O Templo sem Deus
Devo ter contornado algumas depressões irregulares que me pareceram pedreiras; ofuscado pela grandeza da Cidade, eu a julgava próxima. Por volta da meia-noite, pisei, eriçada de formas idolátricas na areia amarela, a sombra negra de seus muros. Uma espécie de horror sagrado me deteve.
Jorge Luis Borges1
— Em tais momentos eu estava sempre tomado por uma grande angústia. Às vezes, também, eu pasmava a encarar as geleiras ao meio dia, sozinho, a meio caminho do cume da montanha, cercado por imensos pinheirais resinosos. Na crista da rocha, um castelo medieval em ruínas; lá embaixo, ao longe, a nossa pequenina aldeia, tenuemente visível; muita claridade solar; amplo céu azul. E um terrível silêncio. Então eu sentia que alguma coisa estava subjugando-me e ficava imaginando que se fosse andando sempre, até bem longe, sempre para diante, até alcançar aquela linha onde o céu e a terra se encontram e se tocam, então, lá sim, é que eu acharia a chave do mistério. Lá é que eu veria uma vida mil vezes mais rica e turbulenta do que a nossa. Sonhava com uma grande cidade, como Nápoles, por exemplo, cheia de palácios, ruídos, bramidos e vida.
…
— Isso tudo é filosofia. O senhor é um filósofo e, quem sabe? Talvez tenha chegado aqui para ensinar.
Fiódor Dostoiévski2
Deus é o não dito, ele murmurou a mim numa noite em St Malo, bebendo, antes de dormir, uma taça de Bénédictine.
John Berger3
Jorge Luis Borges1
— Em tais momentos eu estava sempre tomado por uma grande angústia. Às vezes, também, eu pasmava a encarar as geleiras ao meio dia, sozinho, a meio caminho do cume da montanha, cercado por imensos pinheirais resinosos. Na crista da rocha, um castelo medieval em ruínas; lá embaixo, ao longe, a nossa pequenina aldeia, tenuemente visível; muita claridade solar; amplo céu azul. E um terrível silêncio. Então eu sentia que alguma coisa estava subjugando-me e ficava imaginando que se fosse andando sempre, até bem longe, sempre para diante, até alcançar aquela linha onde o céu e a terra se encontram e se tocam, então, lá sim, é que eu acharia a chave do mistério. Lá é que eu veria uma vida mil vezes mais rica e turbulenta do que a nossa. Sonhava com uma grande cidade, como Nápoles, por exemplo, cheia de palácios, ruídos, bramidos e vida.
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— Isso tudo é filosofia. O senhor é um filósofo e, quem sabe? Talvez tenha chegado aqui para ensinar.
Fiódor Dostoiévski2
Deus é o não dito, ele murmurou a mim numa noite em St Malo, bebendo, antes de dormir, uma taça de Bénédictine.
John Berger3
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A cordilheira do Alpes é o ápice topográfico da Europa Ocidental. Seu cume chama-se Mont Blanc e atinge quase cinco mil metros de altitude. O grupo liderado por Horace-Bénédict de Saussure escalou-o em 1760. No regresso em meio a uma inesgotável nevasca alguns dos alpinistas viram em sonho os domos de uma arquitetura ou morada celeste de algum tipo. Em seus templos de vidro palpitavam corações de carne macia e sabor doce. Os alpinistas acordaram sentindo-se ocos por detrás das costelas. Convenceram-se de sua existência. Não mais foram vistos.
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Em 1812 William Turner concluiu sua obra Tempestade de Neve: Aníbal e o seu exército atravessam os Alpes. O pintor deslumbrou-se com a coragem e delírio do general cartaginês que cruzou o Alpes com milhares de homens e dezenas de elefantes para guerrear com os romanos. Turner posicionou a obra de 1,5 por 2,5 metros rente ao chão, à altura do observador. Os ávidos incautos juravam. Bastava aproximar-se da cena para sentir o hálito gélido das montanhas. De retinas secas o espectador virava a face e então lia ao lado, na parede, a frase escrita pelo pintor: Aníbal esteve aqui. Há uma abstração expressiva, uma expansão disforme na obra de Turner que evoca o desorientar, a volatilidade de uma existência sensível em meio a imensos fenômenos e as sensações que tal embate desperta. Há lacunas, sem dúvida, pois os débeis sentidos captam apenas relances do infinito ao redor. A vertigem como um negar da onisciência. Turner enfoca o que há de intangível: luz, cor, espírito, energia, força, emoção.
Tais histórias entusiasmavam jovens românticos a lançarem-se à cordilheira cuja altura vertiginosa parece fusionar o divino e o mundano, o cosmos e a crosta planetária, o além e o aqui, o sonho e a vigília. O vento flauteia os picos de calcário e canta a coragem dos que ousam habitar o lintel do desconhecido. Pensadores como John Dennis, Thomas Burnet, Horace Walpole, Thomas Gray, Lord Shaftesbury e Joseph Addison quase padeceram de terror, fadiga e vertigem. E quem sabe encanto? Na virada ao século dezoito, via-se nas montanhas paisagem implacável de extremos perigos onde, segundo John Dennis, “caminha-se literalmente na margem da destruição”. Ao sentir nas bordas dos pés a brisa do abismo, o viajante disse viver "um maravilhoso horror, uma terrível alegria, e ao mesmo tempo que me deleitava infinitamente, eu tremia”.4
Apenas nas margens é possível à vida questionar. No áspero véu do mundo aberto, longe do engenho da espécie e seu escrutínio utilitário, o humano poderá deseducar-se. Ali o horizonte das ideais se extende até onde vai a geografia das paisagens e na amplitude não reprime-se a vastidão em nosso espírito. As montanhas suscitam tais insurreições. Nelas encontra-se algo precioso: o tempo suspenso. Nas altitudes cósmicas da cordilheira em meio ao silêncio e à solidão humanos exploram a real medida de seu tamanho e na pequenez talvez o encanto do absurdo não lhes escape. Nossos olhos fugazes testemunham na geologia o estagnar dos milênios. O alpinista caminha sobre os fósseis de criaturas vivas quando o mundo ainda era jovem e os humanos sequer um lapso nos éons porvir. Somos sopro, fortuito devaneio no dinamismo evolutivo. Diz Friedrich Schiller: “Dá ao mundo em que ages a direção do bem, e o ritmo calmo do tempo trará a evolução. Tu lhe terás dado essa direção quando, ensinando, tiveres elevado seus pensamentos até o necessário e eterno”.5 No topo do mundo com os pés sobre as nuvens já não se vê abaixo. A amplitude turva o real pois nem mesmo o horizonte consegue alçar-se a tal altura. Também dentro de si já não há onde segurar-se. O espírito aprofunda-se indistinto e àquele que cai em si não é ofertado garantias senão o espanto frente à vertigem. Quem sabe ali enfim se terá o vislumbre de uma existência unificada, uma síntese final, anterior à cisão do indivíduo.
