Prole de Ícaro

Caios Ascensios

…Filho do homem,
Não podes dizer, ou supor, pois sabes apenas
Uma pilha de imagens partidas…
T. S. Eliot1


I

Na Renascença inúmeros arquitetos desenharam as célebres descrições do antigo Vitrúvio que em seu tratado De Architectura narrou um humano alinhado à perfeita geometria. Fra Giocondo encerrou seu Homo em círculo e depois num quadrado. Os braços estendidos exercitavam a máxima erit eaque mensura ad manas pansas2 mas em sua gravura o corpo humano não unia as formas. Cesare Cesariano ousou melhor. Ilustrou-nos alongando as pontas dos dedos nos vértices do quadrado alinhados à circunferência do círculo com diagonais cruzando em nosso umbigo. Mas a rigidez de sua construção inibia o movimento. Foi Leonardo Da Vinci em seu Homem Vitruviano quem fixou corpo e cosmos, dotando-nos da elasticidade existencial para em quatro membros transitar entre o quadrado do engenho humano e o círculo da eternidade divina. Imenso feito pois se a pena do artista foi capaz de costurar nossa anatomia, microcosmos, aos padrões da Criação, macrocosmos, então a ordem cósmica poderia ser conhecida por nós, seu eixo central.
    E depois revelada em gloriosas construções. Não era incomum à arquitetura clássica cristalizar em sua estrutura os padrões da natureza. Se a Criação era lógos legível também a arquitetura deveria trabalhar seus elementos para em ritmo correto construir o palco da existência perfeita, costurando a humanidade aos arcos das estrelas. Na Antiguidade Fídias já sugerira a constante que rege não só o crescimento sonolento dos vegetais e crustáceos mas também as proporções do corpo humano e as elipses planetárias. Deram-lhe seu nome, Phi — 1,618:1. Assim criou-se a proporção áurea que viria a guiar os gestos construtivos também da Renascença. “As leis da proporção eram estabelecidas matematicamente e em todo o lugar difundidas…se tais números governavam os labores de Deus, considerava-se apropriado que os labores humanos fossem similarmente construídos”, escreve Colin Rowe.3 Dos quatro dedos que medem a palma da mão humana ao diâmetro da coluna à altura dos capitéis, dos trechos da face humana à espessura dos estratos do entablamento. Nasciam as ordens clássicas. Arquitetos como Donato Bramante e Andrea Palladio buscavam assim ascender o fortuito humano à perenidade da ordem cósmica. As casas de Palladio eram Villas simétricas em cenário pastoril para fazer da vida íntima uma “analogia ao paraíso”, escreve Rowe. Ao habitante restava sentir a rotina angelical imbuindo seus hábitos em harmonia e graça.
    Tais crenças resultam da teoria Neoplatônica do cosmos criado por um Demiurgo que impôs ordem matemática ao caos de outrora. As partes servem ao todo e ao centro jaz o planeta Terra, onde humanos contemplam o equilíbrio celeste. Tornamo-nos todos estudantes dos hábitos das esferas, em Platão a mais perfeita das formas. Também Palladio considerava o círculo êxtase geométrico e exaltava o Panteão pois nós “devemos, para preservar o decoro da forma dos Templos, escolher a forma mais perfeita e excelente, e sendo essa a circular…onde não há nem começo nem fim, e sendo todas as partes similares e pertencentes ao todo, e sendo equidistante do centro, é a mais propícia figura para revelar a Unidade, Essência infinita e Uniformidade e Justiça de Deus”.4 Sua Villa Rotonda não à toa foi assim batizada. Ao centro há um espaço circular proporcional ao perímetro quadrado da casa que harmoniza todos os elementos da arquitetura. O Belo não é aqui mero atributo objetivo mas a maneira pela qual o arquiteto manuseia a natureza em graciosa geometria, estabilizando a estrutura antes elusiva da existência. O arquiteto ritualiza o mito do Demiurgo que fez do caos, cosmos. Contemple a clara prosa da Criação.

