosso lado sensível, esse espírito torna-se soberano. Mas a Razão não aniquila nossa face física. Antes usa seu poder para conduzir-se a mais elevados caminhos, despertando nossa potência total. Pois foi apenas capaz de medir-se ao empregar a Imaginação. A Imaginação sozinha é inábil. A Razão sozinha é delirante, embora superior. Apenas quando a Razão maneja a Imaginação somos capazes de abrir a amplitude do espírito humano, fixando enfim a essência do que somos. Recompõe-se o Eu rompido. Todo ele ascende, não apenas a Razão. Se o desamparo inaugural da experiência Sublime é o desalinho do humano, o estágio final é a síntese do humano em si.
    O Sublime inicia-se com o humano em desamparo e percebendo seu conflito essencial. Mas depois torna-se o superar desse conflito através de uma costura interna que potencializa o espírito a uma experiência até então inalcançável.
    Os notáveis construtores de Babel atingiram a planície de Sinar e ajoelharam ao chão com as faces ao céu e algo neles lhes pediu que pegassem um punhado de terra. Moldaram-na em tijolos e depois os assaram. Através de uma Torre tensionavam fazer o chão tocar o céu pois dentro de si sentiam também a existência de algo que tocava ambos o pó e o paraíso. Eles não o sabiam mas suas naturezas ansiavam a síntese. Apenas no toque entre elas é possível ao humano medir sua existência então a altura da Torre haveria de dar a real escala de seu espírito. Mas conforme a Torre crescia os construtores apaixonavam-se não pelo céu mas pelo mundo abaixo e então decidiu-se. A Torre seria construída para dominar toda a natureza sob a presença de uma única silhueta. Julgaram que uma vez acima seria possível contornar sob os olhos todas as paisagens do mundo, desvendando os mistérios da natureza. Uma Torre do Entendimento. E certo dia foram todos ao terraço e abaixo viam o mundo tão extenso e suas coisas tão pequenas que tudo lhes fugia da vista. Descobriram a existência do horizonte e com ele entenderam sua própria pequenez cognitiva, sua própria fraqueza sensitiva. Tomados de vergonha perceberam que lhes foi furtada até a fala pois já não entendiam-se. Em pouco tempo as estruturas falhavam e os mortais sabiam da inevitável queda. Temeram o fim mas no cerne do medo havia algo a mais. No colapso de sua húbris algo neles despertou. Não havia o que dominar mas apenas amplitude e foi ela quem alargou seus pensamentos. Em seu íntimo agora viam a mesma vastidão que na natureza assustava. Estavam no limite de suas potências, na fundura máxima de seus espíritos onde tudo é inexprimível pois largo demais para palavras. A falta da fala veio a servir bem então. Caíam, mas ao menos agora conheciam-se. Apenas os limitados acessam o Sublime pois só eles superam o contorno de sua potência, ao invés do Deus que, potência pura, está fadado a perseguir-se. Talvez tenha sido esse o motivo. Ao ver crescer a Torre o Deus contemplou uma partícula de poeira e entendeu. Desconhecia a dimensão de um instante. Tomado de cólera fragmentou as línguas.   
    Em Kant há uma profunda relação entre a autoconsciência e a apreensão da realidade. Não intuímos apenas o mundo sensível. Também formalizamos as flutuações íntimas de nosso espírito. Nossos humores, memórias, afetações, emoções — as chamadas Sensações, que à Kant assim como os “objetos externos”, são “nada além de representações, a percepção imediata (consciência) da qual é prova suficiente de suas realidades”.44 A intuição é espaço-temporal. Ela volta-se para fora e para dentro, em simultâneo. O espaço eu uso para intuir o mundo externo. Não há espaços em mim portanto uso-me do tempo para intuir-me. Em Kant a existência é jogo constante entre objetos ao redor e estados internos. O Eu e o mundo transbordam-se pois “as coisas externas existem tão bem quanto o meu Eu e, de fato, ambos existem no testemunho imediato de minha auto-consciência”.45 E como só acesso as aparências das coisas, também conheço-me apenas como aparento ser. Há profundezas em meu espírito que sou incapaz de intuir. Sei-me superficial. Nossa existência se dá nas margens entre o dentro e o fora, entre o Eu e o mundo. Mas no Sublime mergulho-me. Nele, estou não ao além do mundo mas ao além do Eu ao qual acostumei-me. Não transcendo, mas me sintetizo para transcender-me. Acesso o transcendental em mim.