Mas não só românticos buscaram-na entre lagos e rios, vales e encostas, cavernas e ravinas, neblinas e penhascos. As montanhas são morada de Santos anacoretas e monges imortais cujo exílio é o alimento do espírito. Quem os vê orando sob os ecos das galerias talvez testemunhe o Sublime formando-se no íntimo alheio. E não raro o ávido aventureiro, seja ele Santo ou romântico, vislumbra as terríveis silhuetas de monstros. Aos destemidos, o ápice da castidade é a perigosa diligência de caçar dragões em montanhas. Cavaleiros cristãos e santos guerreiros costumavam escalar terrenos desconhecidos para no fio do aço atravessar o peito da besta, exorcizando a paisagem ao louvado Deus e à toda a sua prole. Do alto de seu hábil corcel, São Jorge golpeia em lança a cabeça do dragão que exigia sacrifícios humanos, restaurando a ordem da existência como Deus a concebeu. Nessa cena há símbolos importantes. O cavalo domado é forte e gracioso e representa a humildade, a solicitude, a nobreza, a harmonia, a ordem, a beleza. O dragão ocidental é robusto também mas não possui as virtudes equinas, sendo tratado como monstro demente e selvagem. Filho das sombras, sua vontade é desfigurar as leis da criação, instaurando o caos no coeso mundo do Senhor. Vem à mente também a história em que o deus Apolo habitante das nuvens golpeia o dragão Píton, sua nêmesis ctónica, besta subterrânea. “A terra não te quereria, mas também a ti, colossal Píton, te gerou então. Serpente desconhecida ainda, era o terror dos povos agora criados, tal a porção de montanha que presidia”, escreve Ovídio. Das lagoas de argila abaixo da terra veio a Píton ocupar a montanha de Parnasso, o Axis Mundi, a casa do Deus. Ali Apolo buscou-a e no arco alongou seus graciosos braços para em sua carne caótica cravar “mil dardos, quase esgotando a aljava”.6
Mas talvez corpos de dragões guardem textura menos material e mais psíquica. Assim como os monstros também nós somos criaturas híbridas. Mas enquanto guardamos no íntimo nossa natureza cindida, os monstros revelam-na no corpo disforme. E a simbologia da luta entre Apolo e Píton ganha mais claros contornos. Besta do submundo e formada no contraste entre fogo e água, a Píton amargava em sua envergadura a distensão existencial que também Apolo sentia. E o deus celeste a aniquila como o Eu reprime as terríveis pulsões de seu inconsciente. Como o Santo degola os demônios de seu espírito. Mas aquele que recalca os próprios impulsos não virá a conhecer-se e a tarefa de abater bestas é fútil pois na penumbra da mente elas renascem. No Medievo e no Romantismo há um apreço pelos monstros. Seus corpos deformes não são afronta à criação mas pináculo de potência onde é possível ver a exuberância da inventividade divina. Aos que abraçam o descontrole os monstros são oráculos, mostrando o antes oculto. As criaturas desviantes são as únicas capazes de ruir os alicerces do real. Se hoje somos todos bastardos sem lugar num mundo de produção acelerada, é nas suas margens entre monstros e montanhas que abre-se a redenção. Mas não para matá-los. Para contemplá-los sob o sol. Ao invés da lâmina, luz. A alteridade possibilita o auto-conhecimento. O caos como força a ser sintetizada e não reprimida.
Petrarca talvez tenha sido o primeiro alpinista a dar notícia de sua ventura. No século quatorze o então jovem poeta subiu o Monte Ventor e o que encontra não é uma bela vista mas introspecção. O desejo veio-lhe ao ler que Filipe da Macedônia subiu os Haemus Mons, hoje as montanhas dos Balcãs, e "viu dois mares, o Adriático e o Negro”. Seria uma alegoria de alguém que no topo da montanha viu-se sob nova perspectiva, contemplou ambos os impulsos e sintetizou-se? Tal dualidade repete-se ao longo do relato. Ao buscar um companheiro de viagem, Petrarca decepcionou-se com seus amigos cujas constituições ocupavam sempre extremos e nunca o equilíbrio. E como alguém que encontra a resposta em si, convidou o próprio irmão, que durante a subida ascende pelo “caminho direto pela encosta” enquanto Petrarca perde-se por uma vereda “mais fácil que na realidade descia”. Estaria seu irmão incorporando o Impulso Formal, que deseja ascender, e Petrarca o Impulso Sensível, que anseia enraizar? Após certa altura, Petrarca transfere seus pensamentos de “coisas corpóreas ao imaterial”. E a subida da montanha torna-se alegoria à busca pela vida abençoada. Tais pensamentos “estimularam tanto corpo quando mente em maravilhoso grau”. Custou-lhe tal clareza pois “as moções do corpo são óbvias e externas enquanto as da alma são invisíveis e ocultas”. No cume, assombrou-se com “a qualidade do ar e o efeito da grande vista". E os céus da Itália ocuparam-lhe não a vista mas a mente. Petrarca conduz então belíssimas reflexões sobre sua incapacidade de reprimir os desejos carnais. Pois ele vinha sentindo nos últimos anos os “dois adversários” que “travavam guerra no campo de seus pensamentos”. Seguirá amando-os, mas de coração pesado. “Odiarei-os se puder; senão, amarei contra minha vontade”. Aqui também não se reprime monstros. E enquanto “erguia a alma, como havia feito o corpo, a planos superiores”, decidiu abrir sua cópia das Confissões de Santo Agostinho. Leu: “E os homens se maravilham com as altitudes das montanhas e as ondas imensas do mar e a vasta extensão dos rios e o circuito do oceano e a revolução dos astros, mas não atentam a si mesmos”. As montanhas não nos dão a escala do mundo mas a escala de nossa própria existência, de nossas potências mentais e da amplitude de nosso espírito. E então o viajante pensou em silêncio sobre como buscamos “fora o que deve ser encontrado dentro”. E o cume da montanha pareceu-lhe pequeno frente ao “alcance da contemplação humana”.7
A montanha é Axis Mundi, eixo terrestre celestial. Qual escada ao além, habitam-na os que anseiam transcender. Mas o além não é tangível a dedos humanos. O Sublime não é provação física mas moção íntima. Os pés do alpinista levam-no a vislumbrar a paisagem de sua própria intimidade, acessando alturas e desvendando em seu espírito criaturas que não julgava possíveis.
Ao fim, Apolo contempla a carcaça da besta. Sobre ela fundará nova cidade, Delphos, onde dormirão os oráculos que prevêem o porvir pela água ondulante e o sussurro das folhas. Também Cadmo, outro herói grego, funda Tebas sobre o dorso de um dragão. A serpente de Marte. Dela colheu os dentes e na terra semeou-os e do pó brotaram homens que logo inimizaram-se. Seriam os impulsos da criatura? Restaram cinco e foram esses os que seguiram Cadmo na aurora da nova Pólis.8 Também os santos guerreiros, uma vez exorcizada a paisagem, erguiam templos de louvor ao Deus. Monastérios construídos sobre o cadáver de dragões como os sonhos manifestos da criatura mágica ali enterrada. Entre vistas e abismos sem fim a celeste altitude leva o monge a entreter aspirações religiosas. Na pele e no espírito ele sente o advento do Absoluto.