II

Ao promover-se como a medida de todas as coisas, o humano fez apenas encolher o encanto do universo ao seu finito coração. Enquanto em sua capela Michelangelo pintava-nos à iminência de tocar o dedo de Deus, Copérnico demonstrava que buscar o divino é sentir na pele vergonhosa debilidade. E sua virada cosmológica provaria ser só o início numa ampla série de desilusões. Galileu descobre milhões de estrelas na Via Láctea. E se cada um delas é como o nosso Sol, então de fato o filho de Deus não passa de poeira chispando nas bordas do vendaval infinito. Do conforto de um desenho divino com nosso umbigo de centro matemático, lançamo-nos à periferia de um cosmos aberto onde não há nada senão indiferença. Como essas coisas se dão. O mesmo recurso que permitiu-nos ordenar a Criação também nos conduziu ao descontrole. Fomos de donos do mundo a “idiotas do cosmos”, escreve Peter Sloterdijk. “Por meio da pesquisa e da tomada de consciência”, o humano “mandou a si próprio para o exílio e baniu-se da segurança imemorial que gozava nas bolhas de ilusão auto-construídas rumo ao sem-sentido…Com auxílio de sua inteligência incansavelmente exploratória, o animal aberto arrancou por dentro o telhado de sua própria casa”.5 Assustado pela luz, o bicho humano quedou-se perplexo na imensidão. Talvez nossa inteligência seja robusta o bastante apenas para revelar nossa fraqueza. Órfãos dos antigos deuses e desviados de nosso destino, amargamos a falta de sentido e o absurdo da existência. E do cosmos volta o caos.
    Como não bastasse, a Teoria Evolutiva nos revelou não à imagem dos deuses mas dos primatas. No século vinte a psicanálise esclarece que o outrora redentor da Criação é sequer senhor de si, pois refém de uma mente em eterno conflito. E no século vinte e um nossa vulgar cultura é incapaz de fornecer respostas convincentes ao enigma da vida. O colapso do sentido deu luz a uma abundância de frivolidades que mascaram o constrangimento de estar vivo. O excesso de informação tem levado a psiquê humana, filha de um tempo remoto, à ruína. A fadiga cobre as coisas de estranho espectro, próximo à distância, familiar mas remoto. Na falta de peso perde-se também o tato. O sujeito não mais sabe estar.
    Por todos os lados estamos à revelia de forças hostis. O antes coeso fragmentou-se e ao redor nada parece se sustentar. Se a grandiosa Torre de Babel ruiu devido à confusão de línguas então é seguro dizer que hoje vivemos entre os escombros da antes infalível estrutura. Dormimos sob a garantia estrutural da Verdade e despertamos com suas rachaduras alargando. Caíram as grandes narrativas e o cinismo atual admite como inviável o retorno ao amparo de outrora. Como seguir a existência sob a intolerável amplitude sem o suporte de uma sombra? Talvez aquele que visava contornar a natureza sob seu engenho pode, entre os escombros de sua falha, aprender a caminhar sem o magnetismo de um único centro.