    E nas profundezas de tal mergulho, o que encontro? Do que é constituída a amplitude do espírito? O Sublime em Kant é impessoal. Ele narra o galope da Razão mas não chega a lançar-se nos erráticos corredores do dédalo humano, febril em sua textura onírica e mitológica. E na galeria central, assim como nos sonhos, o Minotauro aguarda o mais leve retinir no piso de lousa. Fortuna então haver a figura de Friedrich Schiller. Original intérprete, conduziu o Sublime de Kant ao campo da arte. Schiller alinha o Sublime sobretudo à dramaturgia. Kant favorece o Sublime Matemático (que Schiller chama de Teórico), mas Schiller prefere o Sublime Dinâmico (chamado por ele de Prático). Histórias abrem-nos mundos ativos onde personagens testam-se sob as leis do acaso e do destino, “quando a natureza contradiz as condições nas quais é possível para nós levar adiante nossa existência”, ele escreve.46 Nossa finitude, não é fácil aceitá-la.
    Havia pouco desde o grande dilúvio. Os escassos humanos restantes construíram a Torre para não mais sofrerem ao sabor da natureza imponderável. Pois somos a criatura que deseja. Segundo Schiller “a vontade é o que caracteriza o humano, a própria Razão não passa de sua regra eterna…por isso mesmo, nada é tão indigno para o homem quanto sofrer alguma violência, pois a violência o anula”.47 No entanto fomos dotados de corpo frágil, numa “infeliz contradição entre o impulso e a capacidade”.48 O engenho humano então aprende a sobrepor tijolos para através da arquitetura reivindicar um refúgio dos fluxos naturais. Ali ele reafirma sua vontade e inventa nova vida. Por detrás de grossas paredes, pode o humano repousar. Mas a arquitetura é mero abrigo físico. Schiller antes interessa-se pelo inevitável. Desconfia da Distância Segura como um mero afastar-se geográfico pois há terrores contra os quais não a fuga física nada faz. A perda, a doença, a loucura, o destino, a morte, o absurdo, a falta de sentido. Corrompem a vida por dentro. Contra eles não há refúgio. “Existem infortúnios e perigos contra os quais o homem nunca pode saber-se seguro…O conceito de segurança não pode ser tão limitado a ponto de exigir que nos saibamos fisicamente subtraídos ao perigo”.49 Seu Sublime é espectral. Não é o amedronto de coisas externas nem a pungência da dor física mas o assombro de algo nascido dentro de nós. Um profundo mal-estar. Uma angústia existencial consumada ante a presença fantasmagórica de tudo o que nos é inexorável. O desfecho é conhecido a todos: tudo o que você ama será lhe tirado à força, em último suspiro seu corpo cessará, seus rastros no mundo serão esquecidos. Temerária diligência, a vida, pois à tudo a morte toca. A eternidade, mero sonho da Razão, é impossível.
    Mas em Schiller há redenção, uma apenas: ao menos é possível superar o medo. Tal é o caminho do Sublime. Como em Kant, seu Sublime não é sobrevivência externa mas superação íntima. Ele escreve: “Grande é aquele que sobrepuja o temível. Sublime é aquele que, mesmo sucumbindo, não teme”.50 Pois “não podemos relacionar o sentimento da nossa segurança à nossa existência, e sim aos nossos princípios”.51 Também Schiller entende o corpo como “algo alheio e externo, que não tem nenhuma influência sobre a nossa pessoa moral”.52 Sua estima à transcendentalidade Kantiana permite-o sugerir contra os assombros uma Distância Interna — ou Moral. Se guardamos duas naturezas, há refúgio no espírito. Tal espírito é figura indistinta. Não é em exato a alma nem a mente, mas um algo autônomo, um ânimo que há em nós cuja "independência de tudo aquilo que a natureza física pode atingir”53 nos permite exilar-se de nossa natureza física, que refém da vida, teme a morte acima de todas as coisas. O refúgio moral se dá quando o humano “se submete voluntariamente”54 à violência que, cedo ou tarde, o assolaria. Pois não há quem escape da morte, do tempo, da falta de sentido. Mas se à eles nos rendemos, superamos o medo. “Sorte dele, portanto, se aprendeu a suportar o que não pode mudar e a abandonar com dignidade o que não pode salvar”.55 O real vínculo do Sublime com a morte é, à Schiller, o de aceitação. Caso contrário não ascendemos ao Sublime mas amargamos a Tragédia de padecer como bichos. “A morte, por exemplo, é um desses fundamentos contra os quais só possuímos segurança moral”, ele diz.56 Querer prolongar a vida ou empreender a busca da imortalidade, seja física ou espiritual, é tarefa de covardes. Neles, o amedronto da carne venceu o espírito.