Poderiam ser pólis Góticas? Era comum relacionar a geologia das montanhas à arquitetura das catedrais. No ar tênue os sentidos desorientam e em golpes de ótica confunde-se pináculos de pedra com torres, deslizes rochosos com ruínas antigas, fendas de gelo com frias galerias, largas cavernas com naves centrais, cristais de gelo sob a luz com as cores dos vitrais. John Ruskin cita que como as paisagens do norte, seus “severos" edifícios são “rudes e selvagens” pois construídos por “naturalistas” fascinados pelo desejo de transferir à pedra “as formas naturais”. E assim sua arquitetura “emergiu em maciça e montanhosa força, bloco sobre bloco no entusiasmo do monge e na força do soldado; e apertada e estancada em pavorosas paredes, capazes de enterrar o anacoreta em escuridão”. As escolas do Gótico criaram a “folhagem venosa, franjas espinhosas, os nichos sombrios”, e em alturas destemidas os pináculos e torres enviam “resolutas perguntas ao céu”. Ele continua: “o ornamento gótico destaca-se na autonomia espinhosa, e gélida fortaleza, projetando-se em coágulos e congelando em pináculos; aqui iniciando em monstro, ali germinando em flor, lá entrelaçando-se em galho”. Por isso segundo Ruskin há uma “irmandade de montanha entre a catedral e os Alpes”. A arquitetura Gótica seria um espaço de cura a “homens de verdadeiro sentimento” que “anseiam fugir das cidades modernas para cenários naturais”.9
Também Viollet-le-Duc encantou-se com as semelhanças entre os Alpes e a arquitetura Gótica. Restaurava a catedral de Lausanne enquanto habitava as margens do Mont Blanc. Em seus desenhos abstraía as formações geológicas em estruturas geodésicas. O arquiteto via ali não os espasmos de um deus epiléptico mas construções de lógica compreensível, traduzível à geometria. Num “trabalho metódico de análise”, pretendeu construir “um mapa topográfico exato” da região, da "disposição das rochas cristalinas e das terras que as compõe”, mas também de “seu modo de formação e as causas de sua ruína”. Lamentava que a “extrema pureza do ar nas alturas…é frequentemente causa de erros”. O olhar humano é ilusório “em meio àquelas solidões onde nada indica a escala…e onde a transparência do ar suprime quase inteiramente a perspectiva aérea”. Sua abordagem, creio, é a antítese da experiência Romântica. Turner e Ruskin abraçavam a volúpia estética do desnorteio sensível como a iminência do Absoluto, frente ao qual somos pouco mais que nada. Já Viollet entende-a como barreira ilusória à boa prática científica. Seu intelecto desencanta a criação: “Na verdade, nosso globo é apenas um grande edifício cujas partes têm uma razão de existir; sua superfície afeta formas ordenadas por leis imperativas e seguidas de acordo com uma ordem lógica”.10
Embora contrastantes, Ruskin e Viollet-le-Duc entendem ser possível reunir a geologia dos Alpes e arquitetura Gótica numa paisagem do Sublime. Ambos os lugares parecem invocar a mesma estética do infinito. Mas enquanto as catedrais adornam-se de figuras religiosas, as montanhas guardam um teor de abstração mais aprazível aos românticos que buscavam uma experiência religiosa desprovida da iconografia tradicional. No Absoluto tudo é indistinto e uno e portanto a arte figurativa já não faz sentido. Dragões e grotescos, santos e cruzes. Talvez os monstros sejam impulsos assimiláveis e o Deus, energia sem fim. Como abordar a experiência religiosa sob novos ícones? Como fusionar o encanto de um mundo inesgotável com a geometria arquitetônica? Como erigir templos em louvor a deus algum?
Em 1919 o arquiteto Bruno Taut também lançou-se às alturas alpinas pois era esse o sítio de sua nova obra: Alpine Architektur. Consiste numa série de trinta ilustrações em cinco atos: Casa de Cristal, Arquitetura das Montanhas, A construção Alpina, Construção de Terra e Construção da Estrela. “A arquitetura apenas ergue se emergir de uma história”, escreveu.11 Suas construções são templos de cristal evocando tanto o corpo das catedrais Góticas quanto a anatomia das formações rochosas. Estruturas de luz nos cumes das montanhas para através da cor encontrar outros acessos ao divino que não a simbologia cristã. “Parece-me que o mais importante”, escreveu Adolf Behne no mesmo ano, "é construir uma Casa de Deus ideal”.12 Nos templos de cristal há uma síntese entre a mentalidade medieval e a mímesis da paisagem natural. Não só o lugar onde situam-se mas suas próprias estruturas suscitam uma religiosidade iconoclasta, onde a experiência transcendente é buscada não no cristianismo mas na natureza.
Desde o Romantismo questionava-se a iconografia cristã e o norte protestante voltou-se à natureza na busca de novos templos seculares para abrigar deuses mais abstratos. A arquitetura Moderna hoje tida como Expressionista, do qual Taut faz parte, evocava em suas estruturas biomórficas formações rochosas como as encontradas nos Alpes, acidentes geológicos em cujo dinamismo entrópico encena-se o grande drama humano. Como na pintura O Mar de Gelo, Das Eismeer, de Caspar David Friedrich. Os destroços de um navio perdido numa infinita paisagem glacial de pináculos de pedra assemelha-se não apenas à pungência encontrada na arquitetura Gótica, porém mais ainda ao hibridismo mineral dos edifícios da Alpine Architektur. As catedrais Góticas, a geologia dos Alpes, as pinturas de Caspar David, as Cidades de Cristal, o aspecto ríspido de minerais como o quartzo, a cenografia de filmes expressionistas como o Gabinete do Dr. Caligari e até o Monumento aos Mortos em Março de um jovem Walter Gropius compõe o zodíaco de obras dos que exploraram outras camadas de fazer artístico.
Mas Taut não apenas apresenta-nos estruturas fantasiosas para inaugurar nas montanhas espaços de transcendência. Revela-nos, creio, uma narrativa. Uma jornada em busca de algo ao além. Conforme passam as páginas e os olhos percorrem os desenhos, afundamos nos passos e sonhamos os anseios de um peregrino talvez fugido da cidade. Há aqui uma tentativa de imbuir mais à arquitetura que o pensamento espacial. Também o dramático, ou o que Schiller chamou de o Sublime Patético, de Pathos, afeto, onde há um personagem sofrendo sublimes provações. A arte da ficção oferta aos mortais um lócus de catarse e sublimação, onde amargamos as desventuras e os desprazeres do herói e almejamos suas vitórias como se fôssemos nós ali, e de fato o somos, tantas vezes e de tantas outras formas. Histórias Sublimes mobilizam nosso espírito, nos treinam ao terror e ao encanto de existir e nos ensinam a sonhar.
No sopé da montanha o peregrino vê um lago. Ao centro, uma torre de vidro. Seus pilares banhados em prata sustentam uma coroa de cobre folheado à ouro ascendendo tremulante. Ainda nota-se ao seu redor ondulações no espelho d’água. Teria ela estado submersa à espera do peregrino? Ao lado da torre há aguda encosta de pilares brilhantes. Em meio à paliçada desvelam-se íngremes escadas. Subidas difíceis, escreve Taut. No topo o peregrino vê um vale de riacho selvagem. Atravessa-o na ponte e ao lado das águas ele cruza sucessivos arcos de vidro colorido que sobre suas costas unem ambos os lados do desfiladeiro. “Suas cores vão brilhando e adensando até no trecho mais estreito onde o vale fecha-se numa grade de arcos de todas as cores”.13 Após a represa multicor há mais escadas. Ele as sobe. E ao fim avista. A imponente Casa de Cristal. Sobre o largo rio no vinco da geologia, sua arquitetura vitral brilha em padrões de cristal sob o sol. Seus arcos sobrepõe-se como a cauda de um dragão em meio a terraços e pináculos tortuosos. Nos platôs pousam aeronaves.
Também em 1919 Taut escreve seu livro Die StadtKrone, a Coroa da Cidade. Nele concebe uma nova pólis que libertaria as pessoas da “desesperança e feiúra de uma existência materialista”, filha das cidades e sua condição caótica. Como disse o poeta Paul Scheerbart, talvez sua maior influência, “o paraíso, morada da arte” tornou-se “o inferno, morada dos ambiciosos”. Antes as cidades organizavam-se ao redor de templos e catedrais, grandes construções metafísicas que “derivavam-se dos mais elevados pensamentos: fé, Deus e religião”, escreve Taut. A tessitura de tais cidades é “em preciso a estrutura interna do humano e seus pensamentos”, de tudo que sentíamos “conectado com nosso mais íntimo ser: uma arquitetura do espírito”. A anatomia existencial do povo espalhava-se na pólis, manifestando nas construções a hierarquia de seus sonhos. Mas se antes eram os ritos religiosos e a imagem de Deus o foco da vida, agora a secular sociedade constrói apenas cidades acéfalas, desprovidas de centro espiritual. Há escolas, banhos, livrarias e sim, são confortáveis, mas neles não é possível realizar nossas verdadeiras necessidades. Dissolvem-se como “neve sob o sol”.14
“Ainda hoje é preciso ser como nos tempos passados, quando a mais alta estrutura na cidade era um edifício religioso a representar a coroa da cidade. Em todos os tempos gravitamos à casa do Deus para expressar nossos mais profundos sentimentos sobre a humanidade e o mundo”. No entanto os humanos já não cultuam como antes. As igrejas espalham-se tímidas nas bordas das cidades e sua iconografia já não nos sustenta pois apreciamos outra espiritualidade. Mas não é possível acreditar que o "sentido mais profundo da vida tenha dissipado-se”. Talvez ele ainda pulse em “todas as pessoas que esperam sua ressurreição, sua radiante transfiguração e cristalização em magníficos edifícios. Sem religião não há cultura ou arte”.15 É preciso sugerir uma nova experiência religiosa.