III

Mas não apenas de terror faz-se o universo. Há encanto também. Nosso corpo não guarda a marca da Criação mas há algo em nosso espírito que atrai-se pela amplitude. Entre a dor e o prazer. Eis a inexprimível experiência do Sublime. Seu nome, diz-se, foi entoado primeiro na Roma Antiga pelo esteta Longinus. Sublimis. Sua etimologia sugere o ato de elevar-se ao lintel. A porta a marcar o limite do que nos é possível. Não nos é dado atravessá-la e já ao acercar-nos sentimos a gravidade de tudo o que é grande em demasia. Longinus fala do êxtase de confrontar o desconhecido. “Pois tem muita razão aquele que declarou termos alguma coisa semelhante aos deuses”.6 Mas tal dignidade traz também a decepção de descobrir-nos os mais baixos visitantes das alturas. Pois há um desalinho entre a escassez de nossa cognição e a abundância de realidade — somos frágeis. No Sublime algo fantasmal rebenta a película de nosso real e sua aspereza não é bem-vinda. Algo grande demais à nossa mente, hostil demais à nossa carne. Nas margens da experiência tudo é vasto e entorpece a mente humana, que “tão inteiramente preenchida por seu objeto”, nem ao menos é capaz de “entreter qualquer outro nem, por consequência, raciocinar sobre o objeto que a ocupa”, escreve Edmund Burke, talvez o primeiro grande teórico moderno do Sublime.7 Os olhos das bestas. Uma cordilheira montanhosa. A infinidade cósmica. O Caos. Amortecemos raquíticos à imponência de tais gigantes. No instante Sublime é nítida nossa incapacidade de dominar a existência.
    Immanuel Kant, talvez o maior teórico do Sublime, escreve em sua Crítica da Faculdade de Julgar que há “tão diversas formas na natureza”, que por vezes nos é impossível determiná-las.8 Em Kant a natureza nem sempre é “sistema apreensível pela faculdade humana de conhecimento”. Pode ocorrer que “a diversidade e a heterogeneidade dessas leis, assim como as formas da natureza que lhe são conformes, fossem infinitamente grandes e nos dessem um agregado caótico bruto, sem o menor sinal de um sistema”.9 O real é fugidio e nossa lógica não é apta a interpretar as leis da existência. A ordem nele presente talvez seja apenas a que nós ali colocamos para não perdermos o rumo em meio à vertigem da inépcia. Os que buscam ordenar o milagre da existência estão fadados a amargar o inevitável acaso do mundo.
    Em nós há o colapso. Mas também o florir. Em meio ao desespero algo em nós desperta e nos alarga a espessura do espírito. No espanto da frágil criatura nasce outra abordagem existencial. A Intuição Estética surge nos momentos de dúvida quando a mente depara-se com um objeto que não se permite reconhecer de imediato. Há nele uma estranha e hipnótica áurea que submete a mente a uma conduta elevada, mais indeterminada, um tipo de jogo onde ela revolve o objeto “como princípio para refletir, não para determinar”,10 criando assim novos conceitos. À esse estado de desnuda lucidez Kant chama Interesse Desinteressado. E por isso escreve que a intuição Estética é de ordem subjetiva que “compreende o sucessivo num instante”,11 convergindo a experiência no presente. Aborda-se o objeto não como meio a algo, mas como fim em si.
    No Sublime a Intuição Estética aciona-se com a maior das volições. Incapaz de apreender a imensidão, a mente tensiona. Mas “a própria incapacidade do sujeito revela a consciência de uma faculdade ilimitada dele”, escreve Kant.12 O desprazer da ignorância dá luz ao prazer do inventar. A busca por outras maneiras de contornar o fenômeno fugidio estimula a Imaginação. “Do domínio dos conceitos da natureza” vamos “ao domínio do conceito de liberdade”.13 A estranheza existencial de não se sentir em casa no mundo desnuda as coisas de seus nomes, obrigando-nos a parir nós mesmos o sentido da existência. O espanto suscita o exercício poético de simbolizar o caos. Na falta de um guia divino, cabe a cada criatura desvendar a estranha textura de sua singularidade. O esteta não é personagem na obra de Deus mas ele próprio faz da vida matéria prima de seu destino, numa auto-ficção que não encerra-se em convenções mas que é amálgama mais ambígua e inventiva. E ao imaginar, o sujeito vem a conhecer-se pois para conceber novas imagens ele visita seu próprio arcabouço mental. “Em geral só conhecemos as nossas forças quando as testamos”, escreve Kant.14
    Tal apoteose é apenas possível aos seres pequenos pois só os que primeiro se amedrontam superam-se em nova vida. Por isso Friedrich Schiller, grande comentador de Kant, escreve: “caso renuncie à pretensão de organizar esse caos sem lei de fenômenos segundo uma unidade do conhecimento, ganha-se abundantemente…a liberdade, com todas as suas contradições morais e seus males físicos, é um espetáculo infinitamente mais interessante, para ânimos nobres, do que o bem-estar e a ordem sem liberdade, quando as ovelhas seguem em paciência o pastor”.15 O Sublime trata bem os que aceitam o descontrole inevitável à espécie que não cessa de explorar. A queda do domínio nos permite outra sorte de grandes pensamentos. O desamparo não é poço mas escada à liberdade.