    Por detrás das grossas paredes da Torre, vive o humano. Mas se a estrutura resguarda-o de um segundo dilúvio, pouco pode fazer contra as tempestades em seu peito. Ele logo percebe. Há temores contra os quais parede alguma consegue nos guardar. É preciso que o humano construa dentro de si um outro tipo de Torre, invisível, essa sim caminho à liberdade. Uma Torre Moral. Desamparado numa arquitetura de tijolos ele busca moldar em seu íntimo a Torre mental que não visa escondê-lo dos temores mas o ascende numa grande busca pela verdade, quer ela exista ou não. Pois é indiferente se “o belo e o bom e o perfeito existem”, escreve Schiller, mas sim se somos capazes de ansiar “que o existente seja bom, belo e perfeito”.57 Bem aventurado aquele que não permite às arestas do mundo acanharem seus sonhos. E os construtores sobrepunham tijolos mas dentro deles também erigia-se algo imponente que lhes haveria de ensinar, longe da frágil carne e nas fortes alturas do espírito, a confrontar todos os terrores espectrais. Uma Torre que lhes erguerá o espírito. Ali o humano agirá “como se não estivesse sob quaisquer leis que não as suas próprias”.58 E nessa Torre o indivíduo se recolherá para no dédalo de sua existência aprender a confrontar os fantasmas porvir. Tal ventura não é similar a todos. A depender da pessoa, as reservas espirituais são mais ou menos férteis. Sob o mesmo estímulo há os que ascendem ao Sublime e os que sucumbem à Tragédia. Difícil exigir à todos a força de fazer valer nossos doutos princípios. Uma vez manifesto pelo espírito, tudo é real. “A segurança física convém a qualquer um do mesmo modo; a segurança moral, ao contrário, tem por condição um estado de ânimo que não pode ser encontrado em todos os sujeitos”.59 Como então auxiliar o singular sujeito em busca de si?
    As singularidades acentuaram e a Torre de Babel tornou-se o seio da confusão. Todas as línguas em simultâneo e ouvido algum as decifrava. Talvez fosse a  afobada tentativa de suceder a certeza única de outrora, que já colapsava. No Juízo Lógico-Determinante o Entendimento visa a tudo catalogar. Ele quer conhecer e extrai da existência lições que lhe sirvam mas pode apenas descrever aparências. À ele a vida não passa de uma série de coisas que ou são reduzidas a conceitos pré-conhecidos ou vanescem desentendidas. Mas há “tão diversas formas na natureza”, que por vezes é impossível ao Entendimento determiná-las.60 Não é capaz de interpretar o enigma existencial nem sanar a sua falta de sentido. A vida é complexa e nebulosa demais. Em Kant nem sempre a natureza é “um sistema apreensível pela faculdade humana de conhecimento”. Por vezes é impossível desvendar seu sistema ordenador. Pode ocorrer “que a diversidade e a heterogeneidade dessas leis, assim como as formas da natureza que lhe são conformes, fossem infinitamente grandes e nos dessem um agregado caótico bruto, sem o menor sinal de um sistema”.61 O todo conhecido é apenas representação nossa. A ordem ali presente talvez seja a que nós colocamos para não perder o rumo em meio à vertigem das coisas desentendidas. E há momentos em que a mente, mero ponto dentro da constelação existencial, depara-se com coisas que lhe revelam sua pequenez.
    A busca por controle trouxe-nos o descontrole. Ruíram as antigas verdades e o cinismo da sociedade atual admite como inviável o retorno ao amparo de outrora. Estamos em queda, desprovidos de uma resposta convincente ao enigma da existência. Dormimos sobre o amparo estrutural da ilusão da verdade e despertamos com suas rachaduras alargando. Pois seu peso era, como a Torre, insuportável. A amplitude intolerável nos desvelou uma existência muito mais complexa do que esperava-se. Houve o colapso da Torre do Entendimento. Mas com o colapso da ordem vigente surge a chance de construir outro tipo de estrutura.