Feliz então o arquiteto que percebe haver um outro tipo de anseio tão fundo em nossa psiquê. Taut chama-o Pensamento Social. O desejo de sentir-se “uno, em sólida união com toda a humanidade”. Agora já não é “preciso espelhar-se no velho. Com orgulho conhecemos nossos próprios desejos e inclinações que diferem inteiramente do passado”, quando haviam catedrais, acrópoles, pagodas. Não é preciso imitá-los. Em sua cidade Taut desenha bairros residenciais com fartos jardins e parques abertos à natureza ao redor. No centro, um grupo de quatro edifícios artísticos e comunitários: a ópera, o teatro, um grande centro social e um pequeno hall de encontros. Pois é nos altares da expressão e do pertencimento que o indivíduo moderno ajoelha-se. Os teatros e cinemas atraem todas as almas que choram “por algo superior, pelo elevar-se ao além da existência cotidiana”. Também os eventos comunitários cativam os que visam “educar-se através da comunidade, para sentir-se uno com seus contemporâneos como um humano dentre outros”. Neles o “espírito e a alma elevam-se e amadurecem”.16
Mas não são esses edifícios a cabeça da pólis. Ao centro e acima surge outra estrutura, desprovida de função ou propósito, uma "maravilhosa sala alcançada por escadas e pontes”. Pois se o utilitarismo segmenta a existência e fragmenta indivíduos, os edifícios utilitários enfestam a atmosfera do materialismo que profana a profundeza da vida. Não é a tecnologia, mas a estética a formadora de homens e mulheres. À Taut é apenas sob o abrigo de uma arquitetura desprovida de função que a experiência estética é possível, pois ela não propõe-se uma ferramenta a um objetivo especial, mas estimula o habitante em sua totalidade, todo ele à todo momento, deitando-o nas dimensões mais profundas da vida, unindo-o, libertando-o. “Emanando do infinito, a luz é capturada no ápice da cidade. Ela se estilhaça e brilha nos painéis coloridos, arestas, superfícies e concavidades da Casa de Cristal. Essa casa torna-se a portadora de sentimentos cósmicos, uma religiosidade que permanece em silêncio reverente…nesse espaço, um andarilho solitário encontra a pura bênção da arquitetura”.17
Houve um tempo em que a iconografia religiosa serviu ao espírito, mas após a abertura do cosmos e a morte de Deus ela não mais basta. Se é impossível pintar a face do Deus talvez seja aconselhável mantê-lo símbolo, emblema aberto e inesgotável alegoria. E portanto a Coroa da Cidade torna-se construção aberta. É catedral Gótica feita toda vidro, seus vitrais alargando-se até consumir todas as pedras, até tudo antes opaco tornar-se translúcido e abstrato, pois despiu-se dos adornos e grotescos e gárgulas e imagens santas e narrativas bíblicas. Guarda-se apenas o banho de luz transbordando tudo em etéria atmosfera, uma ausência que todos os citadinos são levados a preencher como lhes convir ao espírito. “De uma perspectiva espacial, arquitetura é nada mais que o trazer luz. O vidro é a própria luz, e a arquitetura de madeira e pedra sempre ansiou a luz, então a ‘arquitetura de vidro’ é nada mais que o último elo”, escreve Taut.18 À ele antes valia construir um grande templo sem mensagem ou ensino nítido mas cuja ambiência faz do antes longínquo, tangível. Pois o vidro é dentre todos os materiais o que mais acerca-se do etéreo. Ele mantém as arestas difusas, os planos imprecisos, a forma nebulosa à espera senão dos desejos do povo então da luz correndo o cosmos para tornar-se espaço sob o domo vítreo, “penetrando a Casa de Cristal que reina acima da cidade qual diamante brilhando no sol como o sinal da mais alta serenidade e paz de espírito”.19
Mas não apenas o “andarilho” encontra ali sua bênção. Da casa de cristal a luz banha toda a cidade em feixes cósmicos, cores radiantes sobre os “mercados anuais e as feiras das igrejas”, sobre os espelhos d’agua e jardins, sobre os amantes na relva e na faca do homicida, sobre o suor nas costas e as dobras da gordura, e os dorsos dos carros e os trilhos dos trens. A cidade passa a “brilhar e vibrar em todas as cores e materiais, metais, pedras preciosas e vidro em todas as posições e espaços, onde quer que o jogo entre luz e sombra o provoquem”. A presença do astro é tangível. Toda a gente suspende-se no instante e o espírito parece desviar-se da carne para acessar as margens de outro mundo. Não houve-se palavra ou nota que for, tudo silêncio. Tudo inerte à espera do além. “A tarefa final da arquitetura é ser quieta e por todo o tempo estar afastada dos rituais cotidianos. Aqui a escala das exigências práticas silencia-se, similar à torre da Catedral”. A Casa de Cristal “torna-se o condutor de sentimentos cósmicos, uma religiosidade que, em reverência, permanece silenciosa”. E a outrora cinzenta cidade ilumina-se por dentro, do âmago de sua estrutura. Enfim “todo o mundo das formas está livre do encanto do real”.20
A todos a luz banha mas o Sublime é solidão. Viverão o momento cada um nos recônditos do espírito onde a harmonia total com o outro é impossível. Vejo na Casa de Cristal um monumento à autenticidade do indivíduo. Mas não a cidade que ela coroa. Se o pensamento social de Taut é por ele descrito como a “liberdade contra toda forma de autoridade”, sua pólis apresenta-nos o oposto pois fundada num monismo Romântico que a tudo visa sintetizar, unificando diferenças e corrigindo desvios sob o enlace de um desenho urbano mono-cêntrico e homogêneo, clarificado quando Taut explicita seu desejo de “unificar o anseio e esperanças das pessoas de uma comunidade”.21 Inumeráveis peitos e todos sob o latejo de um único coração de cristal, todos os corpos banhados em única luz. Como há o indivíduo de expressar-se num lugar onde suas pulsões são projetadas? Taut relaciona as cidades ao corpo humano e eu de fato vejo a sua como um de nós. Conflituosa, contrastante, pois seu coração apresenta-nos um caminho mas ao redor seu corpo dá-lhe as costas. Há aqui também uma clara divergência com a teoria de Gropius, que desejava descentralizar as cidades em inúmeras experiências estéticas entrelaçadas à vida comum, na escala do indivíduo.
Taut entendia que o culto religioso nas grandes cidades havia afastado-se da magnífica liturgia para íntimos rituais, da grande catedral a templos secretos espalhados pelas ruas da cidade. “Assim como a Igreja, a ideia de Deus perdeu-se na nova cidade. Não reivindico que a vida religiosa diminuiu em intimidade, mas sim que dissolveu-se em menores e menores canais. A reza comum e liturgia perderam seu poder unificador…como se a espiritualidade tenha-se retirado para a quieta câmara do indivíduo”.22 Mas talvez o desvio seja força. Taut abandona sua cidade hierárquica mas mantém a Casa de Cristal, reconduzindo-a a outras paisagens nas margens do mundo e subvertendo-a para não mais impor mas atrair, não pólis mas templos gravitando todos os que anseiam o encanto e o terror das terras ermas onde a vista não alcança. À eles lançam-se, solitários.