IV

Em 1812 William Turner concluiu sua obra Tempestade de Neve: Aníbal e o seu exército atravessam os Alpes. O pintor deslumbrou-se com o delírio do general cartaginês que cruzou os Alpes com milhares de homens e dezenas de elefantes. Turner posicionou a obra de 1,5 por 2,5 metros rente ao chão, à altura do observador. Bastava aproximar-se para sentir o hálito gélido das montanhas. De retinas secas o incauto espectador virava a face e então lia ao lado, na parede, a frase escrita pelo pintor: Aníbal esteve aqui. Há uma abstração expressiva, uma expansão disforme na obra de Turner que evoca o tumulto humano em meio a imensos fenômenos. A vertigem como um negar da onisciência. Histórias como a de Aníbal entusiasmavam jovens românticos a lançarem-se à cordilheira Alpina. Pensadores como John Dennis, Horace Walpole e Joseph Addison quase padeceram de terror, fadiga e agonia. Mas havia encanto. Na virada ao século dezoito, via-se nas montanhas paisagem implacável onde, segundo Dennis, “caminha-se literalmente na margem da destruição”. Ao sentir nas bordas dos pés a brisa do abismo, o viajante disse viver "um maravilhoso horror, uma terrível alegria, e ao mesmo tempo que me deleitava infinitamente, eu tremia”.16
    Tal volúpia explica-se também pelo desapreço romântico às cidades. A mecânica doutrina da revolução industrial usurpava-lhes o sentido de uma vida autêntica. Amargavam o mal du siécle e sonhavam quebrar o relógio da modernidade para sorver a doçura de tempos mais notáveis, quando humanos eram gigantes e erravam pelo mundo e adormeciam sob a abóbada sideral. Pela janela de seu pequeno sótão o romântico via ruas apinhadas de covardes incapazes de facear o céu e ponderar sua pequenez. “O caráter dos moradores da cidade se volta tantas vezes para mesquinharias, definhando e murchando, enquanto o sentido dos nômades permanece aberto e livre, como o firmamento sob o qual ele se encontra”.17 Creio ser Schiller quem melhor realizou o pessimismo com a lógica moderna que “longe de nos por em liberdade, apenas desenvolve uma nova carência a cada força que forma em nós”.18 O utilitarismo a tudo segmenta, impondo suas categorias gerais à vida. “Eternamente acorrentado a um pequeno fragmento do todo, o homem só pode formar-se enquanto fragmento”.19 A pequenez existencial diminuiu o humano. Ele afasta-se do mundo e aparta-se de si, expurgando o encanto da existência.
    Os letárgicos românticos fogem então às montanhas em busca de Sublime despertar estético. O áspero véu de suas vistas abertas haveria de deseduca-los. Nas montanhas o horizonte das ideais se estende até onde vai a geografia das paisagens. Nossos olhos fugazes testemunham na geologia o estagnar dos milênios. O alpinista caminha sobre os fósseis de criaturas vivas quando o mundo ainda era jovem e os humanos sequer ânsia de ser. Quem não teme a vastidão abre em seu íntimo Sublime amplitude. Uma vez “cercado por suas formas grandiosas”, escreve Schiller, o humano “não suporta mais aquilo que é pequeno em seu modo de pensar”. A “grandeza relativa fora dele é o espelho em que ele avista o absolutamente grande dentro de si. Sem temor, com um prazer horripilante, ele se aproxima agora dessas imagens terríveis…para apresentar o sensível-infinito”.20 Pois o Sublime não é provação física mas moção íntima. Foi isso que no século quatorze o jovem Petrarca, o primeiro dos alpinistas, descobriu ao atingir o cume do Monte Ventor. Ali encontrou não apenas magnífica vista mas o cerne oculto de seu próprio espírito. E abriu sua cópia das Confissões de Santo Agostinho e leu: “E os homens se maravilham com as altitudes das montanhas e as ondas imensas do mar e a vasta extensão dos rios e o circuito do oceano e a revolução dos astros, mas não atentam a si mesmos”. E pensou em silêncio sobre como buscamos “fora o que deve ser encontrado dentro”. A vista então pareceu-lhe pequena frente ao “alcance da contemplação humana”.21 As montanhas não nos dão a medida do mundo mas a escala de nossa própria existência.
    Também nas montanhas Santos guerreiros costumavam caçar dragões. No fio do aço São Jorge atravessou o peito da besta, exorcizando a paisagem ao louvado Deus e restaurando a ordem de sua Criação. Estivéssemos nós ainda a comentar Palladio, exaltaríamos as clássicas virtudes do Santos. Mas agora escalamos ao lado de românticos que viam nos monstros não bestas dementes e desfiguradas, mas potência onde se testemunha a exuberância da inventividade divina. Pois se o próprio real é incoerente, são as criaturas desviantes que atentam-nos à fragilidade de nossa presunção ordenadora. Se hoje somos bastardos sem lugar em mundo insensato, é talvez nas suas margens, entre monstros e montanhas, que abre-se a redenção. O caos é força a ser assimilada ao invés de reprimida.
    Ao fim, o Santo contempla a carcaça da besta. Após a perigosa diligência fundava-se novos templos onde dormiam os fiéis que declamam Deus nas águas ondulantes e sussurros das folhas. Poderiam então os templos incorporar o caos, para que entre vistas e abismos sem fim seus habitantes conheçam existência outra? Arquiteturas construídas como os sonhos manifestos da criatura mágica ali enterrada.