    Schiller assume postura similar à de Kant mas à ele a confusão pode servir ao Sublime e “impulsionar o ânimo”. Pois o campo do Sublime é o dissenso. Os que buscam ordenar o milagre da existência, “sempre pretendendo dissolver em harmonia a sua audaciosa desordem”, agem sob o amparo do Entendimento, seu lado sensível. E assim “não podem sentir-se bem num mundo no qual o colérico acaso parece governar”. Mas “caso renuncie à pretensão de organizar esse caos sem lei de fenômenos segundo uma unidade do conhecimento, ele ganha abundantemente”. E assim o caos “torna-se um símbolo mais adequado à razão pura, que encontra apresentada exatamente nessa selvagem dissociação da natureza a sua própria independência das condições naturais. Pois quando se retira de uma série de coisas toda ligação, obtém-se o conceito de independência”. E conclui: “a liberdade, com todas as suas contradições morais e seus males físicos, é um espetáculo infinitamente mais interessante, para ânimos nobres, do que o bem-estar e a ordem sem liberdade, quando as ovelhas seguem em paciência o pastor, e a vontade auto-dominante se rebaixa a uma peça servil no mecanismo de um relógio”.62
    Segundo Kant, “os conceitos da natureza, que contém a priori o fundamento de todo conhecimento teórico, baseiam-se na legislação no Entendimento. Já o conceito de liberdade”, que à ele contém em si todas as práticas incondicionadas do humano, “baseia-se na legislação da Razão”.63 Sob seu mando surge outro tipo de Juízo, que efetua a transição “do domínio dos conceitos da natureza ao domínio do conceito de liberdade”.64 E o humano que visava contornar a natureza sob seu conhecer pode, entre os escombros de sua falha, aprender a se libertar de tal diligência. Eis o Juízo Estético-Reflexivo, convocado nos momentos de dúvida onde o Entendimento é incapaz de formar conceitos. Nele não há resolução. É a queda da presunção lógica de ser possível à tudo saber. Seu impacto não é lógico mas unifica a experiência no tempo suspenso do momento estético. À Kant nele não há pensamento mas intuição subjetiva que “compreende o sucessivo num instante”.65 Na intuição estética não há a vontade de se informar nem intermédio do raciocínio, mas apreende-se o objeto total como fim em si. É na força desse momento onde, afirmado o não-saber, abordamos o mundo de maneira indeterminada, sem a pretensão de extrair-lhe algo. Kant chama-o interesse desinteressado. Não aplica-se conceitos às coisas mas cria-se novos conceitos a partir de coisas desconhecidas à mente. Suas leis são contingentes pois criadas mediante uma reflexão do singular, subindo “do particular da natureza até o universal”.66 É a Razão a guia do processo pois é ela quem pensa de forma livre. Ela ativa a Imaginação, que na esperança de qualificar o objeto enigmático colhe o arcabouço mental do indivíduo e recompõe outras imagens. Ficções sensórias. Mas não consegue qualificá-lo. O objeto se revolve em nossa mente, ativando-a.
    No Sublime o Juízo Estético-Reflexivo aciona-se com a mais intensa das volições. A grande queda do Entendimento é o êxtase da Razão, que no abalo subjetivo expande-nos o espírito pois quer somente se espantar com a grandeza. Ela aceita a incompletude. O estupefato esteta sente o agora alargando. Em sua espessura lateja a urgência do instante. Ali, no revolto desamparo do Sublime, é ele quem na falta de certezas deve parir sentido à existência, amparando-se. A Imaginação conduzida pela Razão torna-se não um carimbo de conceitos prévios mas faculdade propositiva. A imagem que escapa ao Entendimento abre-se em novo batismo. E unida à Razão, a Imaginação toca-lhe a testa para em seu bálsamo banhar de sentido o absurdo da vida. O desamparo, se bem manejado, dá luz à liberdade. Do caos, autonomia. O despertar da potência poética.
    Muito do que vemos é mero reconhecer. Convenções, externas ou íntimas, nos ensinaram a percebê-las como tal. Toda noite é igual. A mesma lua e ao redor as estrelas sob os mesmos arcos. Mas a proximidade é também cegueira. Em tudo que julgamos conhecer guardam-se outras potências ocultas por detrás do conceito criado. O agora é prisioneiro das experiências de outrora, pois plasmado sob um nome na taxonomia do Entendimento. Mas caso o sujeito atente-se não ao que numa noite é similar às outras mas ao que nela é singular a si, à todos os pequenos milagres do momento presente, poderá vê-la como pela primeira vez. Pois todo evento o é. Único. Liberta-se o agora do jugo do passado. A vida é ensaio que não sustenta-se. Esboço incessante, débil e quebradiço e ornado de minúcias que apenas o mais suave dos olhares é capaz de captar. Para então vanescer. Como argila na chuva. No Juízo Estético-Reflexivo aprende-se a ver as coisas sob outro olhar, apenas “para refletir sobre a natureza” do ato em questão.67 Desnuda-se as coisas de nome pois é a estranheza que força-nos a inventar.