O peregrino sobe as escadas e entre estranhas formações rochosas adentra a Casa de Cristal. Seu corpo agradece a calidez do ar. O súbito silenciar lhe é estranho. Já não há o sibilar do vento glacial nem o grunhido das bestas nem o ruído das máquinas. Só luz e silêncio. A falta de som avoluma-se no vasto espaço envolto por altos pilares de vidro que acima sustentam em arcos de vidro um enorme diamante zenital. A luz o atravessa multiplicando-se caleidoscópica e a solenidade de toda a cena não lhe escapa. Há na luz um senso de infinito. A amplitude é embriagante e o peregrino senta-se nos degraus nas margens do cômodo. Percorrendo a altura com os olhos ele vê varandas panorâmicas e uma galeria de música que logo rompe o silêncio numa “fina música orquestral”. Não há ali “coisas úteis”, estão todas sob os terraços onde assenta-se o templo — o porão. Elas devem “aparecer o menos possível”. O peregrino agora move-se pelo espaço e por vezes vê “grandiosas pinturas e esculturas cósmicas”. No entanto quão mais caminha menos as encontra. “Aquilo que deve ser tornado visível é visto cada vez menos, já que não pode harmonizar-se com os sentimentos avassaladores do mundo, se o foco está no indivíduo e no específico”. E nos hiatos entre as imagens de paisagens cósmicas, o peregrino sente algo lhe arremetendo o peito, algo que não pretende habitar obras de arte pois não permite-se exprimir pelo engenho humano. “Essa Casa de Cristal não é uma ‘coroa’, e certamente não uma ‘Coroa da Cidade’”, escreve Taut nas margens da figura. Pois ele “não tem o direito de dispor o Mais Sublime, o Vazio acima de uma cidade. Arquitetura e o vapor das cidades permanecem em antítese irreconciliável. A arquitetura não permite-se ser ‘usada’. Nem para Ideais. Todo pensar humano deve silenciar-se quando a Arte e o Deleite em Edifícios falam — bem longe de fundições e barracas”. A mudança de ótica do arquiteto que um ano antes havia projetado uma pólis. Longe das hostilidades mundanas das cidades, o peregrino sente-se habitando um outro tipo de assentamento humano que mais parece diamante surgido do ventre da montanha pela ação de cataclismas tectônicos ou talvez templo manifesto pela intervenção de um demiurgo translúcido. Ao fim do salão, sob um enorme grupamento de arcos vítreos, há um portal circular. O peregrino segue sua jornada.
Já em 1914 Taut havia construído seu Pavilhão de Vidro. Parte da exposição Deutscher Werkbund, nele havia um domo prismático em duas camadas de vidro. A externa de folhas finas e translúcidas, a interna de espessos ladrilhos em diversas cores. Por fora o domo adotaria um timbre de uniformidade enquanto sua camada interna tingiria o espaço de dentro numa iridescência espectral. Ele estruturava-se sobre pilares dispostos em anel e fechados numa parede circular de blocos de vidro, tudo assentado numa alta base de concreto. Ao centro uma considerável escada conduzia os visitantes ao espaço interno. Mesmo longe já lia-se as frases de Scheerbart cravadas na construção. “Sem um palácio de Cristal, a vida transforma-se em fardo”, “O vidro introduz nova era”, “O vidro colorido acaba com o ódio”. Ao entrar no pavilhão, o mundo externo turvava e no silêncio duas curvas escadas simétricas subiam a lados opostos mas atingiam o mesmo destino, o domo. Ali todo um espectro de cores inebriava o ambiente. Azul, verde, amarelo e enfim um branco cremoso, a cor síntese de todas as outras. Desviado da concretude urbana, o visitante ascendia, seu corpo dissolvendo num instante estético com vislumbres de infinitude pois já não mais era possível discernir limites. Assim como as cores também o Eu progredia a um estágio indistinto onde tudo é síntese. O visitante então descia por outras escadas e voltava ao andar inicial, agora em seu interior. Ainda mais distante do mundo externo, sua atenção voltava-se à cascata d’água no centro do ambiente. Ali as superfícies cobriam-se de azulejos de múltiplas matizes refletindo a luz descendo do domo por uma abertura zenital. A água da cascata brilhava dourada. Aos lados haviam degraus e o visitante descia-os e a escuridão assentava. O anel de concreto impedia o acesso à luz a não ser ao fim do trajeto numa gruta violeta. Aqui, segundo Taut, “a beleza das imagens relembra o espectador de sua infância”. Ele continua: “conquistamos crianças, lançadas nesta vida fria e sem alegrias por meio de jogos. Nosso edifício é jogo”.23 Há em sua fala um forte teor Romântico, semelhante ao presente nos Vorkurs da Bauhaus. As crianças são frágeis e ignorantes aos caminhos da lógica, são instintivas e livres de convenções e ociosas. Por não conhecerem nomes vêem a tudo pela primeira vez, deslumbrando-se a todo instante por um mundo imponente. É um dos caminhos da arte suscitar a criança dentro do espectador através do jogo estético. Aquele que passa pelo Sublime é despido de todas as suas pretensões de poder e conhecimento e volta a ser criança.
Taut disse que seu pavilhão fora projetado dentro do espírito de uma catedral Gótica.24 Sem dúvida seus vitrais induzem uma dissolução Gótica, e também há o mesmo culto à cor e ao desvio do mundo. O próprio circuito do Pavilhão parece obedecer à moção vertical do Sublime, onde o espectador vai do centro ao alto do domo cósmico, êxtase da dissolução em luz, e depois às grutas de seu próprio espírito onde brilha o íntimo sussurro da água, o júbilo do recolhimento. Também as catedrais Góticas possuem um baixo centro de massa. Seu início é mais pedra e acima descortinam-se os vitrais. Basta levantar os olhos para embriagar-se na luz como narrativa de ascensão. Pode-se ver o Pavilhão como um radicalizar esquemático da catedral, abaixo opaco e acima translúcido, abaixo cripta e acima torre, abaixo caverna e acima pináculo. Foi nas cavernas há quase cinquenta mil anos que a sacralidade humana iniciou. Ali nas gargantas do mundo em meio à penumbra e ao silêncio pudemos esquecer o real e inventar outro tipo de existência. Nos abrimos à abstração e ao culto das coisas intangíveis. Em pinturas rupestres expressávamos nossa ponte com algo incompreensível.
Sinto o coração das Cidades de Cristal pulsando no domo vítreo do Pavilhão de Vidro, e portanto vejo-o como prólogo aos templos situados nos cumes dos Alpes. Pois o Pavilhão alude à jornada do peregrino, condensando-a num microcosmos. E embora à ele falte a amplitude, também nele o Eu desvia-se da cidade, há uma escalada onde declives tornam-se degraus, há os templos vítreos no alto e uma experiência que foge à descrição, pois vivida na fundura do Eu onde as palavras não alcançam e a lógica não legisla. A montanha é justo o Axis Mundi pois encerra tanto a caverna quanto o pináculo em seu corpo, a cripta e a torre, conectando os reinos inferiores e superiores. Dos monstros aos astros então.