V

Em 1919 o arquiteto alemão Bruno Taut desenha nos Alpes tal obra. Alpine Architektur. “Que seja iniciado um plano”, escreve, na “mais alta cadeia dos Alpes, do Mont Blanc ao Monte Rosa acima da planície italiana, no arco interno da cordilheira — aí a beleza deve estar”.22 Numa série de trinta ilustrações Taut inventou templos de cristal incrustados nos vincos geológicos. Sua plástica angustiante em nada assemelha-se à serenidade das Villas Palladianas. Antes evocam as catedrais Góticas e a geologia das montanhas, numa síntese entre mentalidade medieval e mímesis naturalista.
    No século XIX era comum aos Neogóticos traçar tal síntese: pináculos de pedra com torres, deslizes rochosos com ruínas antigas, fendas de gelo com frias galerias, largas cavernas com naves centrais, cristais de gelo sob a luz com as cores dos vitrais. Ao romântico vitoriano John Ruskin há uma “irmandade de montanha entre a catedral e os Alpes”,23 sendo ambas um espaço de cura a “homens de verdadeiro sentimento” que “anseiam fugir das cidades modernas para cenários naturais”.24 Foi nas catedrais Góticas que a nostalgia romântica encontrou o símbolo estético-filosófico capaz de confrontar os dogmas clássicos do universo inteligível e ordenado.
    Nas catedrais o espaço não é como no Panteão, escultórico e estável — finito — mas fluxo ascensional desprovido de contorno — infinito — na ânsia de expressar o espanto do que transcende o entendimento. “A arquitetura Gótica”, escreve Giulio Carlo Argan em seu ensaio sobre Palladio, “era arquitetura do inefável, repleta de significados que no entanto permanecem subentendidos, como motivos profundos de um impulso, de uma aspiração ao infinito; a arquitetura de Palladio é uma arquitetura que se oferece inteiramente à visão, não contendo nada que não seja dito abertamente.”25 A catedral alonga-se para em torres arranhar o arco celeste, perfurando o conforto de um cosmos fechado. Ela exprime não a clareza da Criação mas a angústia da criatura incapaz de compreendê-la. Quem não segue ordens cósmicas pode ao menos expressar seu desamparo.
    E no entanto quem teve o privilégio de habitar o interior de uma catedral não esquece o banho em etérea luz. Se o fluxo espacial Gótico alude a um Deus distante, a luz que o preenche busca convoca-lo ao recinto. A luz não possui contorno nem corrói, é o ápice do insondável que ainda responde ao tato. E por isso portadora do divino. Nela a criatura sente na pele o esplendor do inexplicável. Erwin Panofsky relaciona a luz Gótica à doutrina do Misticismo, que busca Deus não nas costas das nuvens mas dentro da divina alma humana. O Misticismo aceita nossa inépcia em explicar a condição humana. Vê Deus como inalcançável pela razão, mas passível de ser sentido. A mística, escreve Panofsky, remete “o indivíduo à percepção individual de seus sentidos e de suas experiências psíquicas; o intuitis é um conceito muito empregado”.26
    Na catedral Gótica há tanto a angústia da transcendência quanto o convocar da imanência. Nela o divino preside o externo inalcançável e o espaço íntimo. E assim a catedral torna-se lócus do Sublime, única experiência que sintetiza o cume do outro à gruta do eu.
    Mas a livre espiritualidade romântica, posterior à virada cosmológica de Copérnico, prescinde da iconografia religiosa medieval. Narrativas bíblicas, pensava-se, não mais explicam o nosso desamparo frente à infinitude. E portanto Bruno Taut desenha seus templos em estrutura de ferro e pele de vidro. São catedral Gótica abstraída, seus vitrais a tudo consumindo, até o antes opaco tornar-se translúcido e abstrato pois despiu-se dos adornos e grotescos e gárgulas e imagens santas e narrativas bíblicas. Guarda-se apenas o banho de luz e suas cores caleidoscópicas. O vidro é dentre todos os materiais que as mãos seguram o mais rente ao incorpóreo. No cume dos Alpes os templos de nebulosa forma aguardam a luz correndo o universo para manifestar seus matizes em espaço Sublime. “De uma perspectiva espacial, arquitetura é nada mais que o trazer luz. O vidro é a própria luz, e a arquitetura de madeira e pedra sempre ansiou a luz, então a ‘arquitetura de vidro’ é nada mais que o último elo”, escreve Taut.27