    Pela dramaturgia, Schiller leva às últimas instâncias o imaginar ativo de Kant. Ele dá-se sob duas formas: a Contemplativa e a Patética. Em ambos o imaginar é acionado por algum evento Sublime. Na Contemplativa o fenômeno é passivo e não chega a ameaçar-nos o corpo. No repouso o espectador imagina o curso narrativo. Primeiro seu embate com a hostilidade, depois sua eventual supremacia moral ou submissão física. “São objetos temíveis tão logo a faculdade da Imaginação os relacione ao impulso de conservação; e eles se tornam sublimes tão logo a Razão os aplique para suas leis mais altas”.68 Nesse fantasmal teatro só há um títere, solitário a tecer fantasias sob o véu de sua mitologia pessoal. É o campo da auto-ficção, onde “quase tudo depende de uma atividade própria do ânimo”.69 O espectador é o herói, o monstro, o medo, a vitória ou o fracasso. É ele todo o seu mundo. O Sublime é sigiloso. Não há real comum, é experiência pessoal de impossível comprovação, e altera apenas o íntimo do sonhador. Em Schiller ele torna-se o canto do indivíduo, de tudo que lhe é particular. Afetado fundo no sumo da auto-ficção, ele acessa a seiva onírica de seu espírito, e quem sabe? Talvez ao fim venha a questionar o estatuto do real.
    A capacidade de sentir o Sublime “se encontra em todos os seres humanos, mas a semente dessa capacidade se desenvolve de modo desigual e precisa ser auxiliada pela arte”, escreve Schiller,70 pois “por ser apenas imaginado, ele permite que o princípio autônomo em nosso ânimo ganhe espaço para afirmar sua absoluta independência”.71 O exercício poético é mais que mero encanto. A arte é adâmica. Mede a vida e ao invés de drená-la arranca dela novo mundo. O criar sentido. Quando o mundo nascia as coisas careciam de nome e lá estava Adão mas ao nomear os animais ele não lhes escavou a essência. Inventou-os pois ali escolheu como os veria. A boa obra é o nome, não a coisa. É autônoma o bastante para transforma-la, a envolvendo de sentidos construídos porém mais reais pois filhos dos anseios humanos. A arte faz de um mundo outrora finito jardim inesgotável sempre fértil de novas vidas. O impacto estético inaugura sinergia entre o imaginar do artista e os devaneios do espectador, nos ensinando a significar a existência caótica. Para isso é preciso lançar-se ao dédalo do Eu. Ninguém além de mim pode desvendar a minha experiência. Sou eu quem deve tornar-se o errôneo Adão de meu mundo particular, numa auto-ficção que não encerra-se em convenções mas que é uma amálgama muito mais ambígua e inventiva.
    A liberdade é glória aos que sabem manusea-la. Talvez por isso almejamos a vastidão. Uma vez “cercado por suas formas grandiosas”, escreve Schiller, o humano “não suporta mais aquilo que é pequeno em seu modo de pensar”. A amplitude “arranca seu espírito da esfera estreita do real e da prisão opressora da vida física”.72 Pois a “grandeza relativa fora dele é o espelho em que ele avista o absolutamente grande dentro de si. Sem temor, com um prazer horripilante, ele se aproxima agora dessas imagens terríveis de sua faculdade da Imaginação, mobilizando intencionalmente toda a força dessa faculdade para apresentar o sensível-infinito”.73 A amplitude nos conduz a grandes pensamentos quando nos libertamos da pretensão do controle. Pois não é possível fugir do Eu e aquele correndo os olhos pelo fora faz apenas cair em si. Nas costas do horizonte, eis a tessitura de seu estranho coração. O Sublime trata bem os que aceitam o descontrole inevitável à espécie que não cessa de explorar. Depois há o recolhimento, o auto-controle, a autenticidade, a expressão.  
    E dos caóticos escombros de Babel ergueram-se os construtores e seguiam desentendendo-se mas sorriam. Descobriram em seus íntimos algo maior que a Torre, desperto no silêncio do Eu. Aliviados tanto da necessidade de dominar os arredores quanto do peso de uma estrutura única, podiam lançar-se às terras ermas do mundo não para buscarem a Verdade mas para cada um fabricar em solidão suas próprias respostas. Ali sim eles descobrirão se a vida sucede-se numa superfície de relações expectáveis ou se a existência é composta num outro tipo de matéria que alça homens e mulheres a demiurgos de seu assombroso destino. E então os construtores da torre entenderam que o Deus não os puniu, mas presenteou-lhes uma queda.