Do alto de uma formação rochosa o peregrino viu correr um leito de nuvens cobrindo o mundo salvo os cumes das montanhas. Na cúpula nevada de uma alta ribanceira contemplou a audácia de uma estrutura de arcos de vidro verde esmeralda que não amparavam o corpo mas estimulavam o espírito. O momento era propício à exploração cósmica pois os astros alinhavam-se em altura. De um lado da estrutura o sol em todo seu esplendor e do outro a lua em forma de foice. Continuou. Adiante avistou nos cumes das montanhas paliçadas de cristal e no vale entre elas um profundo lago ornado com flores de vidro. As pétalas eram imensas e coloridas e encerravam corredores concêntricos. O peregrino os percorreu até atingir o lago e seu corpo preencheu-se de um temor latente ao perceber a escuridão das águas gélidas mas as flores flutuantes atenuaram o terror. A noite caiu e as paredes de pétalas brilhavam e as paliçadas acima eram como faróis de luz difusa. O Vale das Flores, veio a saber. Sua luz translúcida produzia “múltiplos efeitos tanto para quem anda nos vales quanto para quem viaja no ar”. Ao acercar-se de uma das paliçadas entendeu-a pirâmide de pilares e ali atrás encontrou uma ponte “gradeada em vidro” que vencia um precipício cuja altura turvou seus sentidos. Lá embaixo o peregrino via tão só o fio ondulante de um rio e uma floresta de pinheiros sobre os sopés das montanhas. Após a ponte sentou-se e ao levantar a cabeça viu a Montanha de Cristal. A luz. Tantas noites dormindo sob o arco dos planetas. O espetáculo de um imenso cume “talhado e envidraçado em múltiplas formas cristalinas” transfixou-o. Entorpecido no instante, todos os seus pensamentos perderam-se como as névoas que serpenteavam a montanha à frente, e o peregrino pensou contemplar a sua própria inexistência momentânea.
Scheerbart disse: “esperamos novos milagres da tecnologia e química”.25 Mas de forma alguma é o vidro milagre recente. Há quatro mil anos humanos já forjavam-no na Mesopotâmia e no Egito. Escreve ele que “a influência particular produzida pela luz filtrada no vidro colorido era bem conhecida dos antigos sacerdotes da Assíria e Babilônia” e foi apenas “através de Bizâncio” que as “lanternas de vidro colorido” ocuparam as Igrejas, gerando os vitrais Góticos. “Portanto, não devemos nos surpreender que eles nos dêem uma sensação especial de solenidade”.26 Viemos a entender bem a estrutura do vidro, e na Sereníssima República de Veneza moldamos belos vitrais cujas cores à John Ruskin tanto encantaram, “tão lindo em suas formas que preço algum é demasiado para ele”.27 Tanto Ruskin quanto Scheerbart celebravam-no e também censuravam o vidro translúcido e descolorido que hoje cobre tantos austeros edifícios em nossas metrópoles, o vidro do mundo fluido de Gropius. Mas do vidro translúcido também criamos lentes de telescópios e microscópios que aproximam eventos antes ocultos ao campo perceptivo, ofertando-nos a sublime experiência de testemunhar na retina o peso insuportável de planetas distantes ou a profundeza vertiginosa de nosso ecossistema subcutâneo.
No Medievo alquimistas viam no vidro o símbolo da transmutação entre as coisas da natureza. Ao criarem-no vislumbravam a existência da prima materia, massa vital presente em todos os elementos permitindo ao alquimista costurar todas as coisas. Pois que outra explicação surgiria do método de se misturar areia, sílica, calcário, sais minerais, potassa e óxidos metálicos, todos opacos, e deles fazer vidro, ao menos que em cada um houvesse um timbre de transparência cuja astúcia humana fez florir? É o vidro uma das pontes entre a matéria e o etéreo. Nas mãos ele assemelha-se a um sólido e nos olhos a um fluido. Adquire tal composição pois é líquido super-aquecido e logo resfriado. Num átimo percorre toda a amplitude dos climas, do calor do magma ao frio cósmico, cristalizando em si ambos os pólos, dual como nós. E também como nós associa-se tanto ao submundo quanto aos céus, às bestas ctônicas e aos anjos espectrais, à carne e à mente, à penumbra do espírito e aos anseios de iluminação. Vejo-o como o símbolo da Experiência Estética de Schiller, que visa sintetizar os nossos impulsos sensível e formal num novo Eu, mais transparente a si. E no cerne da experiência dá-se o jogo Kantiano ininterrupto entre as faculdades mentais — macio quando Belo, áspero quando Sublime — que frente a um objeto inesgotável não tem outra saída senão revolvê-lo indefinido, estimulando o Eu a conceber novas respostas, novas imagens, nova vida.
O peregrino desceu pela montanha e grandes ganchos construídos na encosta rochosa serviram-lhe bem. Sentava-se neles para descansar. Abaixo atingiu um vale de neve densa cobrindo-lhe a cintura e à sua pele o frio perturbou mas nela também anunciaram-se os volumes de uma nova pólis. Cidades condensam ao redor de si um tipo de perturbação atmosférica e nessa em específico convergia uma ambiência com peso próprio, como ar híbrido. Ao avistá-la a face do peregrino orvalhou e ele entendeu. Um vale com pórticos de rica arquitetura em colunas de vermelho rubi e muitas varandas e terraços e telhados e balaustradas de vidro. E das fendas das estruturas inúmeras quedas d’agua como suas vísceras liquefeitas. Todas conduzindo-se a uma cachoeira central segmentada em diversos níveis, em pontes e casas e espelhos d’agua e escadas e alpendres, todo um rio articulado em brilhante arquitetura como piscinas suspensas. Dos poros da pólis brotava também vapor “para o estudo da formação de nuvens”. Transpiravam como casas de banho em polvorosa e que tipo de criaturas ali perfumam-se? E o vapor tingia-se de todas as cores, espectral subindo e transmutando-se como as almas de gigantes amorfos até fugir de vista nas alturas.
Scheerbart apreciava as estufas dos jardins botânicos mas a esses “imponentes palácios de cristal, de toda forma, falta cor”. À ele a luz colorida era capaz de “produzir uma nova forma de calidez”, não só calor mas afeto, ampliando os espaços cerrados da cidade com a força dos astros. Imaginava o esplendor de um planeta revestido em joias de brilhantes e esmaltes, a luz em gordos talhos dissolvendo superfícies. “Não mais os humanos precisarão contemplar o paraíso celeste” pois o próprio firmamento terá tocado o chão. Há uma imagética em sua visão que muito lembra os anseios do Abade Suger em sua catedral Gótica, pois através do estudo descritivo da Nova Jerusalém no livro do Apocalipse visava inaugurar um pedaço de céu no chão da terra. Scheerbart não era afeito à nostalgia mas mantinha um apreço pelas catedrais Góticas e seus ornamentos. Via nelas o prelúdio à arquitetura de Cristal. “Toda a arquitetura de Cristal parte da idéia da catedral Gótica, sem a qual a arquitetura de cristal seria inimaginável”. À ele, já no Medievo havia o desejo do vitral absoluto mas não o “ferro apropriado para tal construção”.28 Através do correto uso da cor é possível animar objetos comuns com outro tipo de aura, como se os víssemos pela primeira vez, tornando tímidos cômodos em verdadeiras catedrais. Sob a luz bem empregada dissolve-se também o sujeito vislumbrando enfim tudo aquilo que dentro de si escondia-se na penumbra. Scheerbart possui essa obsessão em iluminar a tudo, tratando o que é escuro como um mal a ser expurgado da face da vida.
No ano de 1914 escreveu seu influente ensaio GlasArchitektur em 111 fragmentos, talvez influenciado por autores românticos como Novalis, que também escreviam em aforismos. Dedicado à Taut, o livro apresenta-nos sua visão de metrópoles ainda porvir. Aeroportos de cristal de onde saem veículos aéreos como pontos de luz no céu noturno iluminado pela cidade abaixo com suas torres luminosas e terraços escalonados e vistas panorâmicas. No solo mercados de cristal, fábricas de cristal, restaurantes e sanatórios de cristal como jóias ou faróis anunciando um futuro onde todos os filhos da terra terão sua justa dose de luz. Nos mares há outras cidades de arquiteturas flutuantes também de cristal separando-se e agrupando-se ao sabor das marés, iluminando o espelho d’agua de rios e lagos e também atravessando o mar aberto. Abaixo ainda mais torres de vidro agora construídas no fundo do mar. E embora “muitos ainda o considerem uma quimera”, também as montanhas dos Alpes haveriam de cristalizar-se. “E no dia em que a navegação aérea dominar a noite, as montanhas da Suíça também brilharão com cores vivas à noite, graças à arquitetura de vidro”. Ao fim da fantasia ele alerta: “seguramente tudo isso soa como fantasia utópica, mas não deveria ser”.29
Antes, em 1913, escreveu o romance utópico Lesabéndio, passado no planeta Pallas onde alienígenas de olhos telescópicos fumam erva-bolha em prados de cogumelos. Um astrônomo visionário decide construir torre cristalina de imensa altura para em seu topo fusionar ambos os lados de uma estrela cindida e assim acessar o segredo da vida. Ao atingir o cume da torre, Lesabéndio transforma-se em algo além, sintetizando-se ao cosmos. Há aqui todo um zodíaco de símbolos afins. Cogumelos são desde sempre usados em rituais epifânicos de iluminação e podem ou matar ou renascer quem os ingere, sendo assim fendidos entre o diabólico e o sagrado. Representam as coisas que já proliferam no invisível e materializam pela ingestão, como talvez o etéreo coagulando em luz colorida sob um domo de vitrais. A estrela cindida alude à condição partida do Eu, que brilha mais forte quando unificado ao Absoluto do momento Sublime. Sua torre ressoa na história da Torre de Babel e ambas apresentam-nos o desejo humano de buscar se encontrar em todos os lugares que estão ao além de seu alcance, pois há algo estranho dentro de nós que impele o peito ao desconhecido. Mas enquanto em Babel os humanos ruíram na arrogância de querer tocar o céu, na história de Scheerbart a empreitada é oportuna. Pois Scheerbart acredita na redenção através da estética, nas virtudes da arquitetura, e mais: no poder do vidro. Em sua história humanos são criaturas corrompidas e violentas. Já os Pallasianos são pacíficos e gozam da boa liberdade. Os “bons selvagens” de Rousseau. Também são andróginos, alusão talvez ao mito de Platão, onde no passado os humanos eram seres de torsos esféricos, quatro braços, quatro pernas e duas faces que no auge de sua pretensão escalaram o Monte Olimpo para confrontar os deuses. Zeus os cindiu. Somos nós as criaturas separadas, metades em busca da parte perdida, nostálgicos, românticos, peregrinos.
Houve um dia em que o peregrino despertou sob a força do sol. No cume da montanha um estridente templo de vidro vermelho eclipsava o astro febril.Nutria-se de seus raios. Sua forma lembrava uma flor e as pétalas eram pináculos pontudos, três delas apartadas do corpo da construção, mais embaixo na montanha perfurando seu declive nevado. Delas subiam três caules que fixavam-se ao templo, quem sabe corredores de algum tipo. E contemplou o vir a ser da estrutura e julgou-o “tremendamente difícil e cheio de sacrifícios, mas não impossível”. Ao lado do peregrino mais acima no platô haviam flores de outro tipo, menores e de vidro azul e amarelo e por mais que esticasse o corpo seus dedos não as alcançavam. Flores ilusórias, as rosas azuis de Novalis. Taut escreve em seu Alpine Architektur: “Devemos sempre saber e desejar o inacessível para que o alcançável tenha sucesso. Somos meras sementes nessa terra e temos lar apenas no superior, na absorção e subordinação”.30 Num “vale entre montanhas de bordas cristalinas” o peregrino alcança A Catedral de Pedra. Toda a arquitetura sob o abrigo de uma abóbada de vidro, alveolar como pulmão de cristal constrito na geologia e estruturado em duas fileiras de pilares: a externa em blocos sobrepostos e a interna lapidada em losangos. Tudo de vidro. Nas montanhas em ambos os lados do vale rentes ao portão principal ele vê entalhadas as fachadas de catedrais, “suas naves esculpidas na rocha e continuadas em cavernas e grutas. A Catedral e seus corredores estão repletos da luz fresca do dia. Mas à noite é ela quem ilumina as montanhas e o firmamento”. Assim como no andar inferior do Pavilhão de Vidro, aqui Taut suscita a imagem da caverna. Uma ambiência de reclusão embora não de todo obscura. Pois mesmo no ventre da montanha Taut ainda celebra as virtudes da luz.
Difícil comentar as nuances atmosféricas de seus desenhos, mas parece-me não haver em suas Cidades de Cristal um apreço à penumbra. Suas fantasias são repletas de holofotes e edifícios luminosos, um Sublime fúlgido como são as catedrais Góticas. Mas a estrutura dos templos de cristal é composta de vidro e ferro enquanto a das catedrais Góticas é vidro e pedra. Os eixos de ferro dos templos de Taut parecem-me sempre delgados, por vezes inexistentes. É o êxtase técnico que permite ao vidro engolir todas as superfícies. Já o corpo das catedrais é uma grande massa de rochas, a depender do ângulo de visão chega a ocultar-se os vitrais. Na catedral o momento do iluminar torna-se o jogo entre o material e o imaterial, entre carne e espírito, entre céu e terra, sem jamais ocupar um dos extremos pois o oscilar entre ambos é justo a condição humana. Ali espacializa-se o drama íntimo do Eu em conflito. Já nos templos de Taut parece não haver o pólo material, pois muitas vezes não há corpo construído a ser dissipado em luz. Também a luz perde força pois já não se testemunha seu poder de tingir a aura das coisas mundanas. Seu desenho Catedral de Pedra é a primeira alusão, mesmo que latente, às potências da penumbra.
Perto de Glarus o peregrino percorre florestas com rochas em cristais lapidados lisos e brancos cintilando por debaixo das copas das árvores, suas folhas como lascas de prata. Avista montanhas com os mesmos cristais nos vincos da geologia. Nos vales segue em corredores pontuados por fileiras de ganchos em concreto branco, vidro fosco vermelho rubi nas pontas, como se caminhasse no maxilar calcificado de uma criatura gigante há muito morta. Ele sobe a montanha de Grindelwald toda cravejada de espinhos de ferro do tamanho de edifícios e no cume descansa sob o brilho insuportável de uma imensa esfera de vidro. Uma buzina metereológica. (figura 34) Numa ponte ele cruza um rio de águas calmas e por uma noite dorme na cidade aos pés do monte Rosegone, onde no cume há uma superestrutura de vidro, um colossal domo romboidal. (figura 35) Ali ele desentendeu seu contorno físico, e quando o arco solar banhava-o pensou ser centelha perdida na textura leitosa do ar colorido. Dias depois ele desceu um edifício escalonado em terraços escavados onde pousavam aviões e espectadores deslumbravam-se em “espetáculos de ar, balão, luz e água”. Da segurança dos terraços podiam contemplar a força das intempéries e a fragilidade humana. Do amparo da arquitetura torna-se mais fácil contemplar o desamparo essencial de todas as frágeis criaturas do mundo. Nos próximos dias foi farta a penumbra. Muitas noites escuras desprovidas do alento de um cristal em brilho. O peregrino atravessou uma área por onde caminhou fantasmal como se alma alguma houvesse habitado aquela paisagem salvo ele. Há um leito de escuridão pulsando por debaixo da película geológica. Em suas lacunas, fendas e abismos, crevasses, cavernas e grutas ele revela seu corpo penumbroso à espera da queda do sol quando deslizará ao mundo externo e na noite engolirá o peregrino.
Edmund Burke escreve que um objeto pode tornar-se impactante, e assim Sublime, através do contraste. “Para que a transição seja completamente impressionante, precisamos passar da luz maior para a maior escuridão que seja consistente com os usos da arquitetura. A noite a regra é invertida”. Se à noite o peregrino adentra um domo de luz, tal contraste é atingido.31 Mas é possível pausar o interesse fisiológico de Burke para ver tal contraste de maneira mais espiritual, ou narrativa. Diferente das catedrais Góticas, não há penumbra nos templos de cristal. Mas tal dialética se dá, creio, no caminho para alcançá-las. Em meio a deformidades geológicas sob o arco das estrelas sente-se o hálito da penumbra logo a ser suspensa pelas luzes dos templos. As sombras dos templos não são as suas mas a própria paisagem das montanhas, fazendo da arquitetura lapsos de luz em meio à penumbra, ambos Sublime. Após a escuridão potencializa-se o êxtase da luz. Antes do Fiat Lux é preciso da penumbra. Não visita-se as Cidades de Cristal apesar os Alpes, mas por causa deles. A jornada do peregrino é alternância contínua entre luz e sombra, estratificando a dialética das catedrais Góticas no contraste entre os Alpes e os templos de cristal. E mesmo sob o abraço do vidro prismático ainda persistem lascas de penumbra sob o seu peito. O infinito é inesgotável e quem busca exprimi-lo sente o amargor do que permaneceu obscuro pois não é possível dizer. E assim Taut pergunta-nos: “Mas como poderia-se descrever, mesmo que em alusão, o que pode-se apenas construir?”32
“Que seja iniciado um plano”, ele escreve, na “mais alta cadeia dos Alpes, do Mont Blanc ao Monte Rosa acima da planície italiana, no arco interno da cordilheira — aí a beleza deve estar”. Estaria Taut escondendo-se nos Alpes? Incapaz de responder às urgências do real, o arquiteto recolhe-se de quatro ao escritório. À ele restou fantasiar, imaginando impossíveis estruturas em terras ermas, qual demiurgo de aquarelas utópicas. Mas vejo em suas Cidades de Cristal não a covardia e sim a angústia de desenhar uma saída espiritual aos traumas da época. Taut desenha-as um ano após o fim da primeira guerra, cuja técnica criou trincheiras, projéteis e canhões, “artefatos assassinos” segundo Taut, fazendo correr “o sangue de milhões”. No mesmo ano Gropius funda a Bauhaus sob a égide de uma técnica de espiritualidade imanente para acelerar as veias inertes do povo alemão. “A tecnologia é sempre servo”, escreve Taut. “Querer algo útil e conveniente sem aspiração superior é enfadonho”.33 Gropius concordava. Mas suas obras contrastam. Gropius é o arquiteto da contingência e Taut o da fuga às montanhas. E eis que ao longo do século vinte o acelerar de Gropius tornou-se exaustivo. Na sociedade do desempenho torna-se possível voltar aos templos de Taut sobre outra ótica.
No Medievo a experiência do Sublime talvez fosse inseparável da devoção cristã. E no século dezenove os românticos nórdicos queriam deseducar-se das cidades e lançavam-se ao mundo selvagem, buscando o Sublime não em Deus mas na natureza, num maniqueísmo entre urbano e rural. Entendo as Cidades de Cristal de uma forma menos dualista, mais dialética. Nem a experiência religiosa, nem a fuga nostálgica dos românticos, nem a pólis acelerada de Gropius. E de certa forma condensam todas. Pois vejo-as como templos de peregrinação. Um hiato espiritual. Ali, nos veios da montanha, o indivíduo sufocado no tempo atual virá a conhecer um lugar de contemplação, onde seu espírito acalma-se em caminhos mais profundos. As Cidades de Cristal não contém as asperezas das metrópoles mas uma atmosfera estética capaz de suprir outra ordem de anseios. Viver nos lábios do abismo entre domos de luz colorida é experiência mais lenta e silenciosa. Sorver um cotidiano inebriado pelo Sublime é de fato transformador. E após a jornada o peregrino volta às cidades, algo dentro de si transformou-se, algo cuja chama ele saberá canalizar para moldar o cenário ao redor. E assim talvez não mais os humanos matem-se como porcos na lama nem desgastem-se até o colapso interno mas aprendam a ver, estejam os olhos fechados ou abertos.
Nos contos de fada não raro há montanhas de vidro por onde erram o mundano e o perene nos dorsos de criaturas mágicas. Também ali caminham os que empreendem a árdua viagem do auto-conhecimento pois apenas longe de tudo familiar pode o peregrino encontrar o que jaz só em si. Imerso num mundo cujo colapso do sentido gerou tantas nulas respostas, para se conhecer é preciso apartar-se do fluxo. Nesse lugar onde nada parece se mover ele pode notar no arco cósmico os longos ciclos dos signos de seu espírito. Sob a queda do sol ele atinge o cume do Monte Rosa. Uma enorme “redoma em estrutura de vidro, arcos e cristais”. As coisas calavam e o ar rosáceo suspenso à espera. Prestes a alinhar-se atrás da estrutura, o sol escorre no céu. O peregrino atravessa o lintel do portão e a luz é unânime. Seu corpo tão débil. Ao redor lâminas quebradiças insulam luzes cósmicas. Algo nele desperta. Os olhos fechados inebriados na vastidão. Desde sempre foi assim.
NOTAS
1. BORGES, J. L., O Imortal In. O Aleph, p. 12.
2. DOSTOIÉVSKI, F., O Idiota, p. 81.
3. BERGER, J., The Red Tenda of Bologna, p. 34.
4. DENNIS, J., In. SCHAMA, S., Paisagem e Memória, p. 449.
5. SCHILLER, F., A Educação Estética do Homem, p. 49.
6. OVÍDIO, Metamorfoses, Livro I, v. 437-41.
7. PETRARCA, Ascent of Mont Ventoux In. Selections from the Canzoniere and Other Works, p. 11-21.
8. OVÍDIO, Metamorfoses, Livro III, Cadmo e Tebas.
9. RUSKIN, J., A Natureza do Gótico In. As Pedras de Veneza, §VII, §LXIII, §LXX, §LXXVII, §LXXIV, §VIII, §XXX.
10. VIOLLET-LE-DUC, E., Mont Blanc: A treatise on Its Geodesical and Geological Constitution, Introdução, p. 1-13.
11. TAUT, B., Die StadtKrone, p. 61.
12. BEHNE, A., ibid., p. 141.
13. Todas as citações feitas durante as andanças do peregrino podem ser encontradas nas respectivas figuras.
14. TAUT, B., Die StadtKrone, pp. 52-4 e p. 56.
15. Id., ibid., pp. 58-9.
16. Id., ibid., p. 59, p. 55, p. 62, p. 67.
17. Id., ibid., p. 69.
18. Id., Glass Architecture In. Glass! Love!! Perpetual Motion!!!, p. 119.
19. Id., Die StadtKrone, p. 69.
20. Id., ibid., pp. 66-9.
21. Id., ibid., p. 58.
22. Id., ibid.
23. Id., Glass Architecture In. Glass! Love!! Perpetual Motion!!!, p. 121.
24. FRAMPTON, K., História Crítica da Arquitetura Moderna, p. 139.
25. SCHEERBART, P., GlasArchitektur, §CX.
26. Id., ibid., §CVII.
27. RUSKIN, J., A Natureza do Gótico In. As Pedras de Veneza, §XX.
28. SCHEERBART, P., Glasarchitektur, §III, §XIII, §XVIII, §LXVI, §XIX.
29. Id., ibid., §CVIII, §L, §LVIII.
30. TAUT, B., Alpine Architektur, desenho 21.
31. BURKE, E., Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e da Beleza, p. 87.
32. TAUT, B., Die StadKrone, p. 69.
33. Id., Alpine Architektur, desenho 16.
Tempestade de Neve: Aníbal e o seu exército atravessam os Alpes,
J. M. W. Turner.
Desenhos dos Alpes, Le Massif du Mont Blanc,
Eugéne Viollet-Le-Duc.
Das Eismeer,
Caspar David Friedrich.
Alpine Architektur, Cena 1,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 2,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 3,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 4,
Bruno Taut.
O Pavilhão de Vidro,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 5,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 6,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 7,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 8,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 9,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 10,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 11,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 12,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 13,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 14,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 18,
Bruno Taut.
Alpine Architektur, Cena 19,
Bruno Taut.