    Essa iconoclastia é vital à arte do Sublime pois assume a incompletude e a incerteza do humano que expressa o insondável. Como invocar o infinito pela finitude de uma obra, retendo o eterno num instante? Nas pinturas de J. M. W. Turner pode-se perceber tal estado. Também nas tempestades e ruínas de seu contemporâneo Caspar David Friedrich, que correspondem “de súbito a uma experiência familiar ao espectador do mundo moderno na qual o indivíduo é confrontado pela imensidão esmagadora e incompreensível do universo, como se os mistérios da religião tivessem deixado os rituais da igreja e sinagoga e fossem realocados no mundo natural”, escreve o historiador Robert Rosenblum.28 No êxtase da ilimitude ficamos, comenta Burke, “encolhidos à pequenez de nossa própria natureza e somos de certa forma aniquilados”.29 Mas não seria a falta de nitidez quem aciona a imaginação? O que não pode ser expressado não impede o gesto expressivo, mas estimula-o. Para preencher as lacunas a mente “entrega-se ao voluntário jogo da fantasia”, escreve Burke. O indefinido “fornece à faculdade da imaginação um espaço livre de jogo”.30 Esse é o mesmo Instante Estético do Sublime de Kant, momento de espanto que abre-nos ao privilégio da invenção.
    Vejo a mesma liberdade não só no material dos templos de Taut, mas em sua morfologia. Se Palladio punha suas simétricas moradias nas colinas de Vicenza para alicerçar um real gaguejante e monótono, Taut busca as espasmódicas montanhas para explicitar a dissonância essencial de nosso estar no mundo. Sua distorcida arquitetura é obra não de um architectus secundus deus como o era nas ordens clássicas mas de um reles architectus creatura.31 Desfigura-se o coeso corpo Vitruviano e de seu cadáver nasce caótica prole. Em torres retorcidas, escadas intermináveis, paliçadas cacofônicas e arcos sobrepostos, a obra de Taut parece extremar a angústia Gótica, invocando uma plástica que viria a ser teorizada no Desconstrutivismo, iniciado em fins do século vinte e portanto pós-moderno.  
    “Talvez uma das características do pós-modernismo seja a de levar em conta esse fracasso. Se o modernismo se distingue pelo esforço para conseguir um domínio absoluto, o pós-modernismo poderia ser a realização ou a experiência de seu final”, sugere Jacques Derrida, grande nome da Desconstrução. “Talvez não exista um pensamento arquitetônico, mas se ele existisse, só poderia se expressar na dimensão do Elevado, do Supremo, do Sublime”.32 A arquitetura desconstrutivista é a estética da falha. Sua morfologia fragmentária visa não apenas ilustrar o descontrole existencial mas também negar-se à apreensão do habitante, instaurando-lhe o desprazer do Sublime que por sua vez o ensinará a imaginar. Pois também Derrida assume a posição de liberdade após o desamparo. “Não se trata de renunciar um ponto de vista em favor do outro, que seria único e absoluto, mas de encarar a diversidade de possíveis pontos de vista”.33 E assim nos colocamos em outro tipo de caminho, “um caminho que não tem de ser descoberto, mas inventado”.34  
    Fosse possível decifrar o teor de nosso espanto, talvez surgisse uma doutrina do Sublime. Mas ela é experiência inexplicável e do alto de seus paradoxos — do externo ao interno, da fragilidade à força, do desamparo ao amparo, da ignorância à liberdade — realiza o que Derrida coloca como o cerne do Desconstrutivismo: uma “emancipação em relação às imposições impostas pela história da filosofia…A desconstrução, portanto, analisa e questiona os pares conceituais que normalmente são aceitos como auto-evidentes e naturais”.35 No instante Sublime aciona-se em simultâneo tanto a externalidade máxima quanto a intimidade mais profunda, sintetizando mente e mundo, consciência e realidade, sujeito e objeto. Após o colapso da Verdade a arquitetura já não pode espelhar os padrões do firmamento. Mas talvez a queda seja ascensão. O valor da arquitetura não mais depende de convenções celestes mas na forma pela qual exprime o espanto de se viver em universo demasiado amplo às elipses da mente. Dos capilares de sua atmosfera talvez brote o impacto estético do Sublime para despertar da letargia os que anseiam as esferas mais significativas da existência. Nas ruínas do antropocentrismo pulsa uma humildade que não se angustia frente à imensidão mas deleita-se em sua potência.