 

NOTAS


1. A Bíblia, Livro do Gênesis, 11:4.
2. MELVILLE, H., Moby Dick, p. 252.
3. HERÁCLITO, Fragmentos, Fragmento 124.
4. LONGINO, Do Sublime, p. 44.
5. BURKE, E., Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias do Sublime e da Beleza, p. 65.
6. Id., ibid., p. 52.
7. Id., ibid., p. 23-4.
8. Id., ibid., p. 65.
9. Id., ibid., p. 122.
10. Na Tragédia o herói amarga a derrota de seu espírito, no Sublime ele pode falhar mas não rende o espírito.
11. BURKE, E., Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias do Sublime e da Beleza, p. 52.
12. KANT, I., Crítica da Razão Pura, B xxvi.
13. Id., ibid., Introdução B, B12.
14. Id., ibid., B25 / A Priori é tudo que há em nós antes da experiência.
15. No diagrama de Venn dois círculos sobrepõe-se para criar um conjunto de três partes onde cada círculo possui um espaço próprio enquanto partilham de um trecho central em comum.
16. KANT, I., Crítica da Razão Pura, A371.
17. Id., ibid., B xvi.
18. Id., Crítica da Faculdade de Julgar, §26, 256.
19. Id., Crítica da Razão Pura, B57.
20. Id., ibid., B29.
21. Id., ibid., B1.
22. Id., ibid., A229.
23. Id., ibid., A51.
24. Id., Crítica da Faculdade de Julgar, Introdução, IV, 180.
25. Id., ibid., B436. / As Ideias da Razão são evoluções abstratas dos conceitos do Entendimento.
26. Id., ibid., B xiii.
27. Id., ibid., A293.
28. Id., ibid., B170.
29. Id., ibid., A293.
30. Id., ibid., B450.
31. Id., ibid., B xv.
32. Id., ibid., A707 / B735.
33. Id., ibid.
34. Id., Crítica da Faculdade de Julgar, Introdução, III, 177, nota 11.
35. Id., ibid.
36. Id., ibid., §27, 258.
37. Id., ibid., 248.
38. Id., ibid., §23, 245.
39. Id., ibid., §26, 257.
40. Id., ibid., §27, 259.
41. Id., ibid., §27, 258.
42. Id., ibid., §26, 257.
43. Id., ibid., §27, 258.
44. Id., Crítica da Razão Pura, A371
45. Id., ibid.
46. SCHILLER, F., Do Sublime In. Do Sublime ao Trágico, p. 22-3.
47. Id., Sobre o Sublime In. ibid., p. 55. 48. Id., ibid., p. 56.
49. Id., Do Sublime In. ibid., p. 33.
50. Id., ibid., p. 39.
51. Id., ibid., p. 35.
52. Id., ibid., p. 38.
53. Id., ibid.
54. Id., Sobre o Sublime In. ibid., p. 57.
55. Id., ibid., p. 70.
56. Id., Do Sublime In. ibid., p. 35.
57. Id., ibid., p. 58.
58. Id., ibid., p. 60.
59. Id., ibid., p. 34.
60. KANT, I., Crítica da Faculdade de Julgar, Introdução, IV, 180.
61. Id., ibid., Primeira Introdução, IV, 209.
62. SCHILLER, F., Sobre o Sublime In. Do Sublime ao Trágico, p. 67-8.
63. KANT, I., Crítica da Faculdade de Julgar, Introdução, III, 176.
64. Id., ibid., Introdução, IV, 179.
65. Id., ibid., 259.
66. Id., ibid.
67. Id., ibid., 181.
68. SCHILLER, F., Do Sublime In. Do Sublime ao Trágico, p. 42.
69. Id., ibid., p. 41.
70. Id., Sobre o Sublime In. Do Sublime ao Trágico, p. 64.
71. Id., ibid., p. 71.
72. Id., ibid., p. 66.
73. Id., ibid., p. 65.




















































































































































































































































































Turris Babel,
Athanasius Kircher.



A (Grande) Torre de Babel,
Pieter Bruegel O Velho.

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