NOTAS


1. T. S. Eliot, A Terra Devastada In. Poemas, São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Tradução do Autor. Versão Original: …Son of man, / You cannot say, or guess, for you know only / A heap of broken images…
2. Tradução do Autor: A envergadura dos braços do humano é igual à sua altura.
3. Colin Rowe, The Mathematics of the Ideal Villa In. The The Mathematics of the Ideal Villa and Other Essays. Cambridge: The MIT Press, 1976, p. 8.
4. Andrea Palladio, The Four Books on Architecture, Cambridge: The MIT Press, 1997, p. 216.
5. Peter Sloterdijk, Bolhas: Esferas 1, São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 23.
6. Longino, Do Sublime, São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 44.
7. Edmund Burke, Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias do Sublime e da Beleza, São Paulo: EDIPRO, 2016, p. 65.
8. Immanuel Kant, Crítica da Faculdade de Julgar, Petrópolis: Vozes, 2016, Introdução, IV, 180.
9. Id., ibid., Primeira Introdução, IV, 209.
10. Id., ibid., Introdução, IV, 180.
11. Id., ibid., Primeira Parte, Primeira Seção, Segundo Livro, §27, 259.
12. Id., ibid.
13. Id., ibid., Introdução, IV, 179.
14. Id., ibid.
15. Friedrich Schiller, Sobre o Sublime In. Do Sublime ao Trágico, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 67-8.
16. John Dennis In. Simon Schama, Paisagem e Memória, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 449.
17. Friedrich Schiller, op. cit., p. 66.
18. Id., A Educação Estética do Homem, São Paulo: Editora Iluminuras, 2017, p. 34.
19. Id., ibid., p. 37.
20. Id., Sobre o Sublime In. op. cit., p. 65-6.
21. Santo Agostinho In. Petrarca, Ascent of Mont Ventoux In. Selections from the Canzoniere and Other Works, New York: Oxford University Press, 2008, p. 11-21.
22. Bruno Taut, Alpine Architektur, Hagen: Folkwang Verlag, 1919, ilustração 16.
23. John Ruskin, A Natureza do Gótico In. As Pedras de Veneza Vol. II, §VIII, In. gutenberg.org.
24. Id., ibid., §XXX.
25. Giulio Carlo Argan, A Fortuna de Palladio In. Clássico Anticlássico, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 419.
26. Erwin Panofsky, Arquitetura Gótica e Escolástica, São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 10-1.
27. Bruno Taut, Glass Architecture In. Glass! Love!! Perpetual Motion!!! A Paul Scheerbart Reader, Chicago: University of Chicago Press, 2014, p. 119.
28. Robert Rosenblum, Modern Painting and the Northern Romantic Tradition, New York: Harper and Row, 1975, p. 14.
29. Edmund Burke, op. cit., p. 75.
30. Id., ibid., p. 44.
31. Se Deus era deus architectus mundi, então o arquiteto clássico era architectus secundus deus pois imitava o lógos divino.
32. Jacques Derrida, Uma arquitetura onde o desejo pode morar In. Kate Nesbitt, Uma Nova Agenda para a Arquitetura, São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 170-1.
33. Id., Ibid., p. 170.
34. Id., Ibid., p. 167.
35. Id., Ibid., p. 168.
Mark